Parte de montante destinado a
manutenção e desenvolvimento do setor era usado para pagar irregularmente
aposentadorias; investimento irá para melhorias na escola e expansão de
matrículas
Uma
"pedalada" contábil de bilhões de reais, feita há anos por estados e
municípios para pagar professores e funcionários aposentados da educação com
verba pública destinada especificamente à manutenção e ao desenvolvimento da
educação, foi considerada irregular pela Justiça e forçará um ajuste de contas
já celebrado por especialistas.
Para eles, a eventual aplicação do montante em investimentos diretos como
melhorias em escolas, aumento de matrículas de alunos e de professores ativos,
pode ser um marco quase tão significativo quanto a confirmação do novo, e
permanente, Fundeb, aprovado nesta terça pelo Senado.
No último dia 17 o uso destes recursos previstos nos orçamentos da União, dos
estados e dos municípios, que são complementados inclusive com o antigo Fundeb
(Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério), para o pagamento de aposentadorias de professores das redes
públicas de ensino foi considerado irregular pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). O Tribunal de Contas da União (TCU) já havia emitido decisão
semelhante.
O mecanismo foi interpretado como desvio de recursos pelos tribunais.
Os docentes que deixaram de atuar nas salas de aula devem receber seus
rendimentos, determinou o STF, da mesma forma que os inativos de outros setores
do serviço público, com recursos vindos da Previdência.
Estudo do pesquisador Fábio Araujo de Souza, professor da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que ao menos 15 estados e o Distrito Federal destinaram,
se somados e em média, pelo menos R$ 26 bilhões por ano de recursos do mesmo
fundo onde consta o Fundeb para pagar aposentados do setor de educação.
Para Heloise Dantas, especialista em gestão pública pela FGV, o retorno de R$
26 bilhões/ano para a educação pode ser mais um divisor de águas na área, para
além da aprovação do Fundeb permanente."
- Discutimos o Fundeb, que é muito importante, mas há também esta gestão
equivocada dos recursos onde o próprio fundo está inserido. O orçamento do estado
do Rio, por exemplo, é três vezes menor do que esse valor. Isso poderia ser
direcionado para estruturar escolas que não possuem banheiro ou refeitório -
exalta.
No estudo de Souza, se as 16 unidades federativas utilizassem o montante para
zerar o número de jovens de 6 a 17 anos fora da escola em seus estados, por
exemplo, 13 estados ainda contariam com dinheiro sobrando para investir em
educação.
- Temos 141 mil escolas públicas no país, das quais 30% não têm esgoto e 70%
não contam com biblioteca - lembra o pesquisador.
Discussão acirrada na Justiça
O pagamento dos aposentados com verba pública que inclui o dinheiro do Fundeb,
considerado uma "pedalada" por especialistas, foi objeto de acirrada
discussão na Justiça.
No orçamento dos governos, essa despesa aparece sob a rubrica de
"Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE)". A disputa, até as
decisões recentes do TCU e do STF, ocorria por conta de uma
interpretação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), usada como argumentação dos
gestores estaduais e municipais para fazerem a manobra.
- Eles se apegaram a um parágrafo onde não era claro que o dinheiro deveria ser
usado exclusivamente para a manutenção da escola e fizeram a pedalada. Mas o
próprio texto da LDB, em outras partes, diz que o pagamento é para ativos.
Agora, o STF mostrou que isso não poderia ter sido feito - afirma Elida
Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, que
investigou sistematicamente os desvios nos estados.
Em seu artigo "Inativos da Educação: despesas da Educação?", o
pesquisador Fábio Souza mostra casos como o do Rio Grande do Sul, que já chegou
a gastar, em 2018, 15% dos 29% de sua receita líquida destinada ao MDE com
aposentados.
A legislação prevê que cada estado invista 25% de toda a sua receita oriunda de
impostos e transferências da receita líquida para o desenvolvimento com a
educação. Retirando os 15% para inativos, o Rio Grande do Sul, portanto, só
teria gasto 14%.
O Fundeb auxilia estados e municípios a fechar essa conta de 25% do MDE. No
MDE, os recursos têm "prioridade" para a educação básica, já no
Fundeb eles têm que ser "exclusivos".
Fábio de Souza afirma que os dados do seu levantamento e a falta de
transparência apontam para a necessidade de se checar se o dinheiro destinado
está realmente sendo investido na melhoria das escolas.
- Nenhum estado detalha sua folha de pagamento de maneira clara. Não temos como
saber da onde veio o recurso que pagou a construção de uma biblioteca ou o
salário de um aposentado. Aposentados precisam ser pagos, mas com o recurso da
Previdência, como é previsto - afirma Fábio.
Souza afirma que teve dificuldade de encontrar os dados. O valor de R$ 26
bilhões corresponde a 15 estados e o Distrito Federal. Ele não conseguiu os dados
das outras 11 unidades da federação, embora, por lei, tenham que informar como
aplicam o dinheiro do Fundeb.
- Tudo que é omitido, que é eclipsado, fica mais difícil de ser controlado-
afirma Souza
Muitas vezes a descrição da rubrica onde aparecem os pagamentos de professores
inativos é caracterizada como de "custos administrativos'.
- E um custo na casa dos bilhões chama a atenção- diz Souza.
Bilhões em São Paulo
Foi justamente um caso envolvendo bilhões de reais que levou a procuradora Elida
Graziane Pinto a investigar desvios que ocorriam na gestão estadual da Educação
de São Paulo desde 2012.
- Foi um trabalho extenuante. É uma decodificação mesmo para quem é da área. Os
gastos com inativos eram escondidos em rubricas para despistar. E as
metodologias dos cálculos mudam de estado para estado, em São Paulo é uma, no
Rio, por exemplo, já é outra - conta a procuradora.
A denúncia de Pinto foi fundamental para a decisão do STF, e obrigou o estado
de São Paulo a instaurar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para ajustar
suas contas gradativamente até conseguir entrar na regra.
- Não queremos punir o passado ou prender ninguém que errou lá atrás. Mas
precisamos ajustar o futuro. Isso significa mais vagas para alunos e em escolas
com melhor qualidade.
A reportagem entrou em contato com as entidades representativas dos secretários
municipais e estaduais, mas não obteve resposta até o fechamento da edição.
Por Raphael
Kapa, em O Globo Online
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