segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A rodovia da discórdia

 

Lideranças indígenas reclamam que a BR-163 levou o novo coronavírus para dentro das aldeias Kayapó Mekrãgnotire, provocando a morte de três anciãos em uma semana. Hoje, eles prometem ocupar as pistas em protesto

O povo Kayapó Mekrãgnotire prepara-se com pinturas corporais para a guerra. Ocuparão, nesta segunda-feira, a BR-163. É um dos episódios em que a pressão exercida pelas rodovias que cortam ou margeiam terras indígenas se tornou insustentável. A mesma rota que escoa os grãos vindos do Mato Grosso nos portos de Miritituba, pelo Rio Tapajós, rumo a outros países, leva para as terras demarcadas garimpeiros, madeireiros e, com eles, o coronavírus. As lideranças de 297 famílias e 12 aldeias reclamam da falta de atendimento em saúde, do descumprimento de compromissos relacionados à rota por parte do governo e de um consequentemente sufocamento sistemático do território.

Em 10 de agosto, o Correio denunciou, com a reportagem O perigo que vem da estrada, como rodovias brasileiras que cortam terras indígenas se tornaram as vias por onde a covid-19 infecciona os sistemas respiratórios de integrantes de diversas etnias, matando os mais velhos e, com isso, apagando parte considerável da história e da cultura desses povos. O caso dos Kayapó Mekrãgnotire é um em que os membros das comunidades decidiram "chamar a atenção do mundo", como afirmam as lideranças. E escolheram fazer isso com protestos, apesar do risco da doença e, embora temam a reação -- em março, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, chamou a Força Nacional para receber uma delegação indígena com agenda na Fundação Nacional do Índio (Funai).

Chama a atenção o fato de a rodovia não cortar diretamente as terras, como ocorre em outras situações e, ainda assim, atingir diretamente a vida dos aldeados. Vice-presidente do Instituto Kabu, criado para gerir as aldeias e fiscalizar as matas da região, Mudjere Kayapó conta que a rodovia levou o vírus que matou três anciãos em apenas uma semana. "A primeira coisa da BR é por causa da covid-19. O governo não está nem aí para nós, indígenas. E estamos morrendo dessa doença. Em uma semana perdemos três anciãos, que são nossas bibliotecas. A Funai prometeu mandar cestas básicas, mandou duas vezes, mas faltando muita coisa. E a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não está nem aí para nós. Estão sem motorista há mais de um ano. Não tem carro. Não tem profissionais. Nossa saúde está precária", desabafa.

Risco de contaminação

Mudjere explica que os garimpeiros que invadem a região chegam pela rodovia. O mesmo ocorreu com madeireiros. Para garantir a permanência da BR que envia grãos brasileiros para o exterior, foi criado o Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI), uma condicionante para a estrada margear o território, com o governo federal financiando a vigilância ambiental feita pelos próprios kayapós, e a Funai fiscalizando o uso da verba. Mas, em janeiro, o governo suspendeu os pagamentos, limitando a ação dos povos originários, e as invasões começaram a aumentar. "A Amazônia está pegando fogo. A invasão está grande nas nossas reservas. Os brancos estão aproveitando o coronavírus; os garimpeiros. E é graças a nós, indígenas, que a Amazônia ainda existe. A floresta precisa de nós, e nós, da floresta. Ela nos alimenta, e nós a alimentamos", afirma.

Uma das lideranças locais, Doto Takak admite que as manifestações e o fechamento da BR podem expô-los ainda mais ao vírus. "Mesmo sabendo que estamos correndo risco, estamos muito bravos. Mesmo sabendo do perigo e da doença, estamos lutando pela defesa do nosso povo, da floresta, do meio ambiente, que o mundo está assistindo à derrubada e à exploração de minérios. A Funai e o DNIT (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) estão dificultando a situação. Para privatizar, não nos chamaram para fazer a consulta", lembra. O governo estuda repassar a via para uma concessionária. O levantamento está com o Tribunal de Contas da União (TCU) sem o PBA-CI. Os kayapó também se queixam da Ferrogrão, ferrovia que passará pelo território.

Em uma carta aberta enviada a embaixadas, os indígenas denunciaram as dificuldades geradas pela rodovia, incluindo, claro, os efeitos da pandemia. "Nesses mais de 10 anos, temos visto a permanência dos impactos e o agravamento das pressões sobre nossos territórios indígenas. É clara a escalada da degradação da floresta em escala regional. Para onde quer que se olhe, tudo aponta para a aceleração do processo de destruição: desmatamento, ocorrência de focos de calor, proliferação de garimpos ilegais, invasões e cooptação de lideranças indígenas configuram uma situação que torna necessária a adoção de medidas urgentes para evitar uma catástrofe que se anuncia, impulsionada pelo ingresso explosivo da pandemia de covid-19 nas aldeias", afirma o texto.

"É nesse cenário que o governo estabelece o trecho da BR-163/230 (Sinop/MT -- Miritituba/PA) como prioritário para o programa de privatização, alardeado como solução para diminuição do tamanho do Estado em uma região de muitas carências", alertam os povos originários da região.

Um dos integrantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Kleber Karipuna alerta para os fluxos nas rodovias como forma de transporte do coronavírus para as aldeias. "A gente está mapeando como grandes vetores do vírus para dentro de terras indígenas o tráfego de pessoas por estradas. As BRs têm um tráfego intenso, e não temos muito controle sobre quem para ali. Em alguns casos, indígenas estão fazendo barreiras. As estradas vão ser sempre um problema nessa circulação de pessoas. Principalmente em rodovias que passam próximo a terras indígenas. Tanto pela falta de fiscalização do poder público, quanto pela falta de orientação a motoristas, principalmente caminhoneiros, em relação ao contato com os povos", destaca.

Por SARAH TEÓFILO LUIZ CALCAGNO, no Correio Braziliense  


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