A empresa que se tornou a maior processadora de carne
do mundo com ousadia, eficiência operacional e distribuição de propinas
O veterinário Enio
Marques saiu perplexo do Ministério da Previdência. A reunião fora um desastre.
Diretor-executivo da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de
Carnes (Abiec) naquele início dos anos 2000, Marques intermediara o encontro
entre donos de frigoríficos e a equipe técnica ministerial. Em pauta, tema dos
mais espinhosos para o setor: contribuições previdenciárias.
Para espanto geral
dos técnicos, os empresários protagonizaram um show de sincericídio coletivo,
admitindo a sonegação de impostos como modus operandi. De tão natural, nenhum
deles sequer percebeu o embaraço. Para um país que almejava participar
ativamente do comércio internacional de carnes, não era um sinal muito
promissor. “O Júnior falou um monte de asneira”, recordase Marques, referindo-se
ao empresário goiano José Batista Júnior, então presidente do Friboi, um
frigorífico emergente. O episódio não teve maiores consequências, a não ser
externar o que no setor era de conhecimento de todos.
À época, os
frigoríficos brasileiros gozavam de péssima reputação. Sem acesso a crédito no
sistema bancário, burlar a lei, utilizando o nome de “laranjas” ou sonegando
toda a sorte de impostos e contribuições, era prática comum.
Ninguém diria que o
sincero Júnior Friboi, com seu jeito caipira que até hoje rende chacotas entre
executivos do eixo Rio-São Paulo, daria início à meteórica ascensão da empresa
fundada em 1953 por seu pai, o mineiro José Batista Sobrinho, cujas iniciais
justificam o nome que o frigorífico JBS carrega hoje.
O último 17 de maio
foi uma virada nessa trajetória. Até a bombástica delação premiada fechada por
seus irmãos Joesley e Wesley Batista com a Procuradoria-Geral da República
(PGR), e que alvejou o presidente da República, Michel Temer, a história era
uma. A da ascensão de um grupo familiar com forte veia empreendedora e enorme
dose de ousadia para se transformar na maior processadora de proteína animal do
mundo. Embora criticado pela agressividade com fornecedores e concorrentes,
suas empresas são reconhecidas pela eficiência de gestão das unidades em todos
os países onde opera, dos EUA à Europa e Austrália. Mas quando os irmãos
sucumbiram ao cerco do Ministério Público e da Polícia Federal e confirmaram,
em depoimentos filmados, as piores suspeitas sobre suas relações com figuras
proeminentes do mundo político, os Batista e suas empresas tornaram-se párias
do mundo empresarial ao qual tinham acabado de chegar. Passaram a ser evitados
pela maioria dos empresários, políticos e banqueiros que até a véspera faziam
questão de cultivar com eles bom relacionamento.
No último mês, a
reportagem do Valor ouviu 55 pessoas para reconstituir a trajetória da JBS — a
maioria pediu anonimato. O que emergiu da delação dos Batista é que o salto da
JBS e a construção dos negócios reunidos na holding familiar J&F
Investimentos foram regados, nos últimos dez anos, de R$ 1 bilhão em doações
(R$ 600 milhões em caixa 2), quase tudo de propinas a políticos de todo o
espectro ideológico, com destaque para o PT, que abriu as burras do BNDES. Mas
o que emerge dos relatos colhidos pelo Valor também dá conta de que a JBS não
pararia em pé se dependesse só do pagamento de propina.
A ORIGEM
No maior
frigorífico do país, construir desde sempre foi verbo pouco conjugado. De 1953
até 2016, a JBS cresceu apenas por meio de aquisições, a preço de ocasião, de
boas empresas em maus lençóis. Do açougue em Anápolis que abatia cinco cabeças
por dia, José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro, progrediu fornecendo carne a
empreiteiras que ergueram Brasília e fez sua primeira aquisição em 1970, em
Formosa (GO).
Em depoimento para
o livro “Brasil de Carne e Osso”, desenvolvido pela Abiec e publicado em 2015,
Zé Mineiro rememora essa aquisição: “Fiz uma compra boa. Os três sócios estavam
desanimados, queriam sair do ramo. Dei parte em imóveis e parcelei o resto em
um ano, mensal. Não foi difícil pagar, não”.
Em 80, comprou o
segundo frigorífico, em Planaltina, no Distrito Federal, mas acabou vendendo-o,
para voltar às compras, em 1988, de um abatedouro em Luziânia (GO). A unidade
dispunha de graxaria de grande porte para a época, que se tornaria o coração da
Flora, companhia de higiene e limpeza batizada com o nome da sua mulher. As
iniciais de José e Flora também formariam o nome da holding da família, a
J&F. A JBS era, então, uma desconhecida empresa de pequeno porte, que
abatia menos de 500 cabeças de gado por dia em seus dois frigoríficos.
Na década de 1980,
os reis da carne bovina atendiam pelo sobrenome de Bordon. Ao lado do Anglo,
Swift e dos franceses do Kaiowa, aproveitaram o primeiro suspiro exportador
brasileiro em 1982, quando estourou a guerra das Malvinas e os tradicionais
frigoríficos argentinos perderam espaço na Europa. Mas seriam minados nos anos
seguintes pela sequência de planos econômicos. Em 1994, veio o golpe de
misericórdia: a âncora cambial. “Foram todos pegos no contrapé”, lembra um
empresário, e foram à bancarrota.
A partir das cinzas
dos concorrentes, o Friboi deu o primeiro salto. Em meio à deterioração dos
negócios do Bordon, os Batista chegaram em 1993 a um acordo de arrendamento com
opção de compra do frigorífico de Anápolis. Foi a primeira grande unidade da
JBS, com potencial para abater 1,2 mil cabeças. Após negociações arrastadas
conduzidas pelos filhos, Zé Mineiro assumiu as conversas em 1995 com os empresários
que controlavam o frigorífico Anglo em Goiânia e dobrou-os com uma boa quantia.
Até aquele momento,
era vantagem para o Friboi ser um frigorífico goiano que vendia exclusivamente
no mercado doméstico. Quem estava no mercado externo só perdia dinheiro devido
ao câmbio apreciado. Os exportadores, submetidos a controles mais rígidos em
seus mercados no exterior, tinham dificuldade para concorrer localmente devido
à alta informalidade fiscal e sanitária do setor.
“A Sadia tentou
tocar o negócio, mas ela pagava imposto. Por isso, saiu”, conta um empresário
do setor. O noticiário da época retratava o problema de sonegação. À frente do
conselho de administração da Sadia, o exministro Luiz Fernando Furlan afirmou
em 1994 que o grupo fechara dois frigoríficos de bovinos devido à sonegação em
frigoríficos menores.
Ao abandonar a
produção de carne bovina, a Sadia abriu as portas para o Friboi aportar no Mato
Grosso, que hoje concentra o maior rebanho bovino do país. E foi a Sadia que
apresentou a empresa ao BNDES. Em 1997, quando o Friboi faturava R$ 400
milhões, o banco financiou a aquisição do frigorífico de Barra do Garças (MT).
“O custo da Sadia era alto, e o deles mais baixo. Era até fácil pagar”, afirmou
uma pessoa que acompanhou o episódio.
A Sadia teve também
influência decisiva na história da JBS em 1999. Fazia cinco anos que mantinha
fechado seu frigorífico de Andradina (SP). A unidade foi arrendada com opção de
compra pelo empresário Mário Celso Lopes, que, após investir R$ 25 milhões para
readequar a planta, necessitava de capital de giro para tocar a operação.
Bertin e Minerva olharam o negócio, mas se assustaram com os valores
envolvidos. Em busca de sócios, Lopes conheceu Júnior Friboi e Wesley Batista.
Seria o início de um relacionamento pessoal e de negócios que, em seu ápice,
daria origem à operação de celulose da J&F. Antes que a Eldorado Celulose
entrasse em operação, Lopes brigou com Joesley e rompeu a sociedade.
Mas em 1999 o clima
era outro. “Eles estavam naquela euforia. Assumiram o frigorífico Mouran!”,
lembra Enio Marques. Controlada pelo Mouran até o fim da década de 80, a
unidade era um dos frigoríficos mais emblemáticos do país, fundado pelo pai do
senador Auro Soares de Moura Andrade. Negócio fechado, os Batista fizeram as
malas e mudaram-se para Andradina. Ali, o Friboi estabeleceu sua matriz até
2004, quando o grupo migrou para São Paulo ao comprar em leilão, num ato também
carregado de simbolismo, a sede do antigo rei dos frigoríficos, o Bordon.
SOFISTICAÇÃO
FINANCEIRA
Era 2003 e o
escândalo da vaca louca na Europa pavimentara o caminho para o Brasil fazer
valer o tamanho do seu rebanho. Às voltas com febre aftosa, a Argentina mais
uma vez deixou espaço para os concorrentes brasileiros. A Rússia abrira as
portas para a carne brasileira. Faltava pouco para o país liderar as
exportações.
Nos bancos, porém,
a credibilidade dos frigoríficos ainda era um problema. Foi quando a JBS se
adiantou aos concorrentes, contratando um executivo com uma pegada financeira.
