O seu futuro. O que ainda pode ser feito para
evitar o piorO ano era 1981. Chevettes e Voyages circulavam pelas ruas
brasileiras, Baila Comigo, de Rita Lee, bombava nas rádios e a ditadura militar
se encaminhava para seu ocaso. Não se sabia na época, mas aquele acabaria sendo
o ano no qual mais pessoas nasceram em território brasileiro.
Quase 40 anos depois, o resultado é um momento único na história do país e que
deveria ser motivo de comemoração: estamos no auge de nosso bônus demográfico.
Isso significa que nunca foi tão baixa a razão de dependência: a relação entre
os chamados dependentes — crianças, adolescentes e idosos — e aqueles em idade
para trabalhar. Isso aconteceu por causa de uma rápida transição demográfica.
Nos anos 1960, cada mulher brasileira tinha, em média, seis filhos. Hoje, o
número está abaixo de dois, o mínimo necessário para manter a população
estável. A pirâmide etária do país, que antes tinha um formato egípcio com uma
base muito larga, engordou no meio.
Como o crescimento da economia é definido basicamente pelo número de pessoas
que trabalham multiplicado por quanto cada uma produz, nada melhor do que ter o
máximo de gente em plena capacidade produtiva. O problema: não há empregos.
“Estamos num instante singular, que só acontece uma única vez na história de
qualquer país”, diz José Eustáquio Alves, professor na Escola Nacional de
Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). “Mas chegamos ao melhor momento do bônus demográfico com uma conjuntura
econômica muito ruim.” Ou seja, o país está desperdiçando a oportunidade de
enriquecer antes de sua população envelhecer.
Ele calcula que o melhor momento demográfico para o Brasil tenha sido entre os
anos de 2015 e 2020, justamente o período marcado por uma crise que parece
eterna. Primeiro veio o crescimento zero de 2014, depois a grande recessão de
2015 e 2016, com uma queda acumulada de quase 8% do produto interno bruto,
seguida pela tépida retomada entre 2017 e 2019, a mais fraca da história.
Quando a coisa parecia se acalmar, ocorreu o choque da pandemia da covid-19,
que deve gerar a maior queda anual do PIB brasileiro em pelo menos um século,
segundo as estimativas do Fundo Monetário Internacional. “A discussão do bônus
é chave quando se está sem capacidade ociosa, como em 2012, quando o país
registrou a mais baixa taxa de desemprego das últimas décadas. Mas agora
estamos a anos-luz disso”, diz o economista Fabio Giambiagi.
Os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad
Contínua), de maio, mostram que menos da metade da população em idade produtiva
está trabalhando no Brasil. É algo inédito.
A crise sanitária tem importante parcela de culpa nisso ao impedir a
circulação, em especial a dos trabalhadores informais, mas também camufla outro
aspecto: a taxa de desemprego beira os 13%, mas só considera quem está
efetivamente em busca de vaga.
À medida que o isolamento social se enfraquecer, o mercado deverá ser inundado
novamente, pressionando a taxa para cima. Estimativas apontam um desemprego de
20% ao final de 2020. O término do auxílio emergencial de 600 reais, previsto
atualmente para setembro, será outro fator de pressão na renda das famílias.
Debora Balbino Pereira, de 26 anos, é um exemplo dessa geração que não produz a
pleno potencial. Moradora do Grajaú, na zona sul de São Paulo, ela cria sozinha
um casal de crianças e começou como jovem aprendiz na Caixa Econômica Federal
aos 15 anos.
Depois trabalhou em restaurante de shopping, em escritório e como babá e
cuidadora de idosos. Mas, com a pandemia, só consegue bicos e está recebendo o
auxílio. “Recebo uma ajuda aqui, outra ali. E assim vou levando”, diz.
O Brasil ainda poderá aproveitar benefícios demográficos nas próximas duas
décadas, enquanto a pirâmide etária não se inverter totalmente. Mas esse
período de crise duradoura também deixará cicatrizes. É o que os economistas
chamam de histerese, um conceito emprestado da física para descrever materiais
que depois de modificados não voltam à sua forma original.
Grosso modo, significa dizer que o ciclo econômico ruim afeta a própria
estrutura e reduz a capacidade de crescer no futuro. No caso do mercado
de trabalho, quanto mais tempo os trabalhadores ficam desempregados, menos
eles são empregáveis. “O engenheiro que vira motorista de táxi na crise, se
fica seis meses na praça, pode voltar a ser engenheiro. Mas, se ele permanece
sete anos, o capital humano dele já se foi”, diz Giambiagi.
