Em 2020, o Congresso aprovou um arcabouço especifico para
a crise da Covid-19: o chamado "orçamento de guerra". Para 2021, a
extensão da pandemia não foi considerada no planejamento fiscal e tem levado a
diversas alterações nas regras do jogo. Essas mudanças trazem consigo riscos
para o equilíbrio fiscal de longo prazo. Nesse aspecto, o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Instituição Fiscal
Independente (IFI) têm papel convergente: resguardar a responsabilidade fiscal.
Ex-presidente
do Banco Central, o economista Affonso Celso Pastore diz que ficaram evidentes
os riscos decorrentes da deterioração fiscal. O afrouxamento do teto de gastos
e da meta de resultado primário, combinado com o confuso processo orçamentário
de 2021, afetou os juros, o câmbio e a inflação. Tudo coroado pela falta de
contundência na escolha dos gastos para combater a crise e pela lenta
imunização da população, na visão de Pastore. Segundo ele, "estamos
discutindo regras, quando na verdade nada é cumprido", e os problemas com
o Orçamento deste ano afetaram a credibilidade da política fiscal.
Pastore lembra que o Brasil foi capaz de gerar superávits primários e reduzir o
endividamento por um longo período. Como resultado, o País conseguiu manter a
estabilidade fiscal e a credibilidade na condução da política econômica, tendo
inclusive atingido o grau de investimento. Os bons resultados fiscais
permitiram um contexto de razoável previsibilidade na economia e contas
externas equilibradas.
Para o professor, o problema começou quando abandonamos a meta de resultado
primário, passamos a incorrer em déficits e a dívida voltou a crescer. O Brasil
retornou a uma situação de fragilidade fiscal, que desembocou na criação do
teto de gastos e da própria IFI, em 2016. Mas o aumento da dívida seguiu, na
ausência de medidas suficientes para cumprir o teto por período maior. Nesse
cenário, os juros subiram, com títulos mais longos precificando maior prêmio de
risco. O risco da dívida se manifestou também no câmbio: a moeda brasileira
desvalorizou-se mais do que as moedas das principais economias desenvolvidas e
emergentes. Com dólar mais caro, a inflação sentiu o baque.
O economista José Roberto Afonso propõe saídas para a crise fiscal. Ele entende
que as respostas à crise da covid19, no caso do Brasil, concentraram-se na
descentralização federativa e no ativismo dos poderes nacionais, que têm
funcionado como guardiões da democracia e do equilíbrio institucional. Destaca
os instrumentos de financiamento, a exemplo do uso das válvulas de escape das
regras fiscais (meta e teto) e da emenda do "orçamento de guerra".
Para ele, no entanto, não haverá crescimento sem resolver o problema da saúde.
Pontua que, em um país com gasto privado em saúde maior do que o público, o
setor público deveria se fazer mais presente. Mais do que isso, deve haver
maior articulação entre os entes.
O economista lembra que nunca terminamos de regulamentar as disposições da
Constituição sobre limites e condições para o endividamento público. Sem isso,
não dispomos de uma âncora fiscal efetiva, sendo necessário reconstituir o
arcabouço fiscal e aprimorá-lo, numa direção que garanta a sustentabilidade de
longo prazo.
O famigerado "novo normal", após a covid-19, na visão dele, deve
aumentar a descentralização fiscal, reforçar a proteção social e digitalizar a
economia. Podemos estar migrando para um mundo com menos regras e mais metas e
princípios. O fundamental é que se restabeleçam as condições de crescimento e
responsabilidade fiscal nessa nova realidade.
As conclusões de Pastore e Afonso - que participara de webinar organizado pela
IFI e TCU -vão na
direção da consolidação fiscal. Nesse ponto, é preciso separar o joio do trigo:
o combate à pandemia requer gastos, e isso é óbvio. Foi e está sendo assim em
todo o mundo. O pós-crise, no entanto, tem de se pautar por um programa de
reequilíbrio das contas públicas, com medidas claras, que ajudem a restabelecer
a confiança dos agentes e a realinhar suas expectativas em relação ao Brasil.
Há vários caminhos possíveis. Todos passam por respeito às regras em sua
essência e transparência plena. O TCU e
a IFI, a partir desse evento e da cooperação para realização de estudos e
trabalhos, podem ajudar a jogar luz sobre essa jornada.
Por Felipe Salto, Daniel Couri e Leonardo
Albernaz, em O Estado de S. Paulo
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