Após quase 20 anos no Sudameris e quatro no Banco Rural, Sérgio Longo assumiu a
diretoria financeira da empresa. “O setor tinha imagem horrível. A Friboi
queria mostrar para os bancos quais eram as oportunidades, e eu fui contratado
para antecipar quais eram as metas”, afirmou Longo.
Aos poucos, os
estímulos microeconômicos para sonegar vinham se reduzindo. O principal impulso
para a formalização veio antes do boom das exportações, lembraram empresários
ouvidos pela reportagem. Em 1996, a Lei Kandir isentou as exportações de ICMS,
um dos tributos mais sonegados. “Cansei de transportar carne com a mesma nota
fiscal”, admitiu um dono de frigorífico. Se fosse para exportar não fazia
sentido sonegar. Além de não pagar os tributos, as exportações geram créditos
tributários — que por vezes ficam represados e eram liberados após o pagamento
de propina, conforme a delação.
No Friboi, as
exportações entrariam na rotina na segunda metade da década de 90. Ninguém
entre os Batista falava inglês, mas a companhia trouxe em 1996, do frigorífico
Bordon, o irlandês Jeremiah O’Callaghan, atual diretor de relações com
investidores da JBS. Coube a Jerry, como é conhecido no setor, estruturar a
área de exportações da empresa, trazer mestres europeus para ensinar cortes ao
gosto dos mais sofisticados mercados — e guiar os filhos de Zé Mineiro em uma
viagem à Europa no primeiro carimbo de seus passaportes, em 1997.
“O setor tinha
imagem horrível. A Friboi queria mostrar para os bancos as oportunidades, e fui
contratado para antecipar as metas”, disse Sérgio Longo
De fato, as vendas
externas começaram a ganhar dimensão após 1999, com o fim da âncora cambial e a
compra da planta de Andradina. O expressivo crescimento das exportações
brasileiras a partir de 2002 estimulou a formalização. As regras sanitárias
para exportar eram mais rígidas, e os abates clandestinos, até então comuns,
ficavam de fora desse filão externo. Nos anos posteriores, outras alterações da
legislação e vitórias judiciais tornaram a sonegação menos atrativa. Entre
elas, as liminares que impediram o recolhimento da contribuição previdenciária
Funrural, a criação da nota fiscal eletrônica e, por fim, a isenção da cobrança
do PIS e da Cofins na carne, em 2009. A febre de abertura de capital em bolsa
na segunda metade dos anos 2000 foi o toque final para a formalização.
Cada vez mais ativa
no mercado internacional, o Friboi via no câmbio uma fragilidade. “O sobe e
desce do dólar estava prejudicando nossos resultados”, disse Júnior Friboi, em
entrevista em 2004. Para contornar o problema, o Friboi contratou, em 2003, o
ex-diretor da área externa do Banco Central Emilio Garofalo Filho, um dos
maiores especialistas em câmbio do Brasil, morto em agosto de 2015, aos 63
anos. “Eles saíram na frente, muito na frente de todas as demais empresas”,
disse Longo sobre a tesouraria.
“Os frigoríficos
brasileiros começaram a emitir dívidas no exterior em 2003 e, de repente, todos
os bancos correram para cobrir Bertin, Marfrig, Independência, Friboi e
Minerva. Era óbvio que eles iriam abrir o capital na bolsa em algum momento e
todos os bancos queriam estar próximos”, recordou-se o presidente de uma dessas
instituições.
Por intermédio de
Longo, a executiva do banco de investimentos do J.P. Morgan Patrícia de Moraes
estabeleceria seu primeiro contato com o Friboi. Com os anos seria identificada
pelo mercado financeiro e pelo setor de carnes como a “banqueira da JBS”, ao assessorar
o grupo em sua abertura de capital e em algumas das mais relevantes aquisições
no Brasil e no exterior. Patricia é filha de Marcus Vinícius Pratini de Moraes,
ex-ministro da Agricultura, ex-presidente da Abiec e que de 2008 a dezembro de
2015 integrou o conselho de administração da JBS.
Assim como a
contratação de Longo apresentou a empresa ao mercado financeiro, a de Garofalo
Filho, também em 2003, fez do Friboi o primeiro frigorífico de carne bovina a
estruturar uma mesa de operações de hedge cambial, política que marcaria a
atuação da empresa até os dias atuais. No mercado, a JBS chegou a ser conhecida
como um “fundo de hedge que vende carne”. Por mais de uma vez, ao longo dos
últimos anos, a empresa esteve no epicentro de boatos de “insider trading” nos
mercados de juros e câmbio. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga,
com apoio da PF, a compra de dólares e a execução de programa de recompra de
ações simultaneamente à venda de ações pelos controladores nos dias anteriores
à divulgação da delação dos irmãos Joesley e Wesley.
A JBS nega
irregularidades. Diz que, por sua alta exposição em dólar, não pode deixar de
fazer hedge. Sua exposição líquida, entre a dívida e os recebíveis em dólar,
era de cerca de US$ 7 bilhões em maio, quando voltou a montar a posição de
hedge — tinha chegado a ficar comprada em US$ 11 bilhões em 2015, mas diante do
custo muito alto de carregamento da posição, foi desfazendo-a conforme
firmou-se a expectativa de que o real se valorizaria com a entrada de recursos
externos no pós-impeachment da presidente Dilma. A decisão em maio era proteger
apenas um terço da exposição em dólar, e, justifica a empresa, tanto não era
sua intenção especular com a moeda que, quando o dólar subiu após a delação da
JBS, ela não liquidou a posição, e está comprada até hoje.
UMA FAMÍLIA
TRADICIONAL
A mosca azul da
política picou o primogênito dos Batista em 2005. Os negócios iam de vento em
popa. Muitos na família torciam o nariz para a carreira política, mas o grupo
já era o maior do país em carne bovina, com vendas de R$ 3,7 bilhões anuais em
2004 — por que não governar Goiás?
Zé Mineiro teve
três filhos e três filhas. “É uma família tradicional. Tudo ficava com Júnior,
Joesley e Wesley”, disse uma pessoa que compartilhou a intimidade dos Batista.
Na presidência da empresa familiar por 25 anos, Júnior Friboi passaria o bastão
para o caçula, Joesley Batista. Dos três filhos, Joesley era o mais distante do
estilo simples da vida em Goiás. “O Júnior é pinga, chapéu e viola. Wesley é de
cerveja e vinho, um negociador dos mais hábeis. Mas o Joesley é a arrogância em
pessoa”, disse um empresário que conhece a família. Para outros, Joesley faz um
gênero bonachão, mas gosta de contar vantagem. Descrito como “topetudo” por
aqueles com quem fazia negócios ou concorria, foi também um visionário. Sob
Joesley, as vendas da JBS se multiplicaram por 15 e saltaram para R$ 61,8
bilhões em 2011.
Se era Joesley quem
presidia a empresa e ditava os rumos estratégicos, o irmão do meio, Wesley
Batista, liderava as operações. De todos, é o que mais conhece como funciona o
dia a dia do frigorífico. É lenda no setor que, quando visita uma unidade,
chega a verificar se o funcionário responsável por desossar o boi desperdiçou
carne ou aproveitou tudo o que podia. “O Wesley é focado, entende do negócio.
Quem se mudou para os EUA para fazer a integração das empresas compradas? Foi o
Wesley. É o irmão mais pé no chão”, descreveu um ex-executivo do BNDES.
“O Joesley é o mais
mundano dos irmãos”, disse um banqueiro acostumado a fazer negócios com a
família. “Quem se deslumbrou com o poder foi o Joesley, porque o Wesley ficou
nos EUA por anos e não teve essa vivência. Como acontece com todo novo-rico,
Joesley passou a ter acesso a políticos cada vez mais graduados.”
EXPANSÃO
INTERNACIONAL
Em 2005, o Friboi
rompeu mais uma vez os padrões dos frigoríficos brasileiros. Por cerca de US$
85 milhões, adquiriu a tradicional indústria argentina Swift Armour e, pela
primeira vez, cruzou a fronteira do país para produzir no exterior. Contou,
para tanto, com empréstimo do BNDES.
Em outras
aquisições relevantes que o grupo viria a fechar no exterior, também teria
apoio do banco, mas não mais na forma de empréstimo, só por aporte de capital
da BNDESPar, que, assim, se tornava sócia do negócio. Em sua delação, Joesley
revelou que, antes de recorrer ao BNDES pela primeira vez, foi apresentado a
Victor Sandri, amigo do então ministro do Planejamento Guido Mantega. Quando
Mantega assumiu o BNDES no fim de 2004, Sandri agendou reunião de Joesley com
todos da diretoria do banco. “Foi nesse contexto que fizemos a primeira
abordagem ao BNDES sobre a possibilidade de internacionalizar a empresa”,
narrou Joesley. Ele apresentou opções de aquisição no exterior. “Foi marcante
que muitos vicepresidentes ficaram incrédulos”, relatou, mas Mantega teria dado
sinalização “bastante positiva” de que o plano interessava ao governo.
“Tenho um negócio,
não sou petista nem nada, mas os caras querem um campeão nacional e ofereci a
eles”, disse Joesley, na época, a um interlocutor. O Friboi sustentava que seus
planos no exterior fariam o Brasil relevante na cadeia global de valor de
carnes. Sem contar que, não fosse o Friboi, uma empresa americana fatalmente
compraria a Swift na Argentina, podendo, a partir daí, expandir-se por toda a
América Latina, advertiu na consulta enviada ao BNDES.
