Os dilemas de Paulo Guedes em meio à saída de auxiliares e a decisão de
colocar a agenda liberal em segundo plano para Bolsonaro poder gastarA chegada
do governo Bolsonaro ao poder transformou o ministro Paulo Guedes de um cético
desconfiado em um otimista convicto. Em dezembro do ano passado, depois de o
presidente soterrar a agenda de reformas temendo perder apoio popular, Guedes
dizia que elas sairiam em breve, que era só questão de timing. Veio a pandemia,
dizimando as chances de retomada econômica em 2020, e o ministro manteve o
espírito positivo: disse que o Brasil “vai surpreender o mundo”, explicando que
a recuperação será acelerada — como a tal curva em formato de “V” que os
economistas usam para ilustrar um repique imediato após uma queda brusca. Aos
quase dois anos de governo, com a reforma tributária finalmente chegando ao
Congresso, Guedes aposta nela todas as suas fichas para defender o título de
ministro reformista. Só que o otimismo que o acompanhou nesse período começa a
vacilar. O chefe da Economia tem confidenciado a pessoas próximas o temor de
que Jair Bolsonaro não se reeleja em 2022 — e que a culpa recaia sobre a agenda
liberal. Ele tem citado especificamente o exemplo de Mauricio Macri na
Argentina, que aplicou reformas a conta-gotas e não teve tempo de surfar nos
efeitos benéficos de suas medidas e capitalizá-los em forma de popularidade.
Esse recente choque de realidade tem feito o ministro ativar o “modo
sobrevivência”, diante de uma pressão crescente da Esplanada sobre ele. A
percepção do entorno de Guedes é que a agenda de reformas estruturais é
insuficiente para aquecer a economia no curtíssimo prazo, gerar empregos,
investimentos e pavimentar o caminho para Bolsonaro em 2022. Na equipe
econômica, o sentimento é de que “a ficha caiu”. Ainda que muitos, inclusive o
ministro, mantenham a convicção de que o ideal seria perseguir o ajuste fiscal,
as reformas e a redução do tamanho do Estado, entenderam perfeitamente que a
batalha agora é pela reeleição. Um argumento usado pelo entorno de Guedes é o
seguinte: é preciso que Bolsonaro se mantenha no poder para que esta equipe
econômica também esteja e consiga em algum momento tocar o que julga necessário
para o Brasil. É nesse contexto, por exemplo, que o Renda Brasil vem sendo
desenvolvido pelo time de Guedes. Trata-se de uma forma de tentar suprir a
lacuna de políticas sociais do governo, e que isso tenha a assinatura da equipe
econômica.
A percepção da necessidade de um programa social veio com o auxílio emergencial
de R$ 600, concedido por cinco meses durante a pandemia. Ficou claro para o
governo — e para Guedes — o canhão político que representa uma medida desse
tipo. Uma reportagem de ÉPOCA publicada na edição de 13 de julho da revista
mostrou in loco como o novo auxílio havia alterado a imagem de Bolsonaro em
redutos petistas do sertão nordestino, onde Lula mais conseguiu transferir
votos a Fernando Haddad. Não à toa, Bolsonaro avisou que, recuperado da
Covid-19, iniciará viagens pelo Nordeste. O objetivo de chegar aos grotões é
inteiramente político: ele precisa mostrar que é o pai da melhoria de vida
decorrente do auxílio, ainda que o valor sugerido por seu governo tenha sido de
apenas R$ 200, elevado a R$ 500 pelo Congresso, mas fixado em R$ 600 pelo
próprio presidente, determinado a manter-se autor da ajuda.
Na cartilha de expansão fiscal que populistas gostam de usar, a receita para o
futuro seria óbvia: transformar os R$ 600 em bolsa permanente, uma espécie de
renda básica para as famílias que vivem em situação de miséria. Seria ideal
para os muitos brasileiros vítimas das mazelas de um país desigual, e também
para um governo que precisa de popularidade para permanecer no poder. A solução
perfeita só tem um pequeno entrave: a monumental dívida pública. O governo
estima que o déficit atinja um recorde histórico neste ano, de 11,5% do PIB,
uma previsão otimista perto do antevisto pelo mercado, segundo dados compilados
pela Bloomberg, de um déficit de 14% do PIB. A dívida pode atingir 100% do PIB
já em 2020.
