quinta-feira, 6 de agosto de 2020

EPÍLOGO DE CHICAGO - COMO NASCE UM KEYNESIANO


Os dilemas de Paulo Guedes em meio à saída de auxiliares e a decisão de colocar a agenda liberal em segundo plano para Bolsonaro poder gastarA chegada do governo Bolsonaro ao poder transformou o ministro Paulo Guedes de um cético desconfiado em um otimista convicto. Em dezembro do ano passado, depois de o presidente soterrar a agenda de reformas temendo perder apoio popular, Guedes dizia que elas sairiam em breve, que era só questão de timing. Veio a pandemia, dizimando as chances de retomada econômica em 2020, e o ministro manteve o espírito positivo: disse que o Brasil “vai surpreender o mundo”, explicando que a recuperação será acelerada — como a tal curva em formato de “V” que os economistas usam para ilustrar um repique imediato após uma queda brusca. Aos quase dois anos de governo, com a reforma tributária finalmente chegando ao Congresso, Guedes aposta nela todas as suas fichas para defender o título de ministro reformista. Só que o otimismo que o acompanhou nesse período começa a vacilar. O chefe da Economia tem confidenciado a pessoas próximas o temor de que Jair Bolsonaro não se reeleja em 2022 — e que a culpa recaia sobre a agenda liberal. Ele tem citado especificamente o exemplo de Mauricio Macri na Argentina, que aplicou reformas a conta-gotas e não teve tempo de surfar nos efeitos benéficos de suas medidas e capitalizá-los em forma de popularidade.

Esse recente choque de realidade tem feito o ministro ativar o “modo sobrevivência”, diante de uma pressão crescente da Esplanada sobre ele. A percepção do entorno de Guedes é que a agenda de reformas estruturais é insuficiente para aquecer a economia no curtíssimo prazo, gerar empregos, investimentos e pavimentar o caminho para Bolsonaro em 2022. Na equipe econômica, o sentimento é de que “a ficha caiu”. Ainda que muitos, inclusive o ministro, mantenham a convicção de que o ideal seria perseguir o ajuste fiscal, as reformas e a redução do tamanho do Estado, entenderam perfeitamente que a batalha agora é pela reeleição. Um argumento usado pelo entorno de Guedes é o seguinte: é preciso que Bolsonaro se mantenha no poder para que esta equipe econômica também esteja e consiga em algum momento tocar o que julga necessário para o Brasil. É nesse contexto, por exemplo, que o Renda Brasil vem sendo desenvolvido pelo time de Guedes. Trata-se de uma forma de tentar suprir a lacuna de políticas sociais do governo, e que isso tenha a assinatura da equipe econômica.

A percepção da necessidade de um programa social veio com o auxílio emergencial de R$ 600, concedido por cinco meses durante a pandemia. Ficou claro para o governo — e para Guedes — o canhão político que representa uma medida desse tipo. Uma reportagem de ÉPOCA publicada na edição de 13 de julho da revista mostrou in loco como o novo auxílio havia alterado a imagem de Bolsonaro em redutos petistas do sertão nordestino, onde Lula mais conseguiu transferir votos a Fernando Haddad. Não à toa, Bolsonaro avisou que, recuperado da Covid-19, iniciará viagens pelo Nordeste. O objetivo de chegar aos grotões é inteiramente político: ele precisa mostrar que é o pai da melhoria de vida decorrente do auxílio, ainda que o valor sugerido por seu governo tenha sido de apenas R$ 200, elevado a R$ 500 pelo Congresso, mas fixado em R$ 600 pelo próprio presidente, determinado a manter-se autor da ajuda.

Na cartilha de expansão fiscal que populistas gostam de usar, a receita para o futuro seria óbvia: transformar os R$ 600 em bolsa permanente, uma espécie de renda básica para as famílias que vivem em situação de miséria. Seria ideal para os muitos brasileiros vítimas das mazelas de um país desigual, e também para um governo que precisa de popularidade para permanecer no poder. A solução perfeita só tem um pequeno entrave: a monumental dívida pública. O governo estima que o déficit atinja um recorde histórico neste ano, de 11,5% do PIB, uma previsão otimista perto do antevisto pelo mercado, segundo dados compilados pela Bloomberg, de um déficit de 14% do PIB. A dívida pode atingir 100% do PIB já em 2020.