O crédito para
comprar a Swift argentina foi estruturado às pressas. “Não fosse a proximidade
do Guido, não teria saído. Foi pela pressa que saiu caro, cinco anos e tudo.
Era o que tinha”, disse Joesley aos procuradores.
Quando chegou ao
BNDES, o Friboi já era o maior frigorífico do país. Em 2005, abatia 15 mil bois
ao dia e faturava R$ 4 bilhões. Os Batista haviam arrumado a casa, formalizado
o faturamento e apresentavam três anos de balanço auditado e sem ressalvas, o
que os habilitava a tomar recursos em bancos de primeira linha. Por si só, o
porte da empresa e o projeto que apresentava justificavam o engajamento do
banco oficial na empreitada. Mas Joesley assegurou aos procuradores que já
nesse financiamento pagou a Vic Sandri comissão de 4%, algo que se repetiria em
todas as outras operações com o BNDES, segundo seu relato.
A compra da Swift
pelo Friboi aumentou a exposição da companhia, e também as críticas e, em certa
medida, o despeito de concorrentes. A vontade de Júnior Friboi de se candidatar
ao governo goiano pelo PSDB nas eleições do ano de 2006 só ampliava o número de
desafetos. Foi nesse contexto que, em 27 de novembro de 2005, uma semana após
anunciar a intenção de sua candidatura, Júnior Friboi se viu em maus lençóis.
“Nós, o Bertin, o Independência... os três põe o preço do boi em tudo quanto é
Estado. Mato Grosso nós peita... Nós sozinho regulou o preço. Estamos fazendo o
preço do Mato Grosso, e os outro acompanha”, gabava-se Júnior Friboi, sem saber
que estava sendo gravado.
A aquisição da
Swift argentina também estreitou os laços do Friboi com o americano J.P.
Morgan, que geria fundos que tinham fatia minoritária na companhia argentina.
Embora a JBS tivesse passado o ano de 2006 em negociações para a entrada do
BNDES como sócio, a executiva do J.P. Morgan Patrícia de Moraes convenceu a
empresa de que seria vantajoso listar as ações na bolsa paulista. Naquele
momento o mercado de capitais no Brasil vivia o ápice da euforia. Os bancos
disseram que os investidores pagariam o dobro do que o BNDES se dispunha a
pagar pelas ações e a JBS optou pela Bovespa.
“Foi o maior IPO do
Brasil até aquela data”, lembrou Sérgio Longo, à frente da operação como
diretor financeiro. Em março de 2007, a JBS levantou R$ 1,6 bilhão em troca de
23,8% de suas ações, sendo avaliada em R$ 6,8 bilhões. Ainda naquele mesmo ano,
que até hoje registra o recorde de aberturas de capital no Brasil, a operação
seria superada, em volume captado, por Redecard, BM&F e Bovespa. Quando a
JBS chegou à bolsa, os investidores estrangeiros demonstraram interesse
reduzido e as ações saíram por menos do que a companhia almejava e ainda caíram
no dia da estreia. Ainda assim, o Friboi dos Batista valia mais que Sadia e
Perdigão, cada uma cotada em torno de R$ 4 bilhões. “Eles mudaram de liga.
Deixaram de ser um açougue e passaram à primeira divisão”, sintetizou uma
pessoa que participou do processo. De quebra, a família Batista ainda embolsou
R$ 400 milhões com a parcela secundária da oferta, o que teria sido impossível
num aporte do BNDES.
Pouco tempo depois,
o J.P. Morgan bateu à porta da JBS outra vez. Colosso americano, a Swift estava
à venda e o banco ficara encarregado de encontrar um comprador. Como os recursos
do IPO não seriam suficientes para bancar um passo tão ousado, retomou-se o
plano de ter o BNDES como sócio.
A RELAÇÃO COM O
BNDES
Naquele momento,
num BNDES mais desenvolvimentista que o atual, alimentava-se a teoria, que
tinha a Gerdau como modelo, de que era preciso fomentar a internacionalização
das empresas brasileiras. A base teórica já existia dentro do banco desde antes
do governo Lula, mas ganhou força após sua eleição.
O apoio a processos
de fusão e aquisição no exterior fugia do papel mais clássico do banco, que era
de financiar a formação bruta de capital fixo dentro do Brasil, mas havia a
leitura de que empresas multinacionais têm acesso a mercados mais competitivos
e que existe transferência de conhecimento e de melhores práticas também para a
gestão das companhias nacionais.
O caminho natural
era realizar essas operações por meio da BNDESPar, pois, assim, o banco
beneficiaria empresas, mas também poderia participar do desejado retorno
positivo do investimento. Entre os setores que o banco listava como tendo
diferenciais competitivos em termos globais, estavam os de papel e celulose,
mineração e siderurgia, óleo e gás e alimentos. Desses, a BNDESPar só não
apoiava de forma relevante o último.
Ao mesmo tempo, o
governo lançava a política industrial batizada de Política de Desenvolvimento
Produtivo, que colocaria o setor de proteína animal como um dos principais a
serem apoiados, de forma a torná- lo o grande exportador do Agronegócio
brasileiro.
A equipe do BNDES
entendia que seu papel não era questionar a política definida por um governo
legitimamente eleito, mas executá-la. E foi assim que JBS e outras grandes
empresas do setor passaram a ser candidatas diretas a receber aportes do
governo para seu programa de crescimento e internacionalização. Entre 2007 e
2012, a BNDESPar deu apoio financeiro de R$ 12,4 bilhões a cinco empresas do
setor. Além da JBS, foram beneficiados Bertin, Marfrig, BRF e Independência.
Aos olhos do BNDES, as empresas tinham características distintas. O Bertin tinha
como marca a diversidade, pois usava tudo do boi. Além da carne, produzia
sabonete, biodiesel, colágeno, farinha de osso e até fabricava latas onde
vendia “corned beef”, carne enlatada que faz sucesso nos EUA.
A Marfrig tinha
origem no “foodservice”, vendendo carne diretamente para restaurantes e
churrascarias, e resolveu se verticalizar comprando frigoríficos quando
percebeu que seus fornecedores tentavam cortar uma etapa da cadeia e vender
diretamente a seus clientes. Tinha margem maior, mas essa característica lhe
exigia mais capital de giro e implicava em ciclo mais longo para geração de
caixa.
O Independência,
acreditava o BNDES, era a referência em governança e teria a melhor percepção
do mercado. Tinha site de relações com investidores mesmo antes de abrir o
capital, remunerava melhor os fornecedores que tinham práticas sustentáveis,
possuía certificações do tipo ISO e ostentava margens mais altas que os
concorrentes. No futuro, o banco alegaria que havia fraudes contábeis. Quando o
Independência quebrou em 2012, anos após receber aporte de capital do banco
estatal, foi comprado por ninguém menos que JBS. “O JBS salvou a pele do
BNDES”, disse o ex-presidente de um frigorífico concorrente.
A JBS era vista
como empresa de alta produtividade, que funcionava como um relógio no que
fazia, mas que tinha o negócio focado em vender carne in natura, sem valor
agregado.
Em junho de 2007,
pouco depois do IPO, a BNDESPar concordou em apoiar a aquisição da Swift nos
EUA, por US$ 1,5 bilhão — incluindo assunção de dívidas. E aportou R$ 1,14
bilhão em aumento de capital privado com preço por ação estabelecido em R$ 8,15
– baseado na média dos 30 pregões anteriores, mais ágio de R$ 0,50. Mas não
entrou sozinho. Os controladores colocaram R$ 303 milhões e investidores
privados, que tinham acabado de injetar dinheiro no IPO, acompanharam
maciçamente a operação e aplicaram mais R$ 414 milhões, mantendo sua fatia no
capital.
Maior especialista
em operação de frigoríficos na família, Wesley mudou-se para Greeley, no Estado
americano do Colorado. Nos EUA, demitiu dezenas de diretores da Swift e
reorganizou o negócio. Em mais de uma ocasião, Wesley ressaltou que a Swift
precisava de um choque. Conhecidos pela alta produtividade de seus negócios, os
Batista conseguiram, em menos de um ano, reverter o resultado negativo que a
Swift exibia, o que os animava a repetir a dose.
Wesley tomou pé da
situação da indústria americana, que estava em frangalhos. Assolados por má
gestão e sobretudo pela crise financeira que se acentuaria com a quebra do
Lehman Brothers, os frigoríficos americanos se tornaram alvo do assédio
brasileiro. Reforçados pelo BNDES e pelo real apreciado, JBS e rivais como a
Marfrig foram às compras.
Se a compra da
Swift deu à JBS a posição de terceiro maior produtor de carne dos EUA, a
aquisição da Smithfield Beef e da National Beef a colocaria em primeiro lugar
no ranking americano, com mais de 30% da capacidade de abate naquele país. E
foi para financiar esse salto nos EUA e também a compra da Tasman Group, na
Austrália, que a JBS chamou novamente o BNDES no início de 2008.
