Na reta final para a definição do Orçamento de 2021,
há uma indefinição básica sobre a política fiscal — a sobrevivência do teto de
gastos.
A falta de consenso entre as diversas áreas do governo a respeito da
obediência a ele acabou influenciando a dinâmica da dívida mobiliária, que
tornou-se mais desfavorável após o forte aumento das despesas para o
enfrentamento da pandemia e da instabilidade dos mercados.
Com o “colchão de liquidez” em patamar muito próximo do nível mínimo de
segurança para a gestão da dívida pública, o Tesouro Nacional deposita agora
praticamente todas as suas fichas na expectativa de que o Conselho Monetário
Nacional aprove a transferência de boa parte dos lucros do Banco Central (BC)
com o câmbio para seu cofre para fazer frente às necessidades de resgate de
títulos. A intenção é transferir para o Tesouro R$ 400 bilhões do lucro cambial
acumulado em R$ 521,1 bilhões no primeiro semestre pelo BC.
A tensão começou em julho, quando houve um vencimento elevado de cerca de R$
220 bilhões que não foi totalmente renovado dadas as condições de mercado, e se
acentuou no início deste mês, quando o debate a respeito do teto de gastos
ganhou espaço. Diante da pressão do mercado por juros mais altos, o Tesouro
optou por encurtar os prazos dos papéis. Ainda assim, os prêmios chegaram a
quadruplicar em comparação com o praticado no início do ano.
A se confiar na avaliação do Tesouro, não há problemas à vista porque vencem
pouco mais de R$ 250 bilhões em títulos da dívida interna ainda neste ano. Mas
o quadro muda bem em 2021 quando vencem ao menos R$ 443 bilhões apenas nos
primeiros quatro meses, dos quais R$ 118,6 bilhões em janeiro (Valor , 24/8).
Esses números são de junho e não incluem as emissões de prazos curtos feitas
nas últimas semanas, como os R$ 29 bilhões de títulos de seis meses emitidos
nos leilões da semana passada. Portanto, a conta a ser paga no início
do próximo ano será ainda mais elevada.
Para complicar, o colchão de liquidez que o Tesouro costuma manter para casos
de emergência caiu para um patamar próximo do mínimo razoável, apurou o Valor .
Antes da pandemia, o Tesouro mantinha caixa para cerca de seis meses de
vencimentos de títulos públicos. Agora, essas reservas teriam recuado para
perto do limite prudencial, cuja referência é de aproximadamente três meses.
Para os próximos três meses, os vencimentos esperados somam cerca de R$ 180
bilhões. Mas há analistas que acompanham de perto as contas públicas e estimam
que as reservas estão bem abaixo disso, em menos de um terço. O Tesouro nega,
mas evita precisar o número argumentando questão estratégica.
No passado, a transferência dos lucros do Banco Central com o câmbio para o
Tesouro era automática. Quando o BC tinha prejuízo, o Tesouro cobria a perda
com a emissão e transferência de títulos públicos. Essa prática terminou com a
Lei 13.820, de 2019, que estabeleceu que o BC só pode passar recursos ao
Tesouro em caso de restrição severa de liquidez e consultado o CMN. O Conselho
deve discutir o pedido na quinta-feira.
Outra expectativa é com o andamento do projeto de lei complementar 159/2020, do
deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE), que regula a transferência do
resultado operacional e de parte dos saldos financeiros de operações com
reservas e derivativos cambiais no contexto da calamidade pública causada pela
covid-19. São cerca de R$ 500 bilhões, que poderiam ser usados para o auxílio
financeiro a Estados e municípios e emergencial, despesas com saúde e assistência
social, com manutenção do emprego e da renda e as constantes dos
orçamentos fiscal e da seguridade social.
No caso da transferência que será levada ao CMN o dinheiro não poderá ser usado
para pagar despesas, mas apenas para custeio da dívida pública interna, que
está ao redor de R$ 4,2 trilhões. De toda forma, a operação libera recursos
para amenizar o resultado fiscal deste ano, estimado em um rombo de mais de R$
800 bilhões.
É indispensável caracterizar a situação de restrição de liquidez e evitar que a
operação seja interpretada como pedalada fiscal para financiar o Tesouro, o que
derrubou a ex-presidente Dilma Rousseff. Preocupado com isso, o presidente do
Banco Central, Roberto Campos Neto consultou o Tribunal de Contas da União (TCU)
na semana passada. O tema é controverso, mas deve ser aprovado e é um poderoso
sinal de alerta a respeito dos rumos da política fiscal.
Do Valor
Econômico
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