Recém-inaugurada, tem quase o tamanho do Estádio do
Pacaembu e também deve acelerar pesquisas que vão de remédios a
biocombustíveis
A foto chegou ao WhatsApp dos colegas no fim da tarde do dia 10. Apesar das máscaras, era fácil perceber o sorriso de Ana
Carolina Zeri e Andrey Nascimento, pesquisadores do Laboratório Nacional de Luz
Síncrotron (LNLS) ,em Campinas. Eles posavam ao lado de uma tela, onde se via
um pequenino cristal escuro sobre um fundo verde-claro. Era uma amostrada
proteína 3CL concentrada, uma molécula essencial para a replicação do novo
coronavírus. Na manhã seguinte, dia 11 de julho, um sábado, o time do LNLS
viveria um momento histórico: eles iluminaram aquela amostra com um raio-x
superpotente (bilhões de vezes mais forte que um de hospital) para produzir uma
imagem tridimensional de alta resolução da proteína. Era a primeira vez que a
3CL era observada por aquele ângulo e com tantos detalhes. Era também a
primeira imagem feita pelo Sirius, a maior e mais complexa estrutura científica
do país, um acelerador de elétrons quase do tamanho do Estádio do Pacaembu que
promete incluir o Brasil na primeira divisão da pesquisa nos próximos anos.
O Sirius é primo dos famosos aceleradores de elétrons europeus, como o CERN, na
Suíça. Mas, ainda que sirvam para acelerar elétrons, eles são parentes
distantes. A tecnologia europeia é um“acelerador colisor”, ou seja, ela
impulsiona as partículas até quase a velocidade da luz para chocá-las umas
contra as outras. No equipamento brasileiro, um “acelerador de luz síncrotron”,
não existe colisão. Os elétrons apenas giram em círculos, dentro de um túnel de
vácuo — eles dão 600 mil voltas por segundo no percurso de 518 metros. Desse
túnel circular, partem “braços” para onde é desviada a valiosa luz síncrotron,
que consegue fazer imagens de alta precisão de estruturas muito pequenas, do
tamanho de poucos átomos.
Outra diferença é que o Sirius é mais barato e tem aplicações mais voltadas ao
dia a dia das empresas e da sociedade. Os colisores custam dezenas de bilhões
de dólares e buscam responder a questões fundamentais da ciência (o CERN estuda
partículas ligadas à origem do Universo). O equipamento brasileiro custou 1,8
bilhão de reais, pagos pelo governo federal, e serve para desenvolver
tecnologias que vão de remédios contra o câncer a equipamentos para o pré-sal.
“O escopo de pesquisa de um acelerador síncrotron é extremamente amplo. É uma
ferramenta ‘estruturante’ para a ciência do país”, diz Antônio José Roque,
diretor do CNPEM, o conjunto de laboratórios públicos de alta tecnologia onde
fica o Sirius.
O Sirius começou a ser construído em 2015. Ele substitui o UVX, um gerador de
luz síncrotron feito nos anos 1980 que ficava no mesmo câmpus e foi desligado
no ano passado. Tinha sido o primeiro acelerador do tipo no Hemisfério Sul e
ainda era o único da América Latina, mas estava obsoleto. Era um equipamento de
segunda geração, enquanto o Sirius é de quarta. O brilho da máquina nova (e
essa é apenas uma de suas vantagens técnicas) é bilhões de vezes superior ao da
antiga. Existem apenas outras duas semelhantes no mundo, o sueco MAX IV e o
europeu ESRF, porém, sob diversos aspectos, o Sirius é o mais moderno. “Durante
uma janela de dois ou três anos, teremos o acelerador de luz síncrotron mais
avançado do mundo, o que vai atrair pesquisas internacionais”, diz Marcelo
Knobel, reitor da Unicamp e membro do conselho do CNPEM. “A comunidade
científica global está ansiosa.”
A primeira estação de pesquisa do Sirius, chamada Manacá, inaugurada no dia 11,
será dedicada exclusivamente ao coronavírus por alguns meses. “Poderemos saber
como possíveis fármacos interagem com aquela e outras proteínas do vírus”, diz
Kleber Franchini, diretor do Laboratório Nacional de Biociências, que fica no
mesmo câmpus e coordena o estudo. A segunda estação, batizada de Cateretê, deve
ficar pronta em agosto. O plano é que seis estejam em operação até o fim do
ano. O prédio comporta 38 estações.
Apesar do nome espinhoso, não é difícil entender a luz síncrotron. Ela é uma
luz de alto brilho e “amplo espectro”, o que significa que pode alcançar
frequências como a ultravioleta, a infravermelha e a do raio-x — usado para
iluminar a 3CL, por exemplo. É a única maneira de observar a organização dos
átomos em uma molécula com esse nível de qualidade. Por isso ela pode ser usada
para pesquisas de temas tão variados.