Desta vez, como
suas ações não estavam nos melhores dias, a JBS informou que fixou o preço de
emissão dos papéis em R$ 7,07 por ação, com base na média dos últimos 120 dias
de pregão, período bem acima do usual, com cotação 10% acima daquela observada
no dia do anúncio do negócio. Os R$ 7,07 também estavam 33% acima da cotação
média dos últimos 30 dias, parâmetro que costuma ser usado nesse tipo de
operação. O plano era captar R$ 2,55 bilhões. O banco justifica que seu
parâmetro nessas operações de compra de participação não é a cotação da empresa
em bolsa (que é observada), mas, sim, fluxo de caixa descontado, que é o
parâmetro mais usado por investidores de longo prazo como a BNDESPar, e já
considerando os efeitos da aquisição que seria feita com o dinheiro captado.
Apesar do preço
salgado, de novo o BNDES não entrou sozinho. A maior parte dos investidores
privados acompanhou o aumento de capital e aportou mais R$ 520 milhões na JBS. O
banco investiu R$ 336 milhões diretamente e mais R$ 661 milhões via um fundo de
participações criado especialmente para a transação. Segundo Joesley em
depoimento aos procuradores, Luciano Coutinho, presidente do banco, considerou
o investimento alto demais e sugeriu que se chamasse os fundos de pensão das
estatais a participar.
José Cláudio Rego
Aranha, então chefe de mercado de capitais do BNDES, procurou a Angra Partners
e solicitou a criação do FIP Prot, de proteína. A Angra já havia trabalhado com
o banco e com Previ (Banco do Brasil) e Funcef (Caixa) na reestruturação
financeira e venda da Brasil Ferrovias para a América Latina Logística entre
2005 e 2006. A ideia era atrair Previ, Funcef e Petros (Petrobras) para a JBS.
“A Previ declinou”, disse Joesley.
RETORNO DO BNDES COM INVESTIMENTOS NA JBS
Uma pessoa próxima
à Previ na época diz que o fundo conseguiu segurar a pressão do governo para
entrar na JBS alegando que já estava muito maduro do ponto de vista atuarial,
com elevado percentual de renda variável em carteira, além de já estar exposto
ao setor por meio da BRF. “Seguraram a pressão com base nas políticas internas
bem construídas”, disse esse executivo. Anos depois, novamente a Previ seria o
único dos três fundos a ficar de fora do aporte na Eldorado Celulose, da
família Batista. “A avaliação que se fazia da Eldorado é que estava inflada do
ponto de vista do preço da celulose e volume de produção”, relatou uma pessoa
com participação no episódio. O investimento de Petros e Funcef na Eldorado,
por meio do FIP Florestal é investigado pela Operação Greenfield da Polícia
Federal.
Aos procuradores,
Joesley relatou que pagou propina aos dirigentes das duas fundações. “Guido era
o coordenador dos fundos Funcef e Petros”, disse, completando que nas operações
envolvendo as fundações, 1% ia para os dirigentes delas, 1% para o PT, por meio
de João Vaccari Neto, e 1% ele creditava na chamada “conta mãe” de Guido
Mantega. “Eu conheci os dirigentes dos fundos nessa operação (Prot)”, disse. O
empresário afirmou não se recordar se já nesse aporte houve pagamento aos
dirigentes Wagner Pinheiro, da Petros, e Guilherme Lacerda, da Funcef. “Com
certeza no próximo negócio em diante começou.”
No FIP Prot, a
BNDESPar ficou com 45% das cotas — cabendo a parcela restante, de R$ 790
milhões, aos fundos de pensão Petros e Funcef. A J&F entrou com R$ 252
milhões.
BERTIN, UM PROBLEMA
Na JBS, se
dependesse apenas do BNDES, os aportes se resumiram aos R$ 2,2 bilhões alocados
para impulsionar a internacionalização da JBS, compatíveis com o apoio dado ou
previsto para outras empresas do mesmo setor. Mas dois fatores motivariam um
terceiro aporte na empresa, elevando o compromisso total aos conhecidos R$ 8,1
bilhões — cifra que inclui R$ 2,5 bilhões originalmente investidos no Bertin.
O de menor peso foi
o fato de o Departamento de Justiça americano ter barrado a compra da National
Beef, citando problemas concorrenciais. Como a injeção de capital de 2008 tinha
como um dos destinos a compra também dessa empresa, o banco poderia ter pedido
parte do dinheiro de volta, conforme opção de venda prevista em contrato. Mas
havia outras empresas baratas disponíveis por causa da crise do subprime nos
EUA, e o BNDES aceitou adiar para 2010 a validade da opção de venda, dando mais
prazo para a JBS fazer uma aquisição que se encaixasse no racional econômico da
National Beef.
No fim de 2009, a
produtora de frangos Pilgrim’s Pride, em processo de recuperação judicial,
surgiu no radar. Diversificar as operações pelos quatro cantos do planeta era o
jeito de diluir riscos sanitários e geográficos. Se o Brasil sofria restrições
internacionais devido ao status de risco de febre aftosa, a Austrália e os EUA
estavam livres. Se consumo de carne bovina patina, por que não produzir
frangos? A entrada em alimentos processados com marca, mais adiante, seguiria a
mesma lógica.
O capítulo
Pilgrim’s retrata algo que fica claro nos relatos de concorrentes e parceiros
da JBS: a falta de ousadia de outras empresas nacionais deixou o caminho aberto
para que os Batista avançassem internacionalmente. Quando a processadora de
frangos americana entrou em apuros, Luciano Coutinho chegou a incentivar
Nildemar Secches, da Perdigão, a fazer a aquisição. Mas ouviu como resposta que
a empresa não daria conta de aventurar-se no exterior ao mesmo tempo em que
fazia a fusão com a Sadia, que havia quebrado por conta de apostas pesadas em
derivativos cambiais em 2008.
A compra da
Pilgrim’s sairia mais cara que a da National Beef para a JBS, o que talvez
justificasse o complemento ao aporte feito em 2008, para reforçar a estrutura
de capital, ainda que a empresa não fosse extrapolar limite de indicador
financeiro previsto em contratos de financiamento se fizesse apenas essa
aquisição. Mas o que realmente motivou o BNDES a fazer o terceiro aporte foi o
fato de a JBS, em paralelo à compra da Pilgrim’s, negociar a fusão com a
brasileira Bertin. Ao se juntar com o antigo concorrente, a JBS minimizava o
risco de que o BNDES tivesse que reconhecer perda com o investimento de R$ 2,5
bilhões na compra de 27,1% das ações do Bertin em 2008.
Pouco depois do
aporte do banco, o Bertin começou a apresentar resultados negativos, atribuídos
a perdas com derivativos, mas, principalmente, à restrição de crédito e perda
de foco da administração, uma vez que os controladores tinham investido em
diferentes projetos de infraestrutura, notadamente em energia.
Embora funcionários
do BNDES tenham alegado que havia alternativas para salvar o investimento no
Bertin, que não a associação com a JBS, a proposta da família Batista, de R$ 10
bilhões pelo capital — praticamente a mesma avaliação feita pelo banco um ano
antes —, era muito superior aos R$ 4 bilhões que a Marfrig oferecia. Outra vez,
a JBS compraria um grande frigorífico tirando das costas do BNDES o ônus que
sua quebra lhe acarretaria. “A relação com o BNDES se solidifica com o Bertin.
As compras no exterior foram mérito dos Batista e, até então, havia vários
campeões do setor”, pontuou o executivo de um banco.
O que até hoje
suscita dúvidas é o que levou à avaliação por preço tão alto de uma empresa com
percepção de risco grande, a despeito das razões estratégicas e ganhos de
sinergia que a JBS pudesse alegar para fechar o negócio do Bertin. Havia ainda
o mistério sobre a acionista Blessed, uma offshore cujo beneficiário final
nunca foi conhecido e que surgiu na estrutura societária da empresa logo após a
fusão. Esses ingredientes alimentaram a suspeita de fraude na transação, como
alega a Receita Federal.
“Numa operação de
fusão com troca de ações, é comum que avaliações sejam infladas, porque isso
cria uma companhia resultante com maior valor de mercado”, diz um executivo que
participou da fusão entre JBS e Bertin. Outro executivo diz que,
posteriormente, houve um ajuste de preços. “A JBS encontrou mais esqueletos do
que imaginava e, por isso, os Batista compraram o restante das ações dos Bertin
por preço mais baixo, irrisório”, relatou. “Os Bertin ficaram com 42% da
holding de controle e sem cláusula de saída. Ficaram reféns dos Batista”,
narrou executivo próximo aos Bertin.
Tomando essa versão
como base, teria havido prejuízo aos minoritários da JBS, que não se
beneficiaram do ajuste posterior. Ao considerar um valor mais alto para o
ativo, porém, também foi originado um maior ágio na incorporação, com
benefícios fiscais igualmente partilhados pelos minoritários.
Quanto à Blessed,
que foi objeto de briga entre as duas famílias, duas pessoas com conhecimento
do assunto dizem que foi criada para que parte do pagamento aos Bertin pudesse
ser feita com dinheiro não declarado que os Batista mantinham no exterior. Na
largada, a Blessed reproduziria a mesma composição acionária da holding de
controle das duas famílias no Brasil, a FB Participações. Posteriormente, os
Batista também teriam comprado as ações restantes. Reforça a tese o fato de
Wesley e Joesley terem declarado a compra das ações da Blessed em 31 de outubro
de 2016, último dia do programa de anistia promovido pelo governo para
regularização de recursos não declarados no exterior.
