sexta-feira, 7 de agosto de 2020

DEMOGRAFIA - O bônus perdido

O seu futuro. O que ainda pode ser feito para evitar o piorO ano era 1981. Chevettes e Voyages circulavam pelas ruas brasileiras, Baila Comigo, de Rita Lee, bombava nas rádios e a ditadura militar se encaminhava para seu ocaso. Não se sabia na época, mas aquele acabaria sendo o ano no qual mais pessoas nasceram em território brasileiro.


Quase 40 anos depois, o resultado é um momento único na história do país e que deveria ser motivo de comemoração: estamos no auge de nosso bônus demográfico.

Isso significa que nunca foi tão baixa a razão de dependência: a relação entre os chamados dependentes — crianças, adolescentes e idosos — e aqueles em idade para trabalhar. Isso aconteceu por causa de uma rápida transição demográfica.

Nos anos 1960, cada mulher brasileira tinha, em média, seis filhos. Hoje, o número está abaixo de dois, o mínimo necessário para manter a população estável. A pirâmide etária do país, que antes tinha um formato egípcio com uma base muito larga, engordou no meio.

Como o crescimento da economia é definido basicamente pelo número de pessoas que trabalham multiplicado por quanto cada uma produz, nada melhor do que ter o máximo de gente em plena capacidade produtiva. O problema: não há empregos.

“Estamos num instante singular, que só acontece uma única vez na história de qualquer país”, diz José Eustáquio Alves, professor na Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Mas chegamos ao melhor momento do bônus demográfico com uma conjuntura econômica muito ruim.” Ou seja, o país está desperdiçando a oportunidade de enriquecer antes de sua população envelhecer.

Ele calcula que o melhor momento demográfico para o Brasil tenha sido entre os anos de 2015 e 2020, justamente o perío­do marcado por uma crise que parece eterna. Primeiro veio o crescimento zero de 2014, depois a grande recessão de 2015 e 2016, com uma queda acumulada de quase 8% do produto interno bruto, seguida pela tépida retomada entre 2017 e 2019, a mais fraca da história.

Quando a coisa parecia se acalmar, ocorreu o choque da pandemia da covid-19, que deve gerar a maior queda anual do PIB brasileiro em pelo menos um século, segundo as estimativas do Fundo Monetário Internacional. “A discussão do bônus é chave quando se está sem capacidade ociosa, como em 2012, quando o país registrou a mais baixa taxa de desemprego das últimas ­décadas. Mas agora estamos a anos-luz disso”, diz o economista Fabio Giambiagi.

Os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), de maio, mostram que menos da metade da população em idade produtiva está trabalhando no Brasil. É algo inédito.

A crise sanitária tem importante parcela de culpa nisso ao impedir a circulação, em especial a dos trabalhadores informais, mas também camufla outro aspecto: a taxa de desemprego beira os 13%, mas só considera quem está efetivamente em busca de vaga.

À medida que o isolamento social se enfraquecer, o mercado deverá ser inundado novamente, pressionando a taxa para cima. Estimativas apontam um desemprego de 20% ao final de 2020. O término do auxílio emergencial de 600 reais, previsto atualmente para setembro, será outro fator de pressão na renda das famílias.

Debora Balbino Pereira, de 26 anos, é um exemplo dessa geração que não produz a pleno potencial. Moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, ela cria sozinha um casal de crianças e começou como jovem aprendiz na Caixa Econômica Federal aos 15 anos.

Depois trabalhou em restaurante de shopping, em escritório e como babá e cuidadora de idosos. Mas, com a pandemia, só consegue bicos e está recebendo o auxílio. “Recebo uma ajuda aqui, outra ali. E assim vou levando”, diz.

O Brasil ainda poderá aproveitar benefícios demográficos nas próximas duas décadas, enquanto a pirâmide etária não se inverter totalmente. Mas esse período de crise duradoura também deixará cicatrizes. É o que os economistas chamam de histerese, um conceito emprestado da física para descrever materiais que depois de modificados não voltam à sua forma original.

Grosso modo, significa dizer que o ciclo econômico ruim afeta a própria estrutura e reduz a capacidade de crescer no futuro. No caso do mercado de trabalho, quanto mais tempo os trabalhadores ficam desempregados, menos eles são empregáveis. “O engenheiro que vira motorista de táxi na crise, se fica seis meses na praça, pode voltar a ser engenheiro. Mas, se ele permanece sete anos, o capital humano dele já se foi”, diz Giambiagi.

