O governo usa a
bilionária verba emergencial para combater o coronavírus para fazer política
com congressistas. Graças a padrinhos bem relacionados, até municípios sem
infectados receberam mais dinheiro do que outros que estão em apuros na
pandemia
Em meio à busca por apoio no Congresso Nacional, o
governo Jair Bolsonaro usou cifras bilionárias reservadas para o combate à
Covid-19 como moeda de troca em negociações com senadores e deputados. Trata-se
de dinheiro que deveria estar no caixa das cidades mais atingidas pela
pandemia, ou daquelas que sofrem com o sufocamento de seus sistemas de saúde,
mas acabou escoando, às centenas de milhões de reais, para lugares que nem
sequer foram atingidos pela doença – em alguns casos, prefeitos nem usaram a
verba, como revela um levantamento feito por Crusoé.Ao menos na teoria, a
portaria do governo que listou cada cidade e seu respectivo repasse traz
argumentos técnicos para embasar a distribuição.
As regras, porém, foram frouxas o suficiente para
agradar parlamentares com a destinação de verbas para as suas bases em pleno
ano de eleições municipais.As negociações foram capitaneadas por um ministro-general,
pivô da articulação política de Bolsonaro. Documentos internos do governo
revelam que o Ministério da Saúde escondeu os critérios adotados
para as transferências a municípios de sua própria assessoria jurídica até que
os repasses fossem publicados no Diário Oficial.
Auditores responsáveis por fiscalizar ações do governo
em meio à pandemia bem que tentaram, mas não identificaram relação entre a
planilha do governo e o mapa dos casos de Covid-19 no país.Desde o início da
pandemia, o governo federal distribuiu 63,4 bilhões de reais para o combate à
Covid-19. A mais recente liberação de verbas se deu por meio da portaria 1.666,
publicada no início de julho. Foram 13,8 bilhões, dos quais 11,3 bilhões
destinados somente às prefeituras. Diferentemente das liberações anteriores,
essa foi precedida de uma abordagem do governo federal junto a deputados e
senadores para que indicassem livremente as cifras e as cidades destinatárias
da verba.Foram oferecidos 30 milhões de reais para senadores, e 10 milhões de reais
aos deputados.
À frente da oferta, segundo relataram parlamentares
a Crusoé, estava o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo
Ramos. Os relatos batem com as declarações do senador Major Olímpio, do PSL de
São Paulo, que chegou a acusar o governo de promover um toma-lá-dá-cá com a
verba da Covid.Se o governo adotou o critério de incidência da pandemia para os
estados, o mesmo não valeu para os municípios, os principais destinatários do
esforço dos parlamentares, preocupados em satisfazer o microcosmo de suas bases
eleitorais. O levantamento feito por Crusoé explicita o disparate:
448 cidades que não tinham sequer um caso de coronavírus receberam 200 milhões
de reais.
Por outro lado, Manaus, a capital do Amazonas, que
alcançou 36,6 mil casos e mais de 2 mil mortos pela Covid-19, está entre os
municípios que menos receberam verbas per capita por meio da portaria. A Frente
Nacional de Prefeitos reclama dos critérios, diz que eles penalizam municípios
que estão no auge da crise e que atendem um maior número de pacientes.No
ranking das cidades menos afetadas pela pandemia e que mais receberam, Bambuí,
em Minas Gerais, é uma das líderes. Recebeu 1,8 milhão de reais. Com 17 mil
habitantes, a cidade não realizou um procedimento hospitalar de alta e média
complexidade em 2019 – o que seria fator para receber mais verbas, segundo a
própria portaria do governo.
O diferencial do município é mesmo a quantidade de
padrinhos.O prefeito, Olívio Vieira, do PSB, lista pelo menos quatro
parlamentares, de diversos partidos, que indicaram verbas a Bambuí. “Antônio
Anastasia, 500 mil, Marcelo Aro, 500 mil, Eduardo Barbosa, 150 mil”, disse ele.
O problema é que a prefeitura, segundo o próprio prefeito, pouco gastou, já que
continua com um número ínfimo de infectados: “Gastamos só 85 mil reais. Mas já
foi feito empenho 400 mil, para comprar testagem. Vou gastar para o que
precisa. E o que não precisar usar eu vou devolver depois”.O deputado federal
Eduardo Barbosa, do PSDB, admite ter apadrinhado a cidade.
“Fizemos a indicação à liderança do partido, que
repassou ao governo”, afirma. Ele fez mais de 9 milhões em indicações e alega
ter adotado como critério dados demográficos das cidades.Assim como Bambuí,
outros municípios tiveram o caixa inflado por indicações de parlamentares. Uma
delas é Nerópolis, no interior de Goiás, para a qual o governo disponibilizou 6
milhões de reais. À época da portaria, a cidade de 29 mil habitantes tinha 14
casos de Covid acumulados. Nerópolis recebeu mais do que diversas cidades que a
superam em outros critérios previstos pelo próprio governo, além de registrarem
mais casos de Covid-19.Para efeito de comparação, Chapadão do Sul, em Mato
Grosso do Sul, que tem indicadores semelhantes aos de Nerópolis e soma 367
casos da doença, levou metade da cifra da cidade goiana. O prefeito de
Nerópolis, Gil Tavares, do PRB, tem uma lista de nove parlamentares que, diz,
indicaram o município para os repasses.