Oficialmente para
sustentar a compra da Pilgrim’s, mas também para dar fôlego financeiro para a
JBS assumir a Bertin, o BNDES acabou fazendo o terceiro aporte, de US$ 2
bilhões (ou R$ 3,4 bilhões, na época), em dezembro de 2009. Mas dessa vez não
houve aumento de capital tradicional — e nem a participação de investidores
minoritários privados, que não precisavam se desfazer do problema Bertin.
O instrumento usado
foi uma debênture mandatoriamente conversível em ações. A primeira opção
prevista era a conversão em ações da JBS USA, que deveria abrir o capital até
dezembro de 2010. Caso isso não ocorresse, a JBS pagaria uma espécie de multa
de 15% sobre o valor aportado, e ganharia mais um ano para fazer o IPO da
unidade americana. Em duas hipóteses a conversão seria na JBS S.A., no Brasil:
se a multa não fosse paga ou se, após dois anos, no fim de 2011, não tivesse
havido a abertura de capital da subsidiária dos EUA.
“Quem se mudou para
os EUA para fazer a integração das empresas? O Wesley, o irmão mais pé no
chão”, disse um ex-executivo do BNDES
Poucos meses
depois, já em maio de 2010, a JBS indicava que não levaria adiante o plano do
IPO da JBS USA, tendo optado por fazer nova chamada de capital — desta vez por
oferta pública de ações, subscrita totalmente por investidores de mercado, sem
participação do BNDES, em que captou mais R$ 1,6 bilhão. E, de fato, a abertura
de capital não ocorreu nos EUA, o que levou a um momento de estresse na relação
entre os irmãos Batista e o BNDES.
Em dezembro de
2010, Joesley não queria pagar a multa de R$ 522 milhões. Conforme relatos,
Coutinho foi firme em defender a posição da área técnica de que não havia
negociação. Sem a multa paga, o BNDES converteria as debêntures em ações da JBS
no Brasil.
Joesley saiu da
reunião sem confirmar que iria pagar. No dia 26 de dezembro, a companhia
divulgou fato relevante com duas informações. A primeira dizia que a empresa
havia iniciado o pagamento dos prêmios aos debenturistas na antevéspera do
Natal. A segunda dava conta de que havia negociação avançada para substituir as
debêntures por outra, no valor de R$ 4 bilhões, com prazo de cinco anos, juros
de 8,5% ao ano e preço de conversão de R$ 9,50 por ação ao fim do período.
Mas o “estágio
avançado” de negociação citado pela JBS, segundo pessoas próximas da transação,
não era tão avançado assim. Tanto que a saída encontrada foi outra, por meio de
aumento de capital em que as debêntures puderam ser usadas para subscrição, a um
preço de R$ 7,04 por papel, em maio de 2011.
Esta teria sido a
primeira de duas vezes que a JBS tentou usar o mercado para fazer valer uma
posição sua não totalmente negociada com o BNDES. A segunda foi no anúncio do
plano de transferir a sede da empresa para a Irlanda, no ano passado, que
também acabou sendo frustrada pelo acionista estatal. A reorganização
societária, que previa ainda a instalação de domicílio fiscal no Reino Unido e
a migração dos negócios com as ações para a bolsa americana, foi informada ao
mercado, e muito bem recebida, em maio de 2016. Mas não havia sido combinada
com a BNDESPar, que tinha direito de veto.
Embora a
administração da empresa se esforçasse para destacar a redução de custo de
capital que a mudança de sede traria para o grupo, o impacto fiscal da
reestruturação, desenhada pela PwC, também seria relevante. Bom para a empresa,
mas ruim para a arrecadação no Brasil. Além disso, o papel do banco de fomento
de desenvolver o mercado de capitais brasileiro poderia ser questionado se a
liquidez com as ações da “campeã nacional” deixasse o mercado local.
Mais uma vez,
Joesley teria usado sua proximidade com o poder para influenciar a decisão. Na
conversa gravada com Michel Temer (PMDB) no Palácio do Jaburu na noite de 7 de
março, o empresário diz ao presidente que o ex-ministro Geddel Vieira Lima
(PMDB) havia lhe relatado “todo empenho e esforço” sobre “aquela operação” que
envolvia o BNDES. E Temer retruca dizendo que ele, pessoalmente, havia tratado
do assunto com a então presidente do banco, Maria Silvia Bastos Marques. O
banco confirma o encontro de Temer com a executiva para tratar do assunto em 24
de outubro. Mas nega que o presidente tenha solicitado que a diretoria
alterasse sua decisão.
Naquele dia 24,
contudo, apenas BNDES e JBS sabiam da posição do banco. Dois dias depois do
encontro a companhia divulgou fato relevante expondo a oposição do banco à
transação. Para uma fonte, a mera existência da reunião com Temer seria uma
forma de pressão. Conforme agenda oficial de Maria Silvia, aquele foi o segundo
encontro com o presidente da República desde a posse dela em junho de 2016, o
que seria indicativo de que não era praxe o chefe do Executivo se envolver
diretamente em decisões da BNDESPar.
Após a família
Batista ser contrariada, a saída anunciada no início de dezembro, com apoio do
BNDES, foi a listagem de ações da subsidiária JBS Foods International, nos EUA.
Mas mantendo a sede da JBS S.A. no Brasil e suas ações na bolsa brasileira B3.
“Não deu de um jeito, mas deu do outro, tá e pronto, deu certo”, afirmou
Joesley a Temer no Jaburu.
À PGR, Joesley
revelou que pagou propinas de US$ 150 milhões referentes a contratos no BNDES,
a maior parte para internacionalização da JBS. Não fossem as declarações do
próprio empresário atestando que a liberação de recursos foram acompanhadas de
pagamentos a Mantega, muitos custariam a acreditar, apesar dos questionamentos
levantados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e que embasaram a Operação
Bullish. Deflagrada pela PF poucos dias antes de a delação dos Batista ser
conhecida, a operação investiga aportes do banco no grupo.
À PGR, Joesley
disse ter certeza de que os pagamentos a Mantega foram fundamentais para
aprovar os aportes, e ao mesmo tempo procurou isentar de irregularidades Luciano
Coutinho, que assumiu a presidência do BNDES em maio de 2007, e o corpo técnico
do banco. O empresário relatou sempre ter recebido um tratamento duro da área
técnica e também de Coutinho. Pessoas com conhecimento do assunto relatam ter
ocorrido ao menos uma reunião em que Mantega convocou Coutinho para conversar e
o surpreendeu com a presença de Joesley. Teria sido tentativa de pressionar o
presidente do BNDES. O empresário menciona o encontro no depoimento, dizendo
que Coutinho ficou “claramente constrangido”.
Em recente
entrevista à revista “Época”, Joesley disse: “Era só o Guido dizer no BNDES que
não era mais do interesse do governo investir no Agronegócio. Pronto. Bastava a
mudança de diretriz de governo para acabar com o nosso negócio. O trabalho
técnico pode fazer todo sentido, mas vai por água abaixo se não houver diretriz
de governo”, afirmou.
Haveria ainda uma
segunda possibilidade de pagamento de propina para liberação de recursos sem
que a direção e o corpo técnico do banco tivessem conhecimento. Quando
operadores, ou “vendedores de vento” se colocam no papel de consultores ou
assessores que ajudariam na captação de recursos do banco. Esse teria sido o
papel de Vic Sandri, o amigo de Mantega.
Depois que os
projetos que dão entrada no BNDES em busca de crédito ou capital passam por
todo o périplo técnico padronizado e chegam à diretoria para aprovação, pode
acontecer de serem retirados temporariamente de pauta, caso haja dúvidas por
parte dos diretores. Em tese, tal procedimento poderia abrir espaço para que
pressões exercidas sobre a direção do banco surtissem algum efeito prático.
Segundo Joesley, essa era a lógica que imperava na Caixa,quando o grupo J&F
buscava empréstimos ou aportes do FIFGTS. O operador Lúcio Funaro, ligado a
Eduardo Cunha e ao vice-presidente da Caixa Fábio Cleto, indicado por Cunha,
cobrava comissão para que os projetos não fossem retirados de pauta. O mesmo se
dava com Odebrecht.
Segundo Luciano
Coutinho, essa fragilidade de procedimentos não ocorre no BNDES, onde um projeto
só pode ser retirado de pauta em decisão colegiada e se técnicos convocados não
conseguirem sanar dúvidas. Assim, não há condições objetivas para que pressões
externas sobre participantes do colegiado alterem propostas técnicas que
envolvem dezenas de pessoas.
A sociedade com o
BNDES conferiu credibilidade aos negócios dos Batista e levou outros
investidores a ampliarem sua aposta na empresa. O J. P. Morgan cumpriu papel
semelhante. Entre 2005 e 2012, esteve na maioria das operações da JBS: emissão
de bônus no exterior, no IPO, na compra da Smithfield Beef nos EUA, na fusão
com o Bertin e também na operação de troca de ações da Vigor pela JBS, em 2012.
Em algumas operações o banco fracassou, como a tentativa de aquisição da
americana Sara Lee, em 2011.
