Na primeira semana deste mês, ocorreu a 1ª Jornada de
Direito Administrativo realizada pelo Superior Tribunal de Justiça e o Centro
de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.
Evento de extrema relevância, por franquear aos estudiosos e/ou operadores do Direito
Administrativo a oportunidade singular de levar ao palco sugestões de
enunciados, a jornada foi ao encontro do que desejava a comunidade jurídica.
Prova disso está no número de propostas apresentadas.[1] .
Parte relevante das discussões envolvia temas já enfrentados pelo STJ e, claro,
também no âmbito dos TRFs. Digo isso para esclarecer que temas mais recentes ou
menos rotineiros também desembarcaram na jornada.
Importante esclarecer que não fora indicado qualquer limite, salvo os de
caráter formal, para conduzir os interessados a apresentar a recomendação.
Logo, sugestões de enunciados em antagonismo com julgados do STJ poderiam ser
oferecidas, permitindo uma discussão fora autos de teses jurídicas.
O mecanismo de discussão idealizado pela organização contemplou um sistema de
filtros, razão pela qual as propostas foram submetidas aos Presidentes e
Coordenadores de cada uma das comissões "setoriais" e,
posteriormente, se consideradas aptas a prosseguir, discutidas pelos demais
integrantes das citadas comissões.
Apenas as sugestões de enunciados que sobreviveram aos dois filtros iniciais
chegaram à plenária, oportunidade em que todas as comissões se reuniram.
A plenária reuniu a coordenação geral, liderada pela eminente ministra Assusete
Magalhães, e composta ainda pelo professor Cesar Pereira, pelo ministro do TSE
Tarcísio Vieira de Carvalho Neto e pelo juiz federal Daniel Marchionatti, bem
como pelos ministros do STJ Benedito Gonçalves, Herman Benjamin, Mauro
Campbell, Sergio Kukina e Og Fernandes, além do desembargador federal João
Batista Gomes Moreira, que presidiram as comissões. A eles se juntaram os
coordenadores e demais membros das comissões.
Entre as propostas de enunciados, havia a seguinte 'Os efeitos das sanções de
suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de
contratar com a entidade sancionadora se dão exclusivamente com a entidade
sancionadora, não podendo previsão editalícia estender os efeitos da sanção
para toda a Administração Pública'.
Interessante trazer a público a síntese da justificativa apresentada pelo
autor/autora da sugestão. Ombreado ao texto, seu/sua idealizador(a) dizia que
diversos editais de licitação repudiam a participação de interessados
punidos de acordo com o artigo 83, inciso III, da Lei das Estatais. Afirmava-se
que tais previsões violariam o citado artigo, dada a circunscrição nele
prevista. Não se descuidou de indicar entendimentos judiciais na linha
extensiva, fazendo-se alusão ao entendimento do próprio STJ diante de discussão
semelhante, a envolver o artigo 87, III da Lei 8.666/93.
Transcreve-se aqui o dispositivo, já que dele se falará ao longo deste texto.
Diz a lei:
"Artigo 83. Pela inexecução total ou parcial do contrato a empresa pública
ou a sociedade de economia mista poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao
contratado as seguintes sanções:
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento
de contratar com a entidade sancionadora, por prazo não superior a 2 (dois)
anos.'
Coube à comissão 2 conhecer a proposta em primeira mão, dada a temática nela
inserida. A ideia de levar à discussão a sugestão, mesmo que seu conteúdo
simplesmente retratasse o que dispõe expressamente o artigo 83, III da Lei
13.303/16, pareceu-nos oportuna, senão crucial.[2]
Ao aprová-la na etapa 1, entendíamos chegado o momento de jogar luz sobre o
tema dos efeitos das sanções aplicadas administrativamente no cenário das contratações
públicas, mesmo que, preservada a proposta original, a discussão se cingisse à
Lei das Estatais.
Avançando para os debates, a contar com a totalidade dos membros da comissão 2,
o enunciado foi acolhido. Foi feito apenas um ajuste de redação para tornar
ainda mais claro que o enunciado tratava apenas da penalidade prevista na lei das
estatais[3]. Assim, a proposta ficou com a seguinte redação: 'No âmbito da Lei
13.303/2016, os efeitos da sanção de suspensão temporária de participação
em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora
se dão exclusivamente com a entidade sancionadora, não podendo previsão
editalícia estender os efeitos da sanção para toda a Administração Pública'.
Todavia, no dia seguinte, após a discussão na plenária e contabilizados os
votos de todos os participantes, ele não vingou.
Curioso perceber que, olhada a literalidade do dispositivo, sequer faria
sentido um enunciado para melhor traduzir ou guiar a interpretação do artigo
83, III da Lei 13.303/16, tamanha a clareza do dispositivo. [4]
Todo modo, os debates na plenária da Jornada reforçaram a existência de
opiniões dissonantes, nos moldes do que ocorre com o artigo 87, III da Lei
Geral de Licitações.
Sabe-se que, a respeito do artigo 87, III, da Lei 8.666/93, algumas são as
interpretações . Há quem defenda que os efeitos territoriais da punição ali
descrita ultrapassam os muros da entidade/órgão que a aplicou e alcançam toda
esfera de governo em que se "localiza" a unidade sancionadora.
Para o TCU, diversamente (e curiosamente, dado que postura outra poderia
se esperar diante de sua função controladora), a expansão não ocorreria,
compreendendo-se que a sanção está, pela dicção do artigo 6º, XII, constrita
aos contornos de quem a aplicou.
