Escancarada pelo
caso do Rio de Janeiro este ano, a crise dos tribunais de contas deve
impulsionar uma reforma de normas constitucionais tentada há 10 anos. Desde
2007, cinco propostas de emenda à Constituição (PECs) foram apresentadas para
blindar esses órgãos contra influências político-partidárias.
Os tribunais,
ligados ao Poder Legislativo, fiscalizam a aplicação de Recursos Públicos e
julgam as contas dos governos da União, dos estados e dos municípios. Seus
juízes, chamados de ministros no Tribunal de Contas da União e de conselheiros
nos demais, deveriam ser pessoas exemplares no cuidado com o dinheiro do povo.
Mas nem todos são.
O caso recente mais
chocante é o do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ), que teve
afastados, por ordem da Justiça, seis dos sete conselheiros. Um delatou e cinco
chegaram a ficar em prisão temporária por suspeita de receber propina para
fazer vista grossa a irregularidades na gestão do ex-governador Sérgio Cabral,
que também foi parar na cadeia.
Nenhuma das PECs
chegou ainda ao fim da fase preliminar de tramitação no Congresso, em que se
analisa a constitucionalidade. Mas cresceram as chances de a tramitação
deslanchar, ressalvado o risco de demora por causa do atual ambiente político.
É que os próprios ministros e conselheiros de contas decidiram, por meio da
associação que os representa, entrar na briga pela reforma para dar um basta
aos que desonram a classe.
A decisão resultou
na PEC 22/2017, apresentada em maio deste ano pelo senador Cássio Cunha Lima
(PSDB-PB), a pedido da Associação de Membros dos Tribunais de Contas do Brasil
(Atricon). O texto propõe submeter ministros e conselheiros a controle
disciplinar de um órgão externo para prevenir e punir desmandos.
A criação do
Conselho Nacional de Tribunais de Contas (CNTC), que exerceria tal controle, já
estava na PEC 30/2007, a mais antiga das cinco, apresentada há 10 anos pelo
então senador Renato Casagrande (PSB-ES), a pedido da Federação Nacional das
Entidades de Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc).
Bispo
Os tribunais têm
corregedorias, que deveriam fazer o que se pretende com o CNTC. Mas 'sabe a
expressão vá reclamar com o bispo? Pois é. Quando precisamos afastar ministro
ou conselheiro, temos que ir ao Judiciário, pois as corregedorias em geral não
funcionam', diz Amauri Perusso, presidente da Fenastc. Valdecir Pascoal,
presidente da Atricon, confirma a situação.
O órgão de controle
dos tribunais de contas seria, não o CTNC, mas o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), que hoje já fiscaliza membros do Poder Judiciário, se a opção do
Congresso fosse pela PEC 329/2013. A proposição foi apresentada pelo deputado
Francisco Praciano (PT-AM) a pedido da Associação Nacional do Ministério
Público de Contas (AMPCon).
A solução,
supostamente mais barata, por aproveitar órgão existente, tem apoio da
Associação Nacional de Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do
Brasil (ANTC). Lucieni Pereira da Silva, diretora da entidade, argumenta que, mesmo
sendo ligados ao Poder Legislativo, os juízes de contas gozam das mesmas
prerrogativas e garantias dos juízes do Poder Judiciário.
Além de ver
interferência entre poderes na PEC 329/17, a Atricon pondera que o CNTC não vai
aumentar gastos públicos porque terá sede no TCU, suas reuniões serão
preferencialmente virtuais, pela internet, e as despesas de viagens de seus
integrantes serão custeadas pelas entidades com assento no conselho.
Duas PECs tentam
assegurar independência funcional para os auditores de Controle Externo,
definindo melhor e padronizando, em nível nacional, atribuições, prerrogativas,
impedimentos e nomenclatura da carreira, que é o pilar central da atuação
técnica dos tribunais de contas.
Corrupção
A independência da
função de auditoria, prevista na PEC 75/2007, tira dos maus conselheiros a
possibilidade de praticar corrupção 'vendendo' ou 'engavetando auditorias',
explica Amauri Perusso, da Fenastc. Foi da entidade que saiu o texto da
proposta, apresentada pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA).
Também trata mais
profundamente da questão a PEC 40/2016, apresentada pelo senador Ricardo
Ferraço (PSDB-ES), a pedido da ANTC. Lucieni Pereira da Silva, diretora da
entidade, explica que ela vai coibir que carreiras técnicas de apoio façam
trabalho que deveria ser exclusivo de auditor. Na visão dela, os desvios de
função são risco sério na medida em que abrem brechas para questionamento
judicial do trabalho dos tribunais de contas por parte de autoridades
fiscalizadas.
