Engana-se quem um dia
imaginou o MDB, senhor do tempo em que o capitalismo sem risco se expandiu no
Brasil, como um partido avesso à concorrência. O presidente Michel Temer
encerra o primeiro ano em que governou o Brasil de cabo a rabo com um novo
equilíbrio de poder, que faz sombra sobre o Judiciário, e se projeta como
legado de sua gestão.
O Congresso bem que
tentou, mas acabou acuado pelo medo da urna. O Executivo seguiu destemido.
Manobrou para que o TSE mantivesse as vagas de seus coveiros de provas vivas,
na expressão imortalizada pelo ministro Herman Benjamin, até a absolvição da
chapa eleita em 2014; alimentou as disputas entre AGU, TCU e MPF em torno dos
acordos de leniência que põem em risco os processos da Lava-Jato; optou por uma
candidata de oposição para a Procuradoria-Geral da República que desacelerou os
acordos de delação premiada; e escolheu um diretor-geral da Polícia Federal que
deu livre curso às disputas contra o Ministério Público acumuladas ao longo de
sua carreira de sindicalista.
Temer foi tão bem
sucedido em todas as empreitadas que resolveu coroar o ano com a audácia máxima
da graça presidencial. Não fugiu à regra de outros presidentes, que, no Natal,
cumprem a prerrogativa constitucional de indultar condenados, mas foi além de qualquer
antecessor e, sobretudo, na direção oposta de seu primeiro decreto natalino.
Fora da presidência,
Cármen Lúcia pode vir a reequilibrar jogo
Comandado pelo
primeiro ministro da Justiça de seu governo, o atual ministro do Supremo
Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o indulto de 2016 surpreendeu
criminalistas. Contrariamente aos decretos anteriores, marcados pelo
enfrentamento das políticas de encarceramento em massa, a graça presidencial do
ano passado as defendeu, na linha das políticas judiciária e de segurança
paulistas nas quais Moraes e o próprio presidente da República tiveram seu
batismo profissional. De tão restritas, as regras do indulto de 2016 revoltaram
defensores públicos.
A graça do presidente
que se prepara para cumprir seu último ano no cargo é de natureza oposta. O
ministro da Justiça mudou. O presidente, não. E, como Torquato Jardim informa,
não sem antes defender a abstração, a impessoalidade e a universalidade do
decreto, sua abrangência foi definida por Temer. Entre o indulto de 2016 e
aquele que acaba de ser publicado, o presidente foi denunciado duas vezes. Não
teria razão para atender a recomendações do conselho penitenciário de que o
indulto excluísse o crime do colarinho branco. O Congresso não permitiu que o
processo tivesse curso, mas é isso que acontecerá quando Temer deixar o cargo.
O indulto apenas
beneficia quem já foi condenado. Dificilmente, portanto, um tribunal acolheria
a alegação de que, com o decreto presidencial, Temer legisla em causa própria.
Mas o indulto atua em duas frentes. A primeira, simbólica, é a que naturaliza o
perdão judicial para crimes de colarinho branco e abre caminho para que seu
sucessor mantenha o rumo e beneficie o atual inquilino do Palácio do Planalto
em indultos futuros. Outro impacto, de efeito imediato, é aquele que reduz a
atratividade dos acordos de delação premiada.
Deltan Dallagnol
acusou o golpe com a celeridade que sempre lhe faltou para reconhecer os
excessos da corporação. "O perdão de 80% da pena, sem precisar fazer nada,
é melhor do que o Ministério Público poderia oferecer. Depois desse novo
paradigma de indultos natalinos, será difícil obter a colaboração, assim como a
responsabilização efetiva, de qualquer corrupto no Brasil", escreveu o
procurador da Lava-Jato. Na escalada da concorrência contra os órgãos
judiciais, o presidente já foi orientado a dar mais um passo, o de processar
Dallagnol por injúria, calúnia e difamação. Arrisca-se em guerra judicial, uma
vez que a Associação Nacional dos Procuradores da República já se mexe por Ação
Direta de Constitucionalidade contra o decreto.
Não terá sido a
primeira vez. Presidente da ANPR, Guilherme Robalinho lembra que, por muito
menos, Rodrigo Janot, em 2015, tomou este rumo contra o indulto de Dilma
Rousseff. A ação, que se voltava contra a abrangência do perdão a condenados
por crimes hediondos, de tortura, de terrorismo e de tráfico de drogas, não
teve prosseguimento. Ante o ceticismo de que Raquel Dodge venha a encampar uma
ADI do gênero, Robalinho lembra que a PGR propôs ação de inconstitucionalidade
contra a propaganda oficial pela reforma da Previdência. Contabilizado o
prejuízo das carreiras judiciais com a proposta em curso, no entanto, a ação
não surpreende.
Na hipótese de que o
presidente da ANPR esteja certo, uma guerra do gênero acabaria no Supremo, onde
o ministro Gilmar Mendes faz dueto com o presidente em sua fábrica de habeas
corpus. Temer, no entanto, foi capaz de superar seu principal conselheiro.
Enquanto o ministro prossegue em sua cruzada contra as prisões preventivas e a
privação de liberdade depois de decisão colegiada, o presidente atua na
extinção da pena. Não subordinou a graça nem mesmo ao ressarcimento aos cofres
públicos. Apenas o fez se o prejuízo for privado.
O espírito que move o
dueto foi definido pelo ministro Luis Roberto Barroso na última sessão do ano
no Supremo: "Eu ouvi o áudio. 'Tem que manter isso aí, viu'. Vi a fita. Vi
a mala de dinheiro. Vi a corridinha. Li o depoimento de Funaro. Vivemos uma
tragédia brasileira (...) Não acho que há uma investigação irresponsável, acho
que há um país que se perdeu pelo caminho. Naturalizou as coisas erradas. E
temos o dever de enfrentar isso. E fazer um novo país. E ensinar às novas
gerações que vale a pena ser honesto".
A presidente da
sessão interveio, mais uma vez, para colocar panos quentes na discussão, mas é
sobre a ministra Cármen Lúcia, porém, que, mais uma vez, recai a (baixa)
expectativa de que o indulto de Temer deixe de ser reeditado. Não pelas
prerrogativas que desfruta mas, justamente, pelo poder que deixará de ter.
No último trimestre
do ano, a pauta do tribunal passará para um ministro (Dias Toffoli) da
contrarrevolução garantista. Desprovida da presidência, a ministra deixaria de
votar pelo peso do cargo e passaria a decidir com sua consciência. Só então, o
tribunal, rachado ao meio, voltaria a ter uma maioria que não vê graça na
tragédia do presidente.
Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico
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