E, finalmente, a visão do STJ, para quem a punição reverbera por toda a
Administração Pública, inabilitando a participação do condenado de norte a sul,
leste a oeste. Trata-se, na minha visão, de entendimento não sintonizado com a
Lei, seja porque não se pode desconsiderar a legal distinção entre
Administração e Administração Pública[5], o que por si só inviabilizaria o
entendimento sufragado pelo Tribunal, seja porque, ao assim fazer, aproximam-se
sanções dos incisos III (suspensão e impedimento) e IV (inidoneidade) que o
legislador quis distinguir, exatamente traçando repercussões distintas para
cada uma delas.
Na plenária, veio à tona a Lei 8.666/93, embora dela não se cuidasse. O
enunciado endereçava outro dispositivo, como dito. Esse o primeiro equívoco,
com todo o respeito.
Utilizar a régua da Lei geral é inservível. A Lei 13.303/16 foi criada
exatamente diante do imperativo constitucional a exigir tratamento apartado
para as empresas estatais, quanto às licitações e contratos. E
não há no artigo 173, § 1º , III da Constituição da República[6] qualquer
virgula a autorizar um abate na liberdade do legislador para disciplinar de
forma diversa a matéria das sanções no âmbito das estatais.
Portanto, ainda que a Lei 8.666/93 realmente prescrevesse a amplitude de
efeitos que o STJ aponta, nenhuma consequência daí se extrairia porque a regra
em análise é outra, prevista em outra lei. E o legislador responsável pela Lei
das Estatais redigiu de forma cristalina o dispositivo, encerrando na entidade
sancionadora as repercussões da punição. Se há desacerto, o que implica
avaliação subjetiva alimentada pelo ideário punitivista, que se altere o
comando legal. Cabe aos que entendem ser infeliz a redação firmar fileiras a
favor da mudança. Afinal, a regra não é imutável.
O que não parece sustentável é distorcer ou ignorar o dispositivo enxertando
conteúdo que não é seu. À doutrina não é dado fazê-lo e ao Judiciário
igualmente se veda.
A pluralidade de interpretações diante do que estabelece o art. 87, III da Lei
8.666/93[7], que não delimita, segundo alguns, textualmente os efeitos da sanção
de impedimento e suspensão, embora, ao empregar a palavra administração,
acione-se o conceito constante do art. 6º, XII da mesma Lei Geral de licitações e
contratos[8], não importa diante de outra regra constante da Lei das Estatais.
Compreende-se que exista uma preocupação com comportamentos inadequados
adotados pelas empresas . Evidentemente que não se trata de aplaudir
descumprimentos contratuais ou o descompasso com a lei. Mas, novamente,
inconveniências legais são passíveis de correção, observadas as prescrições
jurídicas.
Entendemos não se sustentar, para fins de expandir as consequências da
reprimenda, ler a norma (ainda que contra ela própria) entendendo-a como
ferramenta na luta contra a corrupção.
Infrações contratuais não são corrupção, salvo também se se decidir
novamente adicionar, marginalizando o Poder Legislativo e o processo
democrático de produção legislativa, palavras e hipóteses ao que prescrevem o
caput e os incisos do artigo 5º da Lei 12.846/13.
E ainda que se estivesse diante de ato catalogado legalmente como corrupção,
a pessoa jurídica por isso responderia em ambiente outro e observadas regras
próprias. Afinal, a mencionada Lei anticorrupção prescreve sanções
administrativas e judiciais passiveis de aplicação quando configurado ato
de corrupção. A isso se somam as disposições da Lei de Improbidade.
Tudo isso a desconstruir a precária sustentação segundo a qual há de se ler o
artigo 83, III da Lei das Estatais como se fosse um instrumento de combate
à corrupção e isso respaldaria amplificar a repercussão
sancionatória.
Ainda que a vocação da norma fosse outra, que não endereçar descumprimentos
contratuais ou desrespeito à lei, a luta contra a corrupção não
justificaria a fragilização da segurança jurídica. O combate a este mal não se
faz provocando novo desprestígio à ordem jurídica, em especial quando
verbalizado por quem tem o dever de aplicá-la.
Sugestão de enunciado refutada. Placar respeitado, como deve ser num ambiente
democrático. Nem por isso a sensação é menos ruim.
[1] Foram apresentadas 743 sugestões das quais 40
foram, ao final, aprovadas.
[2] A comissão 2 foi Presidida pelo Ministro Og Fernandes e composta pelo
Professor Rafael Wallbach Schwind e por mim.
[3] A respeito da evolução das normas de licitação das estatais,
veja-se: AVELAR, Mariana Magalhães. Licitações das empresas
estatais: delineamento do regime jurídico aplicável aos procedimentos de
contratação do Estado empresário. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP,
Belo Horizonte, ano 15, n. 177, p. 49-64, set. 2016.
[4] Sobre a referida sanção na Lei das Estatais, sugerimos ler GUIMARAES,
Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das Estatais: comentários ao regime
jurídico licitatório e contratual da Lei n 13.303/2016. Belo Horizonte: Forum,
2017 e DAL POZZO, Augusto; MARTINS, Ricardo Marcondes(coord). Estatuto jurídico
das empresas estatais. São Paulo: Contracorrente,2018. Nesta segunda obra,
destacamos o artigo de autoria de Francisco Zardo.
[5] Art. 6 º XI - Administração Pública - a administração direta e indireta da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive
as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do
poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas; XII -
Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a
Administração Pública opera e atua concretamente;
[6] § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da
sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade
econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços,
dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e
alienações, observados os princípios da administração pública; (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
[7] Art. 87, III - suspensão temporária de participação em licitação e
impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois)
anos;
[8] Art. 6 o XII - Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa
pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;
Por Cristiana
Fortini, no Consultor Jurídico
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