A LRF,
mesmo tendo atingido tão significativa idade, não goza de suficiente
estabilidade a ponto de poder dispensar novas salvaguardas - a exemplo da Lei
da Transparência e da Lei de Crimes de Responsabilidade Fiscal.
Não é
incomum ouvir-se dizer que idade traz estabilidade. Essa expressão, passada de
geração em geração, pareceu-nos oportuna para abrir esse artigo que se propõe a
fazer uma reflexão a respeito desta emblemática e, porque não dizer, feliz data
representada pelo 04 de maio. Como se sabe, há exatos 21 anos, em decorrência
do PLP 18/1999, de autoria do Poder Executivo - Governo FHC - a Lei
Complementar n. 101 [1], popularmente batizada como A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), estava finalmente sendo
sancionada, após aprovada mediante alto índice de votos favoráveis - 385 a
favor, 86 contra e 04 abstenções.
Constituindo-se em um divisor de águas no campo das Finanças Públicas, especialmente pelo
fato de estabelecer normas voltadas à responsabilidade na gestão fiscal,
prática até então impensável de ser exigida em contextos políticos marcados
pelo patrimonialismo como o nosso, reconhecemos a bravura e resistência da LRF aos ataques sofridos durante
toda essa sua jovem trajetória. Entraves das mais diversas naturezas,
relacionados à implementação de mudanças institucionais e de cunho fiscal que,
assumimos, requerem um considerável tempo de maturação para saltos de
transformações estruturais, foram, estão e certamente continuarão dificultando
o itinerário ousadamente aberto pela aniversariante do dia.
De pesquisas acadêmicas a trabalhos técnicos, diversos estudos nacionais e
internacionais, cuja quantidade inviabiliza a listagem neste espaço, apontam
que, mesmo com muitas dificuldades, a trajetória por uma gestão fiscal
responsável continua sendo percorrida no país. É nesta direção que o presente
artigo também procura seguir, se debruçando pontualmente sobre alguns ganhos
observados nestes 21 anos de LRF,
bem como sobre os entraves enfrentados e possibilidades para um futuro onde
esse adjetivo - responsabilidade - finalmente qualifique a gestão fiscal do
Brasil. De antemão assumimos que estes envolvem os quatro pilares da referida
Lei, quais sejam: planejamento, transparência, controle e responsabilização.
Em relação ao planejamento, partindo das metas do Plano Plurianual (PPA), o ganho está na inserção de novos
dispositivos e orientações sobre a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e sobre a Lei Orçamentária Anual (LOA),
possibilitando maior articulação entre o planejamento de curto e médio prazo, o
que tornou mais efetivo o ciclo orçamentário. No quesito transparência fiscal,
a LRF contribuiu para
com o controle da gestão pública, tornando obrigatórios os Relatórios Resumidos
de Execução Orçamentária e Relatórios de Gestão Fiscal. Anos depois tal quesito
foi aperfeiçoado pela Lei n. 131 [2], de 27 de maio de 2009, conhecida como Lei
da Transparência, e novos dispositivos foram acrescentados para que houvesse
'disponibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a
execução orçamentária e
financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios'.
Destaque-se também os avanços promovidos para o acompanhamento do endividamento
público (também em final de mandato) e das despesas com pessoal e seus
encargos, bem como os reforços aos mecanismos de definição de critérios e metas
fiscais engendrados na LDO e
no monitoramento da execução orçamentária,
possibilitando maior tempestividade no acompanhamento das contas públicas. Como
se vê, ambas, a LRF e
a Lei da Transparência foram importantes marcos legais no fortalecimento do
controle da administração pública. Esta última, por exemplo, traz nos incisos
do art. 1º, parágrafo único, mecanismos que podem ser adotados para garantir o
maior controle social e controle
externo.
Já no que tange à responsabilização, a possibilidade de os agentes públicos
responderem pelo descumprimento das suas regras, resultando tanto em sanções
institucionais (aquelas que recaem sobre o ente público) como pessoais (que
recaem sobre o agente que der causa), foi devidamente assegurada no Código
Penal Brasileiro, por meio da Lei n. 10.028 [3], de 19 de outubro de 2000,
denominada Lei de Crimes de Responsabilidade Fiscal. E nesse particular, quem
poderia imaginar que em um país onde existem leis que 'pegam e que não pegam', a responsabilidade fiscal
daria causa, controvérsias à parte, ao impeachment da maior autoridade política
do país?
Os ganhos mencionados, obviamente, não foram obtidos junto a um 'mar de rosas'.
Mesmo que tenham sido amenizados com o passar dos anos, os entraves ainda são
presentes e latentes no cotidiano da gestão fiscal. E nesta seara, talvez o
principal e mais difícil obstáculo a ser superado está no conjunto de
componentes sobre os quais a realidade brasileira encontra-se estruturada, onde
práticas clientelistas, corporativistas e insulamentos burocráticos, regidos
por lideranças tradicionais, se fazem muito presentes. A cultura neopatrimonial
persiste, sem dúvida, como um obstáculo para uma efetiva absorção do modus
operandi orientado pela LRF.