A JBS arrendou um
frigorífico e não o abriu até o fim do arrendamento para regular a oferta de
boi para a unidade de Alta Floresta, diz Navarro
O J.P. Morgan
chegou a ter exposição de quase US$ 1 bilhão em empréstimos à JBS na fase áurea
do relacionamento com a empresa, e os Batista, grandes empresários também nos
EUA, mantiveram relacionamento direto com o CEO global do banco, Jamie Dimon.
Mas a relação estremeceu quando a Hillshire Brands, dos EUA, foi colocada à
venda em 2014. A JBS participou do processo por meio da controlada Pilgrim’s,
mas o J.P. Morgan escolheu assessorar a rival Tyson Foods, que acabou fechando
a aquisição. Enquanto a JBS só queria dar ao banco a estruturação do
financiamento, a Tyson topou contratar o financiamento e a assessoria
financeira, assegurando receita maior ao J.P. Morgan. A partir daí, houve um
afastamento, inclusive com redução das linhas de crédito.
Mais recentemente,
Patrícia de Moraes vinha tentando comprar a Vigor, colocada à venda pelos
Batista, para a americana Pepsico. O registro de ligações do celular de
Joesley, anexado à delação premiada do executivo, indicou dezenas de
comunicações com a banqueira.
Desde a delação dos
irmãos Batista, o clima no J.P. Morgan ficou tenso e o banco abriu investigação
para se certificar de os negócios e procedimentos foram realizados segundo as
regras de conformidade adotadas pela instituição. “O banco está paranoico,
porque se assustou com o tamanho do problema”, disse uma fonte a par do
assunto.
BRASÍLIA DE NOVO
Em 10 de dezembro
de 2014, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou por unanimidade, porém com
ressalvas, as contas da campanha de Dilma Rousseff. Ao declarar o resultado, o
então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, criticou o alto custo das
campanhas. “Só nas campanhas de Dilma e Aécio foram gastos R$ 573 milhões”,
disse. Sem citar nomes, afirmou que “não pode ser aceito como normal” uma
empresa que tem empréstimos de bancos públicos, como o BNDES, doe R$ 353
milhões para candidatos de diferentes partidos. “Isso é abuso de poder
econômico. É uma tentativa de compra do Parlamento”, afirmou, em clara
referência à JBS.
O discurso
revelou-se profético. Dois anos depois, em 2017, as delações trariam à luz
propinas de R$ 1 bilhão. Segundo o ex-diretor de relações institucionais da
J&F, Ricardo Saud, as doações beneficiaram 1.829 candidatos de 28 partidos.
A empresa elegeu 167 deputados federais de 19 legendas, além de ter contribuído
para a vitória de 28 senadores e 16 governadores.
A partir do segundo
mandato de Lula, suas relações com o PMDB se estreitaram. E o grande agente
dessa aproximação foi Saud. Ele ficou conhecido nacionalmente como “o homem da
mala da JBS”, depois das imagens gravadas pela Polícia Federal que o mostraram levando
mala com R$ 500 mil ao deputado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). Segundo as
gravações apresentadas por Joesley à PGR, Loures teria sido indicado por Temer
como seu emissário. Braço direito de Joesley em Brasília, Saud foi diretor do
Departamento de Cooperativismo e Associativismo (Denacoop) do Ministério da
Agricultura durante a gestão de Wagner Rossi, de janeiro a agosto de 2011.
Entre 1999 e 2000, Rossi esteve à frente da Companhia Docas do Estado de São
Paulo (Codesp), antigo feudo do atual presidente da República. Além disso, é
pai do deputado Baleia Rossi (SP), atual líder do PMDB na Câmara. Na delação,
Joesley afirmou ter sido apresentado a Temer por Rossi ainda ministro, em 2010.
O PMDB comanda a Agricultura desde 2007.
A parceria PMDB-JBS
no Ministério da Agricultura prosseguiu no governo Dilma. Joesley revelou que
ele, Cunha e seu operador, Lúcio Funaro, intermediaram a nomeação do advogado
Rodrigo Figueiredo para o posto de secretário de Defesa Agropecuária em 2013.
Segundo Joesley, Figueiredo assinou “atos de ofício” que favoreciam a J&F e
renderam propinas de R$ 7 milhões a Funaro e Cunha.
Joesley, por sua
vez, “utilizava os cargos para provocar desgaste na fiscalização”, relatou uma
fonte. “Para fortalecer os interesses dele, Joesley não utilizava políticos do
Congresso. Utilizava a Casa Civil, o ministro da Agricultura. Coisas diretas”,
diz a mesma pessoa. “Os Batista sempre acharam que parlamentar e nada era a
mesma coisa. Só financiaram porque alguém falou para financiar. Alguém quem? Eduardo
Cunha, Temer, Lula, Dilma...”
O esquema no
Ministério da Agricultura foi interrompido com a nomeação de Kátia Abreu como
titular da pasta. Joesley fez forte lobby junto ao então ministro-chefe da Casa
Civil, Aloizio Mercadante, para que a presidente não a nomeasse. Em vão: Kátia
demitiu Figueiredo na primeira semana como ministra.
Joesley contou ter
pago R$ 30 milhões a Cunha, principal agente do impeachment, para comprar
deputados em sua eleição à Presidência da Câmara. Mas a crise econômica e a avalanche
provocada pelos desdobramentos da Lava-Jato acabaram por desfazer a parceria
dos Batista com a “Orcrim da Câmara”.
As doações da JBS,
superiores a de bancos e construtoras, chamou atenção nas eleições de 2014. A
situação exigia mudança. Na JBS, a avaliação era que, depois de tantos erros do
passado, Wesley tentou zerar o jogo. Mas esbarrou em Joesley. Em agosto de
2014, a JBS anunciou a contratação de Wilson Mello Neto, egresso de Wal-Mart e
BRF, para o cargo de diretor de relações institucionais. Nos poucos meses em
que ficou na empresa, o executivo falou em alterar o modo como doava recursos a
políticos. “Não podemos doar tão mais que o Bradesco e precisamos doar com
critério técnico”, defendeu. Mas seus planos não prosperariam.
No relacionamento da
empresa com os governos, Mello passou a “bater cabeça” com Ricardo Saud. “Ele
ia ao ministério e o Ricardinho já tinha abordado o tema. O contrário também
acontecia”, disse uma pessoa. Mello tentou emplacar projetos que aprimorassem a
governança, mas sempre esbarravam em Joesley. Mello procurou Wesley e afirmou
que não poderia seguir daquele modo e deixou a empresa. “Imagina se o Joesley
ia abrir mão? Era tirar 90% do poder do Ricardinho”, disse a fonte.
Outro caso
intrigante foi o de Marcel Fonseca, da GE Healthcare, contratado em 2015 para
estruturar a área de compliance da JBS. A empresa anunciou com pompa a chegada
do executivo, quando a Lava-Jato já tangenciava seus negócios. Fonseca ficou
apenas um ano na JBS. Sua saída, alegadamente por razões pessoais, não foi
anunciada e tampouco um substituto foi contratado. A área só voltou a ter chefe
após as delações, com a chegada de Marcelo Proença.
CONCENTRAÇÃO E DIVERSIFICAÇÃO
Aos poucos, a JBS
constituiu plataforma que fazia inveja nos concorrentes. No auge, antes das
delações, em 2016, as vendas da companhia ultrapassaram R$ 170 bilhões, o maior
faturamento de empresa não financeira de capital brasileiro. Líder na Austrália
e uma das três maiores dos EUA, a JBS também estabeleceu uma base no Reino
Unido, de onde pretendia construir o maior negócio de carnes do Velho
Continente.
A concentração de
mercado em suas mãos provocou incômodos. No início de 2012, o setor de carne
bovina estava em polvorosa. A cada semana, nova ofensiva da JBS. Arrendamentos
e aquisições de frigoríficos de carne bovina em série. Incomodados com a
situação, os pecuaristas decidiram agir. Na Câmara dos Deputados, Ronaldo
Caiado (DEM-GO) chamou a atenção para o processo de concentração: estava em
formação um oligopsônio.
Como fez nos 90 com
os frigoríficos de carne bovina, a JBS avançou sobre escombros. Em 2012,
adquiriu a Doux Frangosul no RS
“Pagam o aluguel do
frigorífico para manter fechado”, disse José Evandro Navarro, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Frigoríficas do Portal da Amazônia,
região norte de Mato Grosso. Neste ano, o relatório final da CPI dos
Frigoríficos da Assembleia de Mato Grosso chamou atenção para a concentração de
mercado. Considerando os abatedouros abertos e fechados, a JBS controla mais de
50% da capacidade de abate de bovinos no Estado.
Segundo Navarro, a
JBS arrendou um frigorífico em Nova Monte Verde (MT) em 2012 e nunca o abriu
até setembro do ano passado, quando o arrendamento foi encerrado. Com isso,
conseguia regular a oferta de boi para o frigorífico de Alta Floresta,
criticou.
Entre os
pecuaristas, o Cade é o alvo preferencial de críticas por permitir a
concentração. “O Cade falhou e o tempo cobrou”, lamentou o diretor-executivo da
Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), Luciano Vacari, ressaltando
que os pecuaristas do Estado agora sentem os reflexos da falta de opções de
frigoríficos.