O administrador de empresas Marcelo Victor, de 53 anos, de São Paulo, vê de perto as dificuldades do mercado de trabalho no país. Desempregado há três anos, vive atualmente de bicos: ora revende alho pela internet, ora é ajudante de cozinha na hamburgueria de um amigo. Sua principal fonte de renda hoje vem do auxílio emergencial.

Com 25 anos de experiência nas áreas administrativa e financeira de empresas, considera que o último posto em que era bem remunerado por suas competências foi o de encarregado na empresa de transporte rodoviário Viação Cometa, da qual foi demitido em 2008. De lá para cá, prestou concursos públicos, tentou empreender e aceitou trabalhos temporários.

Victor tem dois filhos, de 10 e 13 anos, e lamenta não poder contribuir para o sustento de ambos. “Sinto que meus filhos vão me ver sempre nesta situação, à espera de um emprego que nunca vem.”

Um estudo do Banco Central de 2019 mostrou que os desempregados de longa duração, quando conseguem voltar para o mercado, ocupam vagas do setor informal e com salário bem mais baixo. Outros estudos internacionais mostram que os jovens que entram no mercado de trabalho num momento hostil sofrem os efeitos pelo resto da carreira.

Momentos como esse também geram fuga de cérebros: em um cenário de falta de emprego, aqueles mais educados preferem migrar em busca de oportunidades no exterior. Eles são atraídos por universidades e multinacionais em uma disputa por talentos em nível global, e não é por acaso: são justamente essas pessoas que têm maior chance de fazer uma inovação ou abrir um negócio, por exemplo.

Do ponto de vista da economia do país, enquanto o mercado de trabalho não deslancha, seria possível compensar seus efeitos incrementando o produto por trabalhador. O foco na produtividade tem dado o tom do discurso da equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes, que implementou medidas anticíclicas, mas dobrou a aposta nas reformas para aumentar a eficiência econômica e acaba de apresentar sua proposta para as mudanças tributárias.

“Você pode e deve fazer reformas que aumentem a produtividade. Mas, se não resolver o problema cíclico, correrá o risco de comprometer sua capacidade de crescimento e jogar os efeitos das reformas no lixo”, diz Ricardo Menezes, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Não há experiência de país na história que tenha enriquecido depois de envelhecer. Mas há os que usaram o bônus para mudar de patamar e conti­nuar crescendo para quando os ventos não estivessem mais soprando a favor.

Na América Latina, um destaque é a Costa Rica: o país teve a queda mais brutal da natalidade em todo o continente entre 1960 e 1975, mas diferenciou-se de seus vizinhos pelo investimento em educação e saúde e por uma estabilidade notável de políticas. Se um pequeno país da América Central parece um exemplo exótico, vale olhar para o caso da China, do outro lado do mundo.

Apesar de ter proibido em 1979 que as mulheres tivessem mais de um filho, política que só foi flexibilizada nos últimos anos, o país mais populoso do mundo explorou seu bônus para crescer ao ritmo de dois dígitos e hoje lidera o mundo em produção de robôs. O auge de população do país será em 2024, e depois a China perderá praticamente metade de sua população até 2100.

A estimativa é de um estudo de cientistas da Universidade de Washington publicado recentemente na revista científica The Lancet, que projeta um cenário demográfico radicalmente diferente para as próximas décadas. Depois de atingir uma população global de quase 10 bilhões de pessoas em 2064, o mundo começará a encolher e deverá chegar a 2100 com uma população de 8,7 bilhões de pessoas (nenhum demógrafo sério se arriscaria para além disso).

No Brasil, o pico populacional vai ocorrer antes, em 2043, com 235 milhões de habitantes. A partir daí, o atual sexto país mais populoso do mundo passará a diminuir e se tornará o 13o maior do planeta em 2100. Como um país que terá cada vez menos crianças e mais idosos, as demandas por educação tenderão a diminuir enquanto os gastos com saúde vão disparar.

Isso mexe com uma infinidade de aspectos econômicos — desde investimentos, com a necessidade de sustentar retornos de aposentadorias num mundo de juros baixos, até a inflação, na medida em que os mais velhos tendem a comprar menos itens duráveis.