Interpretações
As propostas da
ANTC, Atricon e AMPcon atacam ainda a falta de padronização de normas
processuais internas dos tribunais. A ideia é que o Congresso aprove, a partir
de anteprojeto do TCU, uma Lei Nacional Processual de Contas, aplicável aos 34
tribunais. Hoje, cada um tem a sua. A nova lei será uma espécie de 'Código
Processual Civil (CPC) de Contas, segundo as entidades.
A padronização
reduz espaço para interpretações que beneficiem maus gestores do dinheiro
público na instauração, tramitação e julgamento de processos de fiscalização.
A PEC 22/2017
prevê, ainda, a criação, no âmbito do CNTC, de uma câmara de uniformização de
jurisprudência sobre matérias julgadas pelos 34 tribunais de contas existentes
no país. Valdecir Pascoal, da Atricon, destaca que isso é importante para
pacificar, por exemplo, divergências sobre a aplicação da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Maior espaço para concursados
A mudança na
composição dos colegiados dos tribunais de contas também é um dos pilares da
reforma constitucional proposta para blindar esses órgãos contra pressões
políticopartidárias. A PEC 22/2017 tira dos políticos o poder de indicar a
maioria das vagas, muitas das quais, ocupadas por eles mesmos.
Atualmente,
parlamentares e chefes de governo escolhem cinco dos nove ministros do Tribunal
de Contas da União (TCU) e quatro dos sete conselheiros de cada um dos demais
tribunais. A proposta é inverter a maioria, reservando a maior parte dos
colegiados para os eleitos entre profissionais de carreiras técnicas dos
tribunais.
A vaga de livre
escolha de chefes do Poder Executivo (presidente da República, governadores,
prefeitos) simplesmente acabaria. E as de indicação do Poder Legislativo
(Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores) seriam
reduzidas. Assim, se abriria espaço para aumentar a participação de indicados
pelas carreiras de ministro substituto e de conselheiro substituto, que também
são servidores concursados.
Auditores, que hoje
não têm, passariam a ter uma vaga assegurada, também por indicação de seus
pares. Na essência, a Associação Nacional de Auditores de Controle Externo dos
Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) apoia a mudança de composição dos
colegiados. Mas recusa a oferta de cadeira cativa para seus representados.
Prefere que a vaga seja preenchida por indicação de entidades da sociedade
civil, como a Ordem de Advogados do Brasil (OAB). 'Quem fiscaliza não pode
julgar os processos de fiscalização', explica Lucieni Pereira da Silva,
diretora da ANTC.
Filtros
Três das PECs
apresentadas, a 22/2017, a 329/2013 e a 75/2007, ainda preveem filtros mais
rigorosos quanto à habilitação dos indicados. Um exemplo é a exigência de
'quarentena' para políticos. Pela PEC 22/2017, só poderão fazer parte dos
colegiados políticos que não tiverem exercido mandato eletivo nos três anos
anteriores. Os que foram ministros ou ocuparam outro cargo de gestão em
governos não poderão ser indicados se tiverem tido contas reprovadas.
Como forma de
aferir os 'notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e
financeiros ou de administração pública' já previstos na Constituição,
propõe-se ainda exigir graduação e experiência em uma dessas áreas. Hoje,
profissionais de qualquer área e sem graduação superior podem ser indicados.
A falta de norma
sobre critério de aferição abre espaço para que qualquer político com 10 anos
de mandato eletivo, de qualquer área profissional e mesmo sem escolaridade
superior, vire membro de tribunal de contas. O exercício de mandato eletivo por
si só é interpretado como notório conhecimento de 'administração pública',
expressão que abre a brecha.
Pedaladas
A preocupação de
prevenir problemas como as 'pedaladas fiscais' que resultaram no impeachment da
presidente Dilma Rousseff também aparece nas PECs sobre os tribunais de contas.
A PEC 40/20016 prevê compartilhamento mais rápido de informações pelo TCU
sempre que processos de fiscalização detectem indícios ou fatos que comprometam
as metas fiscais do governo. A ideia é que, assim, TCU, Congresso e Ministério
Público formem uma rede de vigilância permanente da política fiscal. Hoje, o
TCU só disponibiliza os resultados das fiscalizações após os processos passarem
pelo plenário do tribunal. (MI)
Políticos de carreira
Segundo um
levantamento publicado em 2016 pela ONG Transparência Brasil, os membros dos
tribunais de contas são, majoritariamente, ex-políticos de carreira, pois 80%
ocuparam cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública antes de
sua nomeação. De acordo com o estudo, 23% deles sofreram processos ou receberam
punição na Justiça ou nos próprios tribunais.
Mônica Izaguirre, especial para o Correio Braziliense
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