Para um executivo
da indústria, o erro do Cade está calcado em uma teoria que já foi esposada por
conselheiros do órgão. Em 2011, o conselheiro Ricardo Ruiz impôs a venda de
fábricas e marcas como condição para o aval à união da Sadia e Perdigão, que
deu origem à BRF. A venda serviria para reestabelecer o “duopólio virtuoso” que
havia quando Sadia e Perdigão concorriam, argumentou Ruiz. “Acredito que em
bovinos também pensaram nisso, mas a JBS foi muito mais rápida que os
concorrentes e, ao invés de um duopólio, temos um monopólio”, disse.
O peso da agressividade
e determinação do grupo foi sentido pelos concorrentes no setor de aves. “Vi o
movimento deles crescendo no boi e tive a certeza de que iam entrar no frango.
Quando eles compraram a Pilgrim’s, imaginei que fossem gostar do brinquedo e
vir para o Brasil também.” Assim o presidente do conselho de administração da
mineira Pif Paf, Luis Carlos Costa, recorda o processo de diversificação de
proteínas da JBS, da carne bovina para a área de frango e alimentos com marca.
Em meados de 2012,
Wesley sinalizou que a hora de mexer também com frango no Brasil chegara. Ao
Valor, afirmou que poderia concorrer, de igual para igual, com a líder BRF,
dona das marcas Sadia e Perdigão, e também com a Seara, controlada pela
Marfrig.
Para um setor
assolado pela severa estiagem que atingira os EUA, fazendo o preço do milho
bater recorde, a chegada de um competidor capitalizado era uma “bênção”,
lembrou uma pessoa da área. Líder, a BRF estava impedida pelo Cade de fazer
aquisições. Endividada, a Marfrig também não tinha muito fôlego.
Assim como fez na
década de 90 com os frigoríficos de carne bovina, a JBS avançou sobre
escombros. A primeira aquisição na área de frango aconteceu no primeiro
semestre de 2012, com a compra das operações da Doux Frangosul no Rio Grande do
Sul. De origem francesa, o grupo estava quebrado e já tinha dificuldades para
fornecer ração para o frango dos produtores. “Os integrados estavam
desesperados. Foi um milagre para integrados e para os funcionários”, lembrou
um executivo.
Em 2013, o tamanho
das aspirações da JBS no segmento de aves e suínos ficaria claro. Em fevereiro
daquele ano, anunciou a contratação de Gilberto Tomazoni, ex-presidente da
Sadia. Já se sabia que a alavancada Marfrig poderia ter de abrir mão da Seara.
E para concorrer com Sadia e Perdigão como desejavam, os Batista precisavam de
uma marca e de base de produção. A Seara era o movimento da vez para a JBS.
Enquanto
acompanhava o desdobramento da crise na concorrente, Joesley pressionou a Caixa
a não liberar financiamentos à Seara. Naquele momento, o empresário já se valia
da parceria que mantinha com o operador Lúcio Funaro e Eduardo Cunha, que
comandava postos-chave no banco estatal. A Marfrig, pressionada por dívidas,
vinha negociando com a Caixa um empréstimo de R$ 1 bilhão, em quatro “tranches”
de R$ 250 milhões, mas o negócio parou na fase final de liberação.
Recentemente, a revista “Época” informou que Funaro incluiu esse episódio entre
os casos que pretende contar em sua delação.
Diante da
necessidade de recursos, a Marfrig chegou a um entendimento com a JBS para
vender a Seara e também a uruguaia Zenda, de couros, por R$ 5,8 bilhões.
Anunciada ao mercado em junho de 2013, a transação foi oficializada em setembro
daquele mesmo ano, após o aval do Cade. Assim que firmou as bases do acordo com
a Marfrig, Wesley incumbiu Tomazoni de planejar a reestruturação da Seara
Brasil, um negócio sabidamente ineficiente. Para resolver o problema, nada
melhor do que buscar reforços na líder BRF. Melhor ainda se a concorrente
abrisse mão de pessoas-chave.
Sob novo comando
desde abril de 2013, quando Abilio Diniz assumiu a presidência do conselho de
administração, a BRF estava decidida a fazer um corte de custos, e de pessoas.
“Teve muita gente que foi maltratada dentro da BRF. Nós erramos”, admitiu um
executivo próximo.
Explorando esses
flancos, a Seara contratou cerca de cem pessoas diretamente da BRF, de quase
todas as áreas, do marketing à qualidade de produção. Algumas eram executivos
que, demitidos pelo novo comando da BRF, decidiram não aceitar acordo de não
competição para reforçar o time da concorrente. Outros executivos foram
buscados a peso de ouro dentro da rival, o que provocou desconforto e chegou a
ensejar reclamação formal da BRF. Dada a instabilidade vivida pela BRF, os
executivos recém-chegados à Seara incentivavam antigos parceiros a se
incorporarem. “Trouxe umas 30 pessoas. Elas estavam inseguras e conheciam o meu
trabalho”, afirmou um colaborador.
Com a equipe
reforçada, a Seara tratou de reformular os produtos vendidos nas gôndolas e
fazer um pente-fino na estrutura de custos agropecuários. Sob a Marfrig, a taxa
de ganho de peso dos frangos da Seara era recorde, mas gastava-se muito com
aditivos e medicamentos. “Eles trabalhavam com o conceito de indicador técnico.
Mudamos para o indicador econômico”, afirmou um ex-executivo da Seara.
Faltava
reposicionar a Seara perante os consumidores. “A JBS tinha bala na agulha.
Contrataram o Washington Olivetto. Junto com o Bernstein, eles tiveram a sacada
de contratar a Fátima Bernardes”, afirmou um executivo de uma grande rede
varejista, citando o diretor de marketing da Seara, Eduardo Bernstein. O
executivo foi um dos que saíram nos cortes da BRF.
No varejo, a JBS
contou com a boa vontade dos supermercados para impulsionar a marca Seara,
disseram três executivos desse setor. Para o varejo, era bom ter uma marca que
competisse com Sadia e Perdigão, pois representaria margens melhores. Eles se
ressentiam da arrogância “monopolista” da BRF.
WHY NOT?
Os Batista já eram
grandes em carnes quando decidiram ir além. Não foram poucos os parceiros de
negócios que ouviram o empresário Joesley Batista descrever o plano de
transformar a holding J&F numa Berkshire Hathaway à brasileira. A Berkshire
é a lendária empresa de investimentos do megainvestidor americano Warren
Buffet, que tem participações em companhias tão diversas quanto uma seguradora
e uma fabricante de ketchup. Joesley tentou convencer o BNDES a ser sócio
também da J&F para a empreitada, mas a ideia não foi sequer encarada com
seriedade no banco. “Ele queria ser o Warren Buffet, mas ele não é. Era uma
questão de tempo para que algo desse errado”, disse um banqueiro com quem
Joesley compartilhou suas ambições.
“O problema foi
quando o Joesley começou a dizer ‘why not?’”, disse outro executivo.
O uso constante da
expressão em inglês, que significa “por que não?” e batizou o iate de luxo
Azimut do empresário, para muitos sintetizou uma traiçoeira falta de limites de
Joesley, que teria levado o grupo à diversificação desmedida dos negócios, com
consequente necessidade de elevar a um novo patamar o endividamento e as
compras ilícitas de apoio político pelo grupo.
As delações dos
executivos da empresa confirmaram suspeitas que há muito pairavam de que na
construção da Eldorado Celulose, que entrou em operação em Três Lagoas (MS) no
fim de 2012, houve propinas pagas a dirigentes dos fundos de pensão Petros e
Funcef e também ao grupo de Eduardo Cunha para liberar recursos na Caixa e do
FI-FGTS.
No fim de 2015, a
propina também azeitou a liberação do empréstimo de R$ 2,7 bilhões da Caixa
para a J&F comprar o controle da Alpargatas, colocada à venda pelo grupo
Camargo Corrêa, atingido pela Lava-Jato. Com taxa de juro próxima à Selic e
prazo de cinco anos, o empréstimo teve as condições vantajosas vazadas e causou
furor no mercado financeiro. “Ali tivemos a certeza de que o grupo praticava
irregularidades”, disse o executivo de um banco estrangeiro.
Não se tem notícias
de ilícitos na aquisição, em novembro de 2011, do Banco Matone pelo Banco JBS,
hoje conhecido como Original. A transação, financiada pelo Fundo Garantidor de
Créditos (FGC), entretanto, foi cercada de polêmicas. A primeira diz respeito
ao financiamento do FGC em si. Enquanto o Matone precisava de R$ 650 milhões
para equacionar sua deficiência de capital, o fundo acabou dando ao Banco JBS
linha de R$ 1,85 bilhão para capitalizá-lo, por 15 anos, corrigida apenas pela
taxa Selic. Ou seja, para assumir o banco gaúcho, o JBS acessou funding de
longuíssimo prazo, por taxa bastante inferior ao seu custo de captação no
mercado. A operação total acabou sendo de R$ 2 bilhões, porque o FGC concedeu
outros R$ 150 milhões que foram usados para quitar dívidas do empresário
Alberto Matone com três instituições financeiras, já que as ações do Matone
haviam sido dadas em garantia. O fundo recebeu como garantia ações do
frigorífico JBS equivalentes, na ocasião, a R$ 3,5 bilhões, segundo uma pessoa
com conhecimento do caso.