O que pode ser feito, e que é o cerne do programa Renda Brasil, idealizado por Guedes para dar um lastro social ao governo, é juntar o Bolsa Família a outros auxílios já existentes, como forma de encorpá-lo e dar a ele uma nova cara — a cara do bolsonarismo. O valor médio pago pelo Bolsa Família a cada lar hoje é de aproximadamente R$ 189. Acrescidos os benefícios do abono salarial, o seguro-defeso e o salário-família, a equipe econômica calcula que o valor pode chegar a R$ 300 por mês, em média. Além da quantia elevada, faz parte do plano a criação do chamado “imposto de renda negativo”, em que trabalhadores informais invisíveis aos olhos do Leão passariam a declarar sua renda, em troca de um crédito fiscal. Ao final, o Renda Brasil englobaria 57 milhões de pessoas, contingente similar ao do Bolsa Família.

Segundo dados do IBGE, 29,4 milhões de domicílios brasileiros, ou seja, 43% do total, receberam, em junho deste ano, algum tipo de medida de proteção social para enfrentar a crise causada pela pandemia. Nos estados das regiões Norte e Nordeste, o percentual de domicílios beneficiados com auxílio emergencial ultrapassou os 45%. É com esses dados em mãos que a equipe econômica conduz os estudos sobre o novo programa. Um auxiliar de Guedes que participa diretamente das discussões, ao tentar justificar a eficácia política da medida, disse que, entre os beneficiários de hoje, poucos se lembram de que o Bolsa Família foi uma junção de programas sociais criados pelo PSDB, como o Bolsa Escola e o Vale Gás. A esperança de Guedes é que a memória curta do eleitor também tire do PT os louros do programa, relegando-os a Bolsonaro.

Apesar da nova faceta expansionista ter mais a ver com o economista John Maynard Keynes do que com o mentor dos Chicago Boys, Milton Friedman, Guedes tem reforçado a seus assessores que não vai abandonar por completo a defesa das reformas estruturais e privatizações, que caminham a passos lentos pelas mãos de seu secretário, Salim Mattar. Para ele, é possível conciliar as duas estratégias: a elaboração de um programa social potente e a manutenção de uma agenda de reformas. O caminho das pedras, contudo, ainda é desconhecido. O custo do Renda Brasil, como ele caberá no teto de gastos e como será financiado são questões que ainda carecem de explicações, já que o programa ainda não está concluído dentro do ministério — o que deverá ocorrer até setembro, que é o último mês de pagamento do auxílio.

Guedes tem comparado a atual situação ao tanque de combustível de um carro. Uma reforma estrutural seria capaz de enchê-lo. Mas esse combustível corre o risco de ser usado somente pelo próximo governante, naturalmente opositor a Bolsonaro. Por isso, ainda segundo a analogia do ministro, o ideal seria “encher o tanque e gastar o combustível durante o mandato”. Tal comparação já havia sido usada por Guedes quando ele criou a proposta de ajuste fiscal para estados, no ano passado, o chamado Plano Mansueto, em referência ao ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, que deixou o governo em julho.

A saída de Mansueto, já cantada havia meses pelo próprio Guedes, não tem necessariamente a ver com o fracasso de seu plano para os estados, que foi desfigurado dentro do Congresso no início do ano. Mas, associada à debandada de outros três aliados de primeira ordem do ministro, dá o tom de que a equipe não vive seus melhores dias. Marcos Troyjo, secretário especial de Comércio Exterior, saiu para presidir o banco dos Brics. Caio Megale, diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda da pasta, disse que iria para o setor privado. Por último, o presidente do Banco do Brasil e ex-Chicago Boy Rubem Novaes também disse adeus, insinuando a interlocutores frustração com os rumos do governo. Em entrevista à CNN Brasil, afirmou não ter se adaptado “à cultura de privilégios, compadrio e corrupção de Brasília”. Guedes veio a público negar que houvesse uma saída em massa. Mas, fora do governo, há quem ligue as baixas na equipe a um sentimento de frustração com a agenda liberal aliado ao fortalecimento de um grupo antagônico ao de Guedes, liderado pelo ministro da Casa Civil, o general Walter Braga Netto, e que defende deliberadamente o uso do investimento público para fazer a economia acordar — pensamento desenvolvimentista que prevalece entre os membros da caserna desde a Primeira República.