“Provavelmente, não precisaremos construir mais escolas no Brasil. E tanto o Estado como as famílias acabarão destinando mais recursos a cada criança”, diz o demógrafo Cássio Turra, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Por outro lado, será preciso investir em políticas públicas de cuidados de longa duração para os idosos, como terapeutas e cuidadores.”

O processo de transição demográfica, ocorrido nos países desenvolvidos ao longo do século 20, foi relativamente mais rápido no Brasil e na maioria das nações emergentes. Em toda parte, está ligado a um contexto no qual as mulheres passam a estudar mais e até mais tarde, têm acesso a contraceptivos e ao planejamento familiar, adiam o momento do casamento e o da gestação, e com isso acabam tendo menos filhos.

A aposta é que esse processo vai acontecer ainda mais rápido em todo o mundo — exceto na África, que só começou sua transição etária nos anos 1980. A Nigéria se tornaria, por exemplo, uma nova potência demográfica, quadruplicando sua população dos 206 milhões de habitantes atuais, semelhante ao Brasil, para 790 milhões em 2100.

Além dela, República Democrática do Congo, Etiópia, Egito e Tanzânia também entrariam para o top dez das maiores populações do planeta até o fim do século. “A África será a nova China”, proclamou o jornal britânico Financial Times há alguns meses.

Curiosamente, parte do processo acontece devido ao continente ter se tornado a “China da China”: local de investimentos pesados internacionais e em infraestrutura, transferência de tecnologia, comércio ampliado e reserva de mão de obra barata para manufatura. Ainda assim, a demografia é algo central — não apenas pelo mercado de trabalho mas também pelo consumo.

IMIGRAÇÃOÉ fato que nem tudo é definido numa conta simples entre nascimentos e mortes. Para alguns países, um caminho para estender o bônus pode ser a imigração, já que a entrada de jovens permite manter em alta o contingente de trabalhadores.

Apesar da recente cruzada de Donald Trump contra os imigrantes, a previsão é que os Estados Unidos sigam estendendo seu bônus por meio dessa base por várias décadas, como também deve fazer a Austrália. No Brasil, a imigração é notoriamente baixa em comparação com o fluxo internacional: menos de 0,5% dos residentes no Brasil não nasceu aqui, ante 15% nos Estados Unidos.

Também é possível estimular a própria natalidade, como têm feito países como Espanha e Itália, que hoje já vivem um declínio populacional. Vagas e subsídios a creches e estímulos financeiros diretos para quem tem filhos estão no receituário, além de políticas para incentivar maior igualdade entre homens e mulheres dentro dos lares, como a extensão da licença-paternidade.

Em países como Rússia e Hungria, governados por líderes autoritários, a retórica do aumento da natalidade é pincelada com um tom étnico-nacionalista.

E há também a possibilidade de postergar a saída dos mais velhos do mercado, o que na prática significaria estender o bônus. A reforma da Previdência, aprovada no Brasil no ano passado como uma resposta às pressões fiscais causadas pelo envelhecimento populacional, aumentou a idade mínima de aposentadoria, mas isso não garante a permanência dos mais velhos no mercado de trabalho.

Também é difícil, no momento, entender qual é o mundo e que tipos de emprego restarão depois da pandemia. “Firmas e trabalhadores investiram algo equivalente a dez anos de transformação digital em apenas alguns meses”, escreveu o economista americano Richard Baldwin, professor de economia internacional no Geneva Institute, no portal VoxEU.

Alguns processos foram acelerados de uma maneira que pode ser transitória ou mais permanente, desde o teletrabalho e o esvaziamento dos escritórios, por exemplo, até o boom do comércio eletrônico. “Ninguém sabe o que realmente vai sobrar para os seres humanos fazerem nas próximas décadas”, diz Naércio Menezes, professor e coordenador no Centro de Políticas Públicas do Insper.

Ele se diz cético sobre programas voltados especificamente para a empregabilidade e não vê saída além de um forte foco na educação básica e nas habilidades socioemocionais, como trabalho em grupo, resiliência, empatia e perseverança. O movimento de automação coloca ainda mais em evidência o debate do futuro desemprego tecnológico, que divide os economistas, mas converge numa conclusão: será preciso educar os trabalhadores do futuro.

Sem isso, países como o Brasil não terão a menor chance. Já perdemos boa parte do impulso que a transição demográfica nos garantia. Só nos resta agora investir para que as gerações futuras também não sejam desperdiçadas.

 Por João Pedro Caleiro, Fabiane Stefano e Alex Halpern, na Revista Exame  


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