O administrador de empresas Marcelo Victor, de 53 anos, de São Paulo, vê de
perto as dificuldades do mercado de trabalho no país. Desempregado há
três anos, vive atualmente de bicos: ora revende alho pela internet, ora é
ajudante de cozinha na hamburgueria de um amigo. Sua principal fonte de renda
hoje vem do auxílio emergencial.
Com 25 anos de experiência nas áreas administrativa e financeira de empresas,
considera que o último posto em que era bem remunerado por suas competências
foi o de encarregado na empresa de transporte rodoviário Viação Cometa, da qual
foi demitido em 2008. De lá para cá, prestou concursos públicos, tentou
empreender e aceitou trabalhos temporários.
Victor tem dois filhos, de 10 e 13 anos, e lamenta não poder contribuir para o
sustento de ambos. “Sinto que meus filhos vão me ver sempre nesta situação, à
espera de um emprego que nunca vem.”
Um estudo do Banco Central de 2019 mostrou que os desempregados de longa
duração, quando conseguem voltar para o mercado, ocupam vagas do setor informal
e com salário bem mais baixo. Outros estudos internacionais mostram que os
jovens que entram no mercado de trabalho num momento hostil sofrem os
efeitos pelo resto da carreira.
Momentos como esse também geram fuga de cérebros: em um cenário de falta
de emprego, aqueles mais educados preferem migrar em busca de
oportunidades no exterior. Eles são atraídos por universidades e multinacionais
em uma disputa por talentos em nível global, e não é por acaso: são justamente
essas pessoas que têm maior chance de fazer uma inovação ou abrir um negócio,
por exemplo.
Do ponto de vista da economia do país, enquanto o mercado de trabalho não
deslancha, seria possível compensar seus efeitos incrementando o produto por
trabalhador. O foco na produtividade tem dado o tom do discurso da equipe
econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes, que implementou medidas
anticíclicas, mas dobrou a aposta nas reformas para aumentar a eficiência
econômica e acaba de apresentar sua proposta para as mudanças tributárias.
“Você pode e deve fazer reformas que aumentem a produtividade. Mas, se não
resolver o problema cíclico, correrá o risco de comprometer sua capacidade de
crescimento e jogar os efeitos das reformas no lixo”, diz Ricardo Menezes,
professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Não há experiência de país na história que tenha enriquecido depois de
envelhecer. Mas há os que usaram o bônus para mudar de patamar e continuar
crescendo para quando os ventos não estivessem mais soprando a favor.
Na América Latina, um destaque é a Costa Rica: o país teve a queda mais brutal
da natalidade em todo o continente entre 1960 e 1975, mas diferenciou-se de
seus vizinhos pelo investimento em educação e saúde e por uma estabilidade
notável de políticas. Se um pequeno país da América Central parece um exemplo
exótico, vale olhar para o caso da China, do outro lado do mundo.
Apesar de ter proibido em 1979 que as mulheres tivessem mais de um filho,
política que só foi flexibilizada nos últimos anos, o país mais populoso do
mundo explorou seu bônus para crescer ao ritmo de dois dígitos e hoje lidera o
mundo em produção de robôs. O auge de população do país será em 2024, e depois
a China perderá praticamente metade de sua população até 2100.
A estimativa é de um estudo de cientistas da Universidade de Washington
publicado recentemente na revista científica The Lancet, que projeta um cenário
demográfico radicalmente diferente para as próximas décadas. Depois de atingir
uma população global de quase 10 bilhões de pessoas em 2064, o mundo começará a
encolher e deverá chegar a 2100 com uma população de 8,7 bilhões de pessoas
(nenhum demógrafo sério se arriscaria para além disso).
No Brasil, o pico populacional vai ocorrer antes, em 2043, com 235 milhões de
habitantes. A partir daí, o atual sexto país mais populoso do mundo passará a
diminuir e se tornará o 13o maior do planeta em 2100. Como um país que terá
cada vez menos crianças e mais idosos, as demandas por educação tenderão a
diminuir enquanto os gastos com saúde vão disparar.
Isso mexe com uma infinidade de aspectos econômicos — desde investimentos, com
a necessidade de sustentar retornos de aposentadorias num mundo de juros
baixos, até a inflação, na medida em que os mais velhos tendem a comprar menos
itens duráveis.