“[Joesley] queria
ser o Warren Buffet, mas não é. Era questão de tempo para que algo desse
errado”, disse banqueiro com quem Joesley conversava
Meses depois, veio
a segunda polêmica, quando a JBS revendeu a Alberto Matone a rede de lojas
próprias que havia adquirido com o banco, deixando no ar a suspeita de que
nunca estivera de fato interessado em usar a plataforma do Matone para
desenvolver uma operação de crédito consignado, conforme chegou a anunciar. Com
enorme folga de capital, os executivos do banco passaram a buscar alternativas
para rentabilizar o dinheiro do fundo. Mais uma vez, Joesley espelhou-se em
exemplo do mercado financeiro. Ele e Emerson Loureiro tentaram, durante meses,
adquirir participações acionárias em empresas. Queriam copiar, em escala
reduzida, a estratégia do banqueiro André Esteves, do BTG Pactual, até aquele
momento considerada um sucesso.
Em março de 2012,
ao finalizar uma quarentena de um ano após ter deixado a presidência do Banco
Central, o atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, se juntaria ao grupo.
Segundo o ministro, ele foi membro do conselho consultivo da J&F e sua
atuação foi concentrada na orientação da montagem da plataforma digital do
banco Original e assumiu, de forma transitória, a presidência do conselho de
administração da J&F, cumprindo neste período apenas obrigações formais.
Meirelles assina como presidente do conselho de administração da holding os
balanços de 2014 e de 2015. Ele trouxe para o Original dezenas de executivos
oriundos do antigo BankBoston, instituição que presidiu no Brasil e nos EUA, e
implementou investimento no projeto do banco digital.
Em maio de 2012, o
J&F anunciou a intenção de assumir a Delta, sexta maior construtora de
infraestrutura do país. Controlada pelo empresário Fernando Cavendish, a
empreiteira, envolvida em corrupção, vinha tendo seus contratos cancelados.
Como ela era líder na contratação de obras do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), logo surgiram especulações de que o J&F agia a pedido do
governo. Para tentar reduzir a resistência, Joesley afirmou, em entrevista à
revista “Exame”, que a ideia de comprar a Delta tinha sido da banqueira
Patrícia de Moraes e que ele, como todos, também reagira mal num primeiro
momento. Em poucos dias a J&F comunicou que havia desistido do negócio. Na
época, Joesley sofreu dura reprimenda de Luciano Coutinho. O presidente do
BNDES disse ao empresário que não admitiria que dividendos da JBS, de quem o
banco era sócio, fossem repassados à holding J&F e ajudassem na compra da
Delta.
Hoje, no
pós-delação, as empresas amealhadas com a pretensão de construir um império à
la Buffet foram colocadas à venda pelos Batista para assegurar a sobrevivência
do negócio principal, a JBS. São todos ativos de valor. “Muita gente não
entendeu que o grupo tem boas empresas e que vão vendê-las, pagar dívidas, e
sobreviver”, disse um executivo de banco.
OUTROS NEGÓCIOS DA J&F
Com a JBS no olho
do furacão, muitos acreditam que Wesley não conseguirá seguir à frente da companhia,
seja como presidente ou membro do conselho de administração – como parte do
acordo com o MPF, Joesley se afastou em maio. Acionista relevante, a BNDESPar
pediu uma assembleia de acionistas para apreciar a saída de Wesley. Auditores
também devem se recusar a dar parecer a um balanço enquanto uma ampla
investigação independente não for concluída e, a depender da conclusão, a
manutenção do empresário como presidente pode se mostrar um entrave para o aval
ao balanço.
Mas, a
interlocutores, Wesley tem revelado percepção distinta. Em seu entender, é hora
de mostrar-se pessoalmente comprometido para manter a empresa rodando e segurar
a equipe de executivos que montou ao longo dos anos. “Foi para isso que fizemos
a delação e a leniência”, afirmou recentemente. Os irmãos Batista se decidiram
pela delação quando sentiram que a água estava invadindo a soleira da sala.
Perceberam também que, na ausência das construtoras, as grandes financiadoras
dos partidos políticos, a sede com que os políticos vieram bater à sua porta
estava ficando insustentável. E, segundo pessoas próximas, Joesley decidiu que,
se era para falar, ele apresentaria as provas de que em Brasília, depois do
impeachment da presidente Dilma, tudo continuou igual sob o comando do seu
vice, Michel Temer, e continuaria igual nas próximas eleições, quando muito
provavelmente o senador Aécio Neves estaria eleito. Achou que, ao gravá-los,
apresentaria a prova cabal da Orcrim. Sua sagacidade para negócios falhou na
política. Não conseguiu prever a capacidade de resistência dos atingidos em
Brasília. A interlocutores, os Batista revelam também sua surpresa com o
tamanho da multa que lhes foi imposta para fazer a leniência, de R$ 10,3
bilhões em 25 anos (ou ao redor de R$ 7 bilhões a valor presente), maior que a
das construtoras, que montaram esquemas de formação de cartel para lesar
estatais e onerar obras e serviços públicos.
Os dois irmãos
estão engajados na renegociação da dívida da JBS com bancos e na venda de
ativos do frigorífico e da holding e não têm demonstrado especial apego a
nenhum dos negócios. A visão é pragmática. “Eles não têm medo de nada, porque
não têm nada a perder. Sabem que já estão no lucro há muito tempo, porque não
imaginavam que iriam tão longe, e sempre terão dinheiro para viver com luxo”,
disse uma pessoa que segue próxima dos Batista.
A J&F já não
será uma holding operacional com vários negócios. Em poucas semanas, a
Alpargatas deve ser vendida aos controladores do banco Itaú, via gestora
Cambuhy e Itausa. Em prazo semelhante o grupo espera vender a Eldorado Celulose
para a chilena Arauco. A venda da fabricante de lácteos Vigor também está em
andamento, embora seja mais lenta por seguir um processo de venda organizado,
sob a coordenação de Bradesco e Santander. Por ora, a geradora de energia
térmica do grupo será mantida. Também não há intenção de se desfazer do Banco
Original, até porque parece não haver no mercado interessado na compra da
instituição. A ideia, na J&F, é arrecadar cerca de R$ 10 bilhões com a
venda das empresas, quitar dívida com bancos, ao redor de R$ 4,5 bilhões a R$ 5
bilhões, e manter em caixa entre R$ 5 bilhões a R$ 6 bilhões.
A JBS também lançou
programa de venda de ativos para arrecadar R$ 7 bilhões, que inclui
frigoríficos no Mercosul, a europeia Moy Park e a fatia de ações que detém na
Vigor. Em 31 de março, último dado disponível, o índice de alavancagem (medido
pela relação entre dívida líquida e Ebitda em 12 meses) estava em 4,2 vezes. O
endividamento bruto da empresa totalizava R$ 58,5 bilhões, sendo R$ 17,8
bilhões com vencimento no curto prazo e R$ 40,6 bilhões no longo prazo. No
caixa, a JBS tinha R$ 10,7 bilhões.
A renegociação da
dívida de curto prazo está bem adiantada. A empresa já conseguiu fechar com um
grupo de bancos, entre eles Bradesco, Santander, Caixa, Banco do Brasil e
Rabobank, um contrato que assegura por um ano a manutenção de linhas estimadas
em R$ 16 bilhões no Brasil — desse valor, cerca de R$ 2 bilhões são do Itaú e
do japonês Mizuho, que não toparam o acordo. O Itaú exigiu que a JBS
amortizasse imediatamente 40% das linhas. No acordo com os outros bancos, a
companhia aceitou amortizar 10% da dívida no prazo de um ano, numa proporção de
2,5% a cada trimestre. Em um ano a JBS terá quitado cerca de R$ 2,5 bilhões a
R$ 2,7 bilhões da dívida de curto prazo no Brasil.
A Operação Carne
Fraca, que levantou suspeitas sobre a fiscalização nos frigoríficos brasileiros
e levou à perda de mercados no exterior, aliada ao impacto da delação, afetou a
JBS neste ano. Mas aparentemente o estrago não foi tão forte, porque a empresa
vinha melhorando a margem na Seara, ajudada pela queda de preço da principal
matéria-prima, o milho, pelo ciclo de queda de preço do boi e, também, pelo
alívio de caixa provocado por sua decisão de não pagar mais o pecuarista à
vista. Informação não confirmada pela companhia dá conta de que a empresa teria
perdido em Ebitda pouco mais de R$ 100 milhões no trimestre, o que terá sido
pouco diante do impacto da delação de seus donos. E a escala de abate já teria
voltado às cerca de 30 mil cabeças por dia. “O futuro deles será um grupo
menor. Mas não subestimaria a capacidade dos Batista de se reinventar”, opina
uma pessoa próxima. Mas, segundo um banqueiro ouvido pelo Valor, a situação do
grupo neste momento ainda é difícil. Bastaria os bancos terem se recusado a
aderir ao acordo para as dívidas de curto prazo e o grupo, mesmo com todos os
seus bons ativos, teria ido às cordas. Para não impactar ainda mais seus
balanços, os bancos preferiram segurar a onda.
Por Luiz Henrique Mendes, Vanessa Adachi, Fernando Torres e Francisco Góes,
no Valor Econômico
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