No antigo UVX, aconteciam cerca de 400 projetos por ano, selecionados a partir
de uma fila de interessados em usar o equipamento. A maioria eram iniciativas
acadêmicas, mas dezenas de pesquisas envolviam empresas — nesse caso, as marcas
pagam pelo uso da estrutura. O laboratório Aché, por exemplo, usava o velho
acelerador para estudar uma molécula que pode virar um remédio para o câncer. A
Braskem desenvolveu um material para coletes à prova de balas a partir do
polietileno, o mesmo dos frágeis saquinhos de supermercado. A Natura aprimorou
cosméticos, a Petrobras estudou a viscosidade de rochas, a Embrapa
buscou compreender solos brasileiros e assim por diante. “Testamos 5 000 amostras
e encontramos quatro ou cinco moléculas muito promissoras para o tratamento de
um tipo específico de câncer”, diz Stephani Savério, diretor de inovação da
Aché (um laboratório brasileiro, por sinal). “Agora vamos continuar as
pesquisas no Sirius, com muito mais qualidade de imagem, o que aumenta nossas
chances”, ele explica. Desde a abertura, o Sirius já recebeu três propostas de
novas pesquisas.
Antes mesmo de funcionar, o Sirius deu um enorme impulso para dezenas de
empresas do país. Quando o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações
decidiu construir o laboratório, em 2009 (governo Lula), fez uma exigência: que
a maior parte dos equipamentos fosse fabricada pela indústria nacional. Na
época, os pesquisadores não gostaram. “Diversos colegas me disseram que seria
impossível fazer o projeto daquela maneira”,diz Harry Westfahl Junior, diretor
do LNLS. O índice de nacionalização do acelerador acabou sendo de 85%. Hoje, os
cientistas elogiam a decisão. “Além de desenvolver a indústria brasileira de
ponta, a construção ficou mais barata e será mais fácil fazer a manutenção”,
ele diz.
Um resultado dessa estratégia foi a parceria entre o Sirius e a WEG, fabricante
catarinense de motores, que faturou 13,3 bilhões de reais no ano passado. A
marca produziu os cerca de 1.100 eletroímãs de alta precisão usados no
acelerador (eles servem para guiar a trajetória dos elétrons). A empresa, de
antemão, não sabia fazer esses equipamentos. “Tivemos de buscar um conhecimento
novo”, diz Eduardo Ramos, responsável pelo projeto na WEG. “Conseguimos criar
um eletroímã mais sofisticado que o dos concorrentes chineses, europeus ou
americanos. Passamos a receber sondagens de empresas do exterior, interessadas
no equipamento”, ele conta.
O próprio prédio do Sirius, projeto do arquiteto Paulo Bruna, demandou avanços
técnicos no país. A estrutura de 68.000 metros quadrados (o Estádio do Pacaembu
tem 75 000) é o edifício mais estável do Brasil. Qualquer possível vibração é
amortecida, para não perturbar a trajetória dos elétrons — até os canos de água
têm molas especiais. Mesmo o trepidar dos carros que passam na estrada
Campinas-Mogi precisou ser levado em conta.Mas talvez o aspecto mais singular
do projeto tenha sido o esforço para inaugurá-lo em meio à pandemia. Nas
últimas semanas, quase uma centena de pesquisadores fez os últimos ajustes nos
equipamentos por chamadas de vídeo e testes remotos. Apenas cerca de dez
funcionários essenciais iam ao Sirius instalar ou ajustar os aparelhos.
“Fizemos o possível para não perder o prazo (a data inicial acabou adiada em
apenas dois meses), porque sabíamos que será uma ferramenta importante contra o
vírus”, diz Westfahl Junior. “O que vai importar serão as nossas ideias, a
ciência que vamos produzir nele”, complementa ele.
Além do Sirius, existem apenas dois aceleradores de luz síncrotron de quarta
geração — aqueles capazes de produzir um brilho até bilhões de vezes superior
ao de equipamentos mais antigos. O primeiro a ser construído foi o sueco MAX IV
(à dir.), em 2016. No Sirius, o feixe de elétrons tem a metade da espessura
obtida no MAX IV, o que é uma vantagem. “Além disso, nossas estações de
pesquisa são mais modernas”, diz Harry Westfahl Junior, diretor do LNLS. O
outro acelerador de quarta geração é o ESRF (à esq.), na França, que pertence a
um consórcio de países europeus. Ele era um equipamento de terceira
geração, que acaba de ser reformado e reinaugurado.
Por Pedro Carvalho, na Revista
Veja
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