“Provavelmente, não precisaremos construir mais escolas no Brasil. E tanto o
Estado como as famílias acabarão destinando mais recursos a cada criança”, diz
o demógrafo Cássio Turra, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Por outro
lado, será preciso investir em políticas públicas de cuidados de longa duração
para os idosos, como terapeutas e cuidadores.”
O processo de transição demográfica, ocorrido nos países desenvolvidos ao longo
do século 20, foi relativamente mais rápido no Brasil e na maioria das nações
emergentes. Em toda parte, está ligado a um contexto no qual as mulheres passam
a estudar mais e até mais tarde, têm acesso a contraceptivos e ao planejamento
familiar, adiam o momento do casamento e o da gestação, e com isso acabam tendo
menos filhos.
A aposta é que esse processo vai acontecer ainda mais rápido em todo o mundo —
exceto na África, que só começou sua transição etária nos anos 1980. A Nigéria
se tornaria, por exemplo, uma nova potência demográfica, quadruplicando sua
população dos 206 milhões de habitantes atuais, semelhante ao Brasil, para 790
milhões em 2100.
Além dela, República Democrática do Congo, Etiópia, Egito e Tanzânia também
entrariam para o top dez das maiores populações do planeta até o fim do século.
“A África será a nova China”, proclamou o jornal britânico Financial Times há
alguns meses.
Curiosamente, parte do processo acontece devido ao continente ter se tornado a
“China da China”: local de investimentos pesados internacionais e em
infraestrutura, transferência de tecnologia, comércio ampliado e reserva de mão
de obra barata para manufatura. Ainda assim, a demografia é algo central — não
apenas pelo mercado de trabalho mas também pelo consumo.
IMIGRAÇÃOÉ fato que nem tudo é definido numa conta simples entre nascimentos e
mortes. Para alguns países, um caminho para estender o bônus pode ser a
imigração, já que a entrada de jovens permite manter em alta o contingente de
trabalhadores.
Apesar da recente cruzada de Donald Trump contra os imigrantes, a previsão é
que os Estados Unidos sigam estendendo seu bônus por meio dessa base por várias
décadas, como também deve fazer a Austrália. No Brasil, a imigração é
notoriamente baixa em comparação com o fluxo internacional: menos de 0,5% dos
residentes no Brasil não nasceu aqui, ante 15% nos Estados Unidos.
Também é possível estimular a própria natalidade, como têm feito países como
Espanha e Itália, que hoje já vivem um declínio populacional. Vagas e subsídios
a creches e estímulos financeiros diretos para quem tem filhos estão no
receituário, além de políticas para incentivar maior igualdade entre homens e
mulheres dentro dos lares, como a extensão da licença-paternidade.
Em países como Rússia e Hungria, governados por líderes autoritários, a
retórica do aumento da natalidade é pincelada com um tom étnico-nacionalista.
E há também a possibilidade de postergar a saída dos mais velhos do mercado, o
que na prática significaria estender o bônus. A reforma da Previdência,
aprovada no Brasil no ano passado como uma resposta às pressões fiscais
causadas pelo envelhecimento populacional, aumentou a idade mínima de
aposentadoria, mas isso não garante a permanência dos mais velhos no mercado
de trabalho.
Também é difícil, no momento, entender qual é o mundo e que tipos de emprego restarão
depois da pandemia. “Firmas e trabalhadores investiram algo equivalente a dez
anos de transformação digital em apenas alguns meses”, escreveu o economista
americano Richard Baldwin, professor de economia internacional no Geneva
Institute, no portal VoxEU.
Alguns processos foram acelerados de uma maneira que pode ser transitória ou
mais permanente, desde o teletrabalho e o esvaziamento dos escritórios, por
exemplo, até o boom do comércio eletrônico. “Ninguém sabe o que realmente vai
sobrar para os seres humanos fazerem nas próximas décadas”, diz Naércio
Menezes, professor e coordenador no Centro de Políticas Públicas do Insper.
Ele se diz cético sobre programas voltados especificamente para a
empregabilidade e não vê saída além de um forte foco na educação básica e nas
habilidades socioemocionais, como trabalho em grupo, resiliência,
empatia e perseverança. O movimento de automação coloca ainda mais em evidência
o debate do futuro desemprego tecnológico, que divide os economistas, mas
converge numa conclusão: será preciso educar os trabalhadores do futuro.
Sem isso, países como o Brasil não terão a menor chance. Já perdemos boa parte
do impulso que a transição demográfica nos garantia. Só nos resta agora
investir para que as gerações futuras também não sejam desperdiçadas.
Por João Pedro Caleiro,
Fabiane Stefano e Alex Halpern, na Revista Exame
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