Guedes tem tido atritos com o general e também com seu ex-secretário de Previdência, hoje ministro do Desenvolvimento Social, Rogério Marinho, outro entusiasta da agenda de investimentos. O ministro tem comparado esse grupo ao “pica-pau da Arca de Noé”, a ave que usa suas bicadas para furar o barco que leva todos para a “salvação”. A primeira desavença foi logo no início da pandemia, durante as discussões para o lançamento do chamado Pró-Brasil. Coordenado pela Casa Civil, o plano prevê obras públicas para retomar a atividade econômica no pós-pandemia. Para evitar que seja taxado como um plano gastador, ou um novo PAC — o Programa de Aceleração do Crescimento do governo Dilma Rousseff —, o governo também incluiu na proposta uma agenda de facilitação de investimentos privados, que é o que defende Guedes desde o começo. Quando a apresentação do Pró-Brasil foi feita, no Palácio do Planalto, a principal presença no evento era a ausência de Paulo Guedes.

As indisposições se aprofundaram com o passar dos meses, quando foi debatida uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a possibilidade de driblar o teto de gastos, que é hoje a única âncora fiscal do país, vista como fundamental por sinalizar um compromisso de longo prazo com o ajuste fiscal. O objetivo era saber se é possível utilizar créditos extraordinários para pagar obras públicas. Esse tipo de crédito é editado por medida provisória (MP) e, por sua natureza, não conta para o teto de gastos. A Constituição Federal diz que o crédito extraordinário pode ser editado para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública. São essas características que fazem as despesas necessárias para combater a pandemia serem todas realizadas por crédito extraordinário e, portanto, fora do teto. O movimento fez a equipe econômica estrilar. Mas ministros do TCU avisaram informalmente ao Palácio que seria difícil adotar uma interpretação tão ampla para a possibilidade de edição dessas MPs.

Mas não foi só com colegas de Esplanada que Guedes andou se desentendendo nos últimos tempos. Depois de rasgar elogios a Rodrigo Maia após a aprovação da reforma da Previdência, o ministro passou mais de dois meses sem falar com o presidente da Câmara. A relação, que nunca foi das melhores, desandou durante as negociações para a proposta de socorro a estados e municípios durante a pandemia. Guedes não concordou com o texto de Maia, aprovado na Câmara, e partiu para negociar diretamente com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Dias depois de o ministro entregar finalmente sua proposta de reforma tributária (a primeira parte dela), Maia foi ao prédio do ministério, levado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, numa tentativa de retomar o diálogo.

As negociações para o Fundeb (fundo que financia a educação básica) evidenciaram esse distanciamento. Na última hora, o governo enviou sua proposta para um texto que já era discutido havia anos pela Câmara. Guedes acabou conseguindo inserir algumas de suas ideias, mas o resultado foi interpretado como uma derrota. O ministro tentou implantar no Fundeb um percentual que poderia ser direcionado para o Renda Brasil, o que foi visto como artimanha política, além de ter proposto que parte dos repasses fosse feita fora do teto de gastos. Ou seja, para além da inabilidade política junto ao Congresso, o ministro passou a impressão de que o próprio Ministério da Economia estaria querendo driblar a regra que tanto defende, tal como os “pica-paus da Arca de Noé”. Depois do leite derramado, a equipe econômica disse ter sido mal interpretada.

São atribuídas às intrigas palacianas os boatos que surgem vez ou outra sobre a saída de Guedes do governo. As dificuldades que sua equipe encontrou de implantar a tal agenda liberal foram ampliadas pela pandemia, ao passo que um novo grupo de poder surgiu na área econômica, pilotado de dentro do Palácio do Planalto. A esse cenário acrescenta-se a quebra de um dos paradigmas do governo Bolsonaro: de que haveria superministérios e superministros. A saída de Sergio Moro e a própria relação conflituosa que ele nutria com o presidente mostram que nunca esteve nos planos de Bolsonaro dividir um naco maior de poder.

Apesar das desventuras, Paulo Guedes tem garantido publicamente que fica. Em live da XP, disse que só sairia “abatido à bala” ou “removido à força”. Depois, contemporizou, mostrando sua inabalável fé no reformismo de Jair Bolsonaro. “Nós temos uma agenda de reformas, é nesse sentido que eu digo que vou até o fim do governo. Tem uma agenda a cumprir. Enquanto houver essa agenda a ser perseguida, eu estou aqui. Agora, se o presidente desistir da agenda, se o Congresso interditar a agenda, falar que não quer fazer a agenda, eu não tenho o que fazer, tenho de ir para casa.”
 

Por Manoel Ventura, na Revista Época  





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