Entre eles está o senador Vanderlan Cardoso, do PSD,
que assume ter apontado 30 milhões de reais a diversas cidades. O senador
afirma ter sido contatado pelo ministro-general Ramos para apontar para onde
gostaria de destinar a verba.“Aqueles que não quiserem os 30 milhões da saúde,
passem para quem tem demanda! Eu tenho na Saúde para quase 100 milhões.
Além dessa pressão que a gente tem de correr atrás, fazer leis, temos de
atender nossas bases, porque aí não tem jeito”, diz Vanderlan. O senador ainda
justifica seu repasse a Nerópolis: “Uma das maiores UTIs que tem em
Goiás é Nerópolis, ela atende gente de outros municípios”.
Nerópolis tem 52 leitos hospitalares, segundo o
Datasus, a plataforma de dados do Sistema Único de Saúde.Após a publicação
da portaria do governo federal que distribuiu os 13,8 bilhões de reais, houve
um vai-e-vem de ofícios de senadores e deputados comunicando prefeitos que
conseguiram indicar as verbas para suas cidades. Muitos desses comunicados
citam o expediente do Palácio do Planalto como fonte do recurso.Repasses
vultosos normalmente passam por uma minuciosa análise jurídica prévia do
próprio governo federal. Até a publicação da portaria que liberou os 13,8
bilhões de reais a estados e municípios, porém, a Advocacia-Geral da União ficou
no escuro quanto aos critérios da distribuição da verba. O órgão chegou a
reclamar: os dados para a expedição do parecer chegaram de última hora, apenas
no fim do dia em que a portaria foi publicada.A queixa ficou registrada: “Na
prática, essa situação praticamente inviabiliza uma análise jurídica a
contento, especialmente de uma portaria que pretende repassar valores
altíssimos, num total de 13,8 bilhões, que merecia toda a cautela em sua
análise, para avaliação da objetividade, isonomia e transparência dos critérios
de rateio entre os entes federativos”, escreveram os representantes da AGU destacados
para atuar no Ministério da Saúde.
O órgão ainda questionou o fato de que o governo não
“demonstrou como se chegou aos valores” que seriam repassados aos municípios.
Mesmo assim, aprovou o texto em termos jurídicos, ressaltando que não entrou no
mérito dos critérios. Já o ministro-general Eduardo Pazuello não quis entrar
nas minúcias técnicas que sua equipe não foi capaz de explicar à área jurídica.
O especialista em logística apenas transportou o texto para o Diário Oficial da
União, com sua assinatura na calada da noite, em edição extra. Um dia depois de
a portaria ter sido publicada, a pasta exibiu, como justificativa para os
valores, uma fórmula matemática levando em consideração a população e os
indicadores de saúde de cada município.Oito dias depois, curiosamente, o
ministério apresentou à AGU uma fórmula corrigida, diferente da
anterior.
Mesmo assim, a pasta não explicou como essa fórmula
foi usada para chegar aos valores listados na portaria. Ao final do processo, o
secretário de Atenção Especializada do ministério, coronel Luiz Otávio Franco
Duarte, rebateu as críticas. Disse que os consultores da AGU foram
constantemente acionados e estiveram presentes nas reuniões para tratar do
tema.Mesmo sem ser questionado sobre a politicagem com a verba, o militar fez
questão de se antecipar, como quem estivesse contando com problemas futuros:
disse que a “definição dos critérios de rateio são desprovidos de politização,
e decorreram da pactuação em grupo técnico”.
O coronel ainda ressaltou que a liberação bilionária
demandava “urgência”.Se a AGU não pôde fazer um parecer antes da
publicação da portaria, o Tribunal de Contas da União, que acompanha os
gastos do governo em meio à pandemia, tem apontado problemas nos critérios de
distribuição de verbas do governo. Auditores a serviço da corte bem que
tentaram estabelecer relação entre os valores repassados para as diversas
regiões e os parâmetros previstos na regra oficial, como a quantidade de
leitos, de internações e as taxas de mortalidade pela doença.
Até agora, não conseguiram.A fiscalização, feita
desde a primeira liberação de verbas do governo, apontou que os repasses do
governo não têm tido relação com esses indicadores. Relator dos processos que
envolvem os gastos federais com o combate à pandemia, o ministro Benjamin
Zymler já chegou a recomendar que os casos de Covid sejam levados em
consideração para realizar os repasses. O TCU quer mais
explicações do governo a respeito dos critérios usados para repassar os
recursos aos municípios.Apesar de todas as evidências do apadrinhamento de
verbas para combate à Covid, o governo insiste em dizer que vem seguindo
critérios técnicos. Jogando o problema para a outra ponta, sustenta que os
deputados e senadores é que estão aproveitando a oportunidade para se apresentar,
nas suas bases, como responsáveis por conseguir a verba.
Nem o líder do governo, Eduardo Gomes, do MDB, porém,
consegue dar uma explicação razoável para os critérios. “Até hoje, não consegui
entender. É uma conta meio maluca”, diz. Crusoé pediu ao Ministério
da Saúde que exibisse sua base de cálculo com os critérios que
levaram aos valores publicados na portaria. Após dois dias, por meio de nota, a
pasta se limitou a uma resposta burocrática: “A verba é distribuída seguindo
todos os critérios técnicos tais quais curva epidemiológica, parâmetros
populacionais, capacidade instalada, e demandas ou necessidades dos estados e
municípios”. Ou seja: não saiu do lugar.
Por LUIZ
VASSALLO e ANDRÉ SPIGARIOL, na Revista Crusoé
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