O que pode ser feito, e que é o cerne do programa Renda Brasil, idealizado por
Guedes para dar um lastro social ao governo, é juntar o Bolsa Família a outros
auxílios já existentes, como forma de encorpá-lo e dar a ele uma nova cara — a
cara do bolsonarismo. O valor médio pago pelo Bolsa Família a cada lar hoje é
de aproximadamente R$ 189. Acrescidos os benefícios do abono salarial, o
seguro-defeso e o salário-família, a equipe econômica calcula que o valor pode
chegar a R$ 300 por mês, em média. Além da quantia elevada, faz parte do plano
a criação do chamado “imposto de renda negativo”, em que trabalhadores
informais invisíveis aos olhos do Leão passariam a declarar sua renda, em troca
de um crédito fiscal. Ao final, o Renda Brasil englobaria 57 milhões de
pessoas, contingente similar ao do Bolsa Família.
Segundo dados do IBGE, 29,4 milhões de domicílios brasileiros, ou seja, 43% do
total, receberam, em junho deste ano, algum tipo de medida de proteção social
para enfrentar a crise causada pela pandemia. Nos estados das regiões Norte e
Nordeste, o percentual de domicílios beneficiados com auxílio emergencial
ultrapassou os 45%. É com esses dados em mãos que a equipe econômica conduz os
estudos sobre o novo programa. Um auxiliar de Guedes que participa diretamente
das discussões, ao tentar justificar a eficácia política da medida, disse que,
entre os beneficiários de hoje, poucos se lembram de que o Bolsa Família foi
uma junção de programas sociais criados pelo PSDB, como o Bolsa Escola e o Vale
Gás. A esperança de Guedes é que a memória curta do eleitor também tire do PT
os louros do programa, relegando-os a Bolsonaro.
Apesar da nova faceta expansionista ter mais a ver com o economista John
Maynard Keynes do que com o mentor dos Chicago Boys, Milton Friedman, Guedes
tem reforçado a seus assessores que não vai abandonar por completo a defesa das
reformas estruturais e privatizações, que caminham a passos lentos pelas mãos
de seu secretário, Salim Mattar. Para ele, é possível conciliar as duas
estratégias: a elaboração de um programa social potente e a manutenção de uma
agenda de reformas. O caminho das pedras, contudo, ainda é desconhecido. O
custo do Renda Brasil, como ele caberá no teto de gastos e como será financiado
são questões que ainda carecem de explicações, já que o programa ainda não está
concluído dentro do ministério — o que deverá ocorrer até setembro, que é o
último mês de pagamento do auxílio.
Guedes tem comparado a atual situação ao tanque de combustível de um carro. Uma
reforma estrutural seria capaz de enchê-lo. Mas esse combustível corre o risco
de ser usado somente pelo próximo governante, naturalmente opositor a
Bolsonaro. Por isso, ainda segundo a analogia do ministro, o ideal seria
“encher o tanque e gastar o combustível durante o mandato”. Tal comparação já
havia sido usada por Guedes quando ele criou a proposta de ajuste fiscal para
estados, no ano passado, o chamado Plano Mansueto, em referência ao
ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, que deixou o governo em
julho.
A saída de Mansueto, já cantada havia meses pelo próprio Guedes, não tem
necessariamente a ver com o fracasso de seu plano para os estados, que foi
desfigurado dentro do Congresso no início do ano. Mas, associada à debandada de
outros três aliados de primeira ordem do ministro, dá o tom de que a equipe não
vive seus melhores dias. Marcos Troyjo, secretário especial de Comércio
Exterior, saiu para presidir o banco dos Brics. Caio Megale, diretor de
programas da Secretaria Especial de Fazenda da pasta, disse que iria para o
setor privado. Por último, o presidente do Banco do Brasil e ex-Chicago Boy
Rubem Novaes também disse adeus, insinuando a interlocutores frustração com os
rumos do governo. Em entrevista à CNN Brasil, afirmou não ter se adaptado “à
cultura de privilégios, compadrio e corrupção de Brasília”. Guedes
veio a público negar que houvesse uma saída em massa. Mas, fora do governo, há
quem ligue as baixas na equipe a um sentimento de frustração com a agenda
liberal aliado ao fortalecimento de um grupo antagônico ao de Guedes, liderado
pelo ministro da Casa Civil, o general Walter Braga Netto, e que defende
deliberadamente o uso do investimento público para fazer a economia
acordar — pensamento desenvolvimentista que prevalece entre os membros da
caserna desde a Primeira República.