E nessa esteira, reconhecemos que a LRF, que trouxe tantas e significativas mudanças, pode não ter
sido suficiente para disciplinar o conturbado campo das Finanças Públicas do país. A
necessidade de modernização e a simplificação do marco legal que orienta a
gestão fiscal na administração pública brasileira, tornando-o mais aplicável à
diversidade regional brasileira e às situações de emergências, podem ser
pensados, a exemplo do que ocorreu mediante a 'EC do Orçamento de Guerra' [4],
para o enfrentamento da Covid-19. Contudo, com muita parcimônia e sob intensa
vigilância, pois o contexto da pandemia fez emergir as mazelas da gestão dos recursos públicos que de norte a
sul do país ainda são largamente praticadas.
Em webinar recentemente promovido pelo Estadão [5], contemplando a participação
do TCU e de um dos
'pais' da LRF, o economista
José Roberto Afonso, este último defendeu, como possibilidades futuras, um
esforço de 'lipoaspiração' das inúmeras regras fiscais incluídas na
Constituição Federal e a criação de um 'código fiscal nacional', sob a alegação
de que não existe nenhum país que possua tanta matéria fiscal quanto o Brasil,
característica que não tem gerado os benefícios almejados. Defende ainda,
juntamente com outros participantes, a urgência de se ter instrumentos mais sofisticados,
tendo-se em vista que as diferentes facetas da realidade complexa vivenciada,
notadamente a partir dos problemas da pandemia, não são capazes de serem
açambarcados pela LRF, nos
moldes em que hoje está concebida. No mesmo webinar, o vice-presidente do TCU, ministro Bruno Dantas, 'alertou a preocupação
com o risco de a pandemia deixar um legado de abalo das instituições fiscais e
do quadro normativo, entre elas a busca de brechas na LRF, que poderia acarretar o naufrágio
completo do arcabouço normativo' [5]. É como se a Covid-19 tornasse mais
evidente a necessidade de se revisar a LRF, tornando-a mais efetiva para o atual contexto pandêmico.
Para tanto, tornam-se necessárias mudanças instrumentais e institucionais, que
em ambientes como o nosso, dificilmente são condição suficiente para a
efetividade da gestão fiscal responsável. Essa depende também de outros
contornos políticos, como a necessidade de organização do Conselho Fiscal, que
deve ser constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de
Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da
sociedade, tal como requerido pela própria LRF em seu artigo 67, contudo, ainda não efetivado no país.
Bem como não prescindirá de práticas de governança e articulação federativa.
É devido a observação dos aspectos acima analisados que entendemos que a LRF, mesmo tendo atingido tão
significativa idade, não goza de suficiente estabilidade a ponto de poder
dispensar novas salvaguardas - a exemplo das mencionadas Lei da Transparência e
Lei de Crimes de Responsabilidade Fiscal - já que os marcos legais são parte de
um contexto político mais amplo e requerem mudanças nos traços da cultura
política predominante, que sabemos exige tempo. Noutras palavras, o que estamos
afirmando é que se o aparecimento de algumas 'rugas' e 'fios de cabelos
brancos' na ainda jovem LRF não
a estabilizaram por completo, a conveniência de outras alterações ou adaptações
institucionais provavelmente ainda poderão ser formatadas a fim de que ela
prossiga no propósito para a qual foi concebida. Parafraseando o 'Grande poeta
universal do Brasil', não deveremos esquecer que, neste país, no meio do
caminho rumo à gestão fiscal responsável a LRF sempre poderá encontrar uma pedra.
Vida longa à LRF!
[1] BRASIL. Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de
2000. 2000. Estabelece normas de finanças
públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm Acesso em: 28 abr.
2021.
[2] BRASIL. Lei Complementar n. 131, de 27 de maio de 2009. Acrescenta
dispositivos à Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece
normas de finanças públicas voltadas
para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências, a fim de
determinar a disponibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas
sobre a execução orçamentária e
financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp131.htm Acesso em: 28 abr. 2021.
[3] BRASIL. Lei n. 10.028, de 19 de outubro de 2000. Altera o Decreto-Lei no
2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a Lei no 1.079, de 10 de abril
de 1950, e o Decreto-Lei no 201, de 27 de fevereiro de 1967. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10028.htm
Acesso em: 28 abr. 2021.
[4] BRASIL. Emenda Constitucional n. 106, de 7 de maio de 2020. Institui regime
extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de
calamidade pública nacional decorrente de pandemia. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc106.htm
Disponível: 03 maio 2021.
[5] FERNANDES, A. Economistas defendem revisão em regras fiscais para que o
Brasil se alinhe ao resto do mundo. ESTADÃO. Economia & Negócios.
Disponível em:
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,economistas-defendem-revisao-em-regras-fiscais-para-que-brasil-se-alinhe-ao-resto-do-mundo,70003696074
Acesso em: 28 abr. 2021.
Por Ana Rita Silva Sacramento, Fabiano Maury Raupp, Denise
Ribeiro de Almeida e Elaine Cristina de Oliveira Menezes, em O Estado de S.
Paulo
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