Guedes tem tido atritos com o general e também com seu ex-secretário de
Previdência, hoje ministro do Desenvolvimento Social, Rogério
Marinho, outro entusiasta da agenda de investimentos. O ministro tem comparado
esse grupo ao “pica-pau da Arca de Noé”, a ave que usa suas bicadas para furar
o barco que leva todos para a “salvação”. A primeira desavença foi logo no
início da pandemia, durante as discussões para o lançamento do chamado
Pró-Brasil. Coordenado pela Casa Civil, o plano prevê obras públicas para retomar
a atividade econômica no pós-pandemia. Para evitar que seja taxado como um
plano gastador, ou um novo PAC — o Programa de Aceleração do Crescimento do
governo Dilma Rousseff —, o governo também incluiu na proposta uma agenda de
facilitação de investimentos privados, que é o que defende Guedes desde o
começo. Quando a apresentação do Pró-Brasil foi feita, no Palácio do Planalto,
a principal presença no evento era a ausência de Paulo Guedes.
As indisposições se aprofundaram com o passar dos meses, quando foi debatida
uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a
possibilidade de driblar o teto de gastos, que é hoje a única âncora fiscal do
país, vista como fundamental por sinalizar um compromisso de longo prazo com o
ajuste fiscal. O objetivo era saber se é possível utilizar créditos
extraordinários para pagar obras públicas. Esse tipo de crédito é editado por
medida provisória (MP) e, por sua natureza, não conta para o teto de gastos. A
Constituição Federal diz que o crédito extraordinário pode ser editado para
atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra,
comoção interna ou calamidade pública. São essas características que fazem as
despesas necessárias para combater a pandemia serem todas realizadas por crédito
extraordinário e, portanto, fora do teto. O movimento fez a equipe econômica
estrilar. Mas ministros do TCU avisaram informalmente ao Palácio que
seria difícil adotar uma interpretação tão ampla para a possibilidade de edição
dessas MPs.
Mas não foi só com colegas de Esplanada que Guedes andou se desentendendo nos
últimos tempos. Depois de rasgar elogios a Rodrigo Maia após a aprovação da
reforma da Previdência, o ministro passou mais de dois meses sem falar com o
presidente da Câmara. A relação, que nunca foi das melhores, desandou durante
as negociações para a proposta de socorro a estados e municípios durante a
pandemia. Guedes não concordou com o texto de Maia, aprovado na Câmara, e
partiu para negociar diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre
(DEM-AP). Dias depois de o ministro entregar finalmente sua proposta de reforma
tributária (a primeira parte dela), Maia foi ao prédio do ministério, levado
pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, numa tentativa de retomar o
diálogo.
As negociações para o Fundeb (fundo que financia a educação básica)
evidenciaram esse distanciamento. Na última hora, o governo enviou sua proposta
para um texto que já era discutido havia anos pela Câmara. Guedes acabou
conseguindo inserir algumas de suas ideias, mas o resultado foi interpretado
como uma derrota. O ministro tentou implantar no Fundeb um percentual que
poderia ser direcionado para o Renda Brasil, o que foi visto como artimanha
política, além de ter proposto que parte dos repasses fosse feita
fora do teto de gastos. Ou seja, para além da inabilidade política junto ao
Congresso, o ministro passou a impressão de que o próprio Ministério da
Economia estaria querendo driblar a regra que tanto defende, tal como os
“pica-paus da Arca de Noé”. Depois do leite derramado, a equipe econômica disse
ter sido mal interpretada.
São atribuídas às intrigas palacianas os boatos que surgem vez ou outra sobre a
saída de Guedes do governo. As dificuldades que sua equipe encontrou de
implantar a tal agenda liberal foram ampliadas pela pandemia, ao passo que um
novo grupo de poder surgiu na área econômica, pilotado de dentro do Palácio do
Planalto. A esse cenário acrescenta-se a quebra de um dos paradigmas do governo
Bolsonaro: de que haveria superministérios e superministros. A saída de Sergio
Moro e a própria relação conflituosa que ele nutria com o presidente mostram
que nunca esteve nos planos de Bolsonaro dividir um naco maior de poder.
Apesar das desventuras, Paulo Guedes tem garantido publicamente que fica. Em
live da XP, disse que só sairia “abatido à bala” ou “removido à força”. Depois,
contemporizou, mostrando sua inabalável fé no reformismo de Jair Bolsonaro.
“Nós temos uma agenda de reformas, é nesse sentido que eu digo que vou até o
fim do governo. Tem uma agenda a cumprir. Enquanto houver essa agenda a ser
perseguida, eu estou aqui. Agora, se o presidente desistir da agenda, se o
Congresso interditar a agenda, falar que não quer fazer a agenda, eu não tenho
o que fazer, tenho de ir para casa.”
Por Manoel Ventura, na Revista
Época