Padrão hidrológico se altera, reservatórios não enchem mais, tarifas sobem e surge a ‘espiral da morte’
A intensificação das mudanças climáticas é apontada
como principal suspeita de um fenômeno com impacto direto nas operações do
setor elétrico e nas contas de luz: os reservatórios de grandes usinas não
enchem mais — mesmo com a atividade econômica em estado de letargia e a demanda
por energia sem aumento expressivo nos últimos anos.
Entre 2016 e 2020, a afluência que chega às represas de hidrelétricas como
reflexo das chuvas ficou muito abaixo da média registrada pelo Operador
Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em um período de quase nove décadas: 85,6%
no Sudeste/Centro-Oeste (considerada a principal caixa d’água do país), 49,3%
no Nordeste, 88,4% no Sul e 76,2% no Norte.
O levantamento, feito pelo Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE),
demonstra que o volume nacional de chuvas superou a média histórica em oito
anos desde o começo do século. Na última década, a hidrologia ficou acima da
média em só duas ocasiões. Nos últimos cinco anos, nenhuma vez.
Para o economista Adriano Pires, diretor do CBIE, a dificuldade sistêmica de
recuperação dos reservatórios tem provocado uma nova realidade no setor: em vez
de racionamento físico, com necessidade de corte de carga, o país passou a
viver em um contínuo “racionamento econômico”.
“É notório que a velocidade de recomposição de reservatórios se alterou ao
longo do período, não só pelo efeito de menor volume de chuvas, mas também em
decorrência do gradual e consistente aumento de temperaturas em razão do
aquecimento global, que por sua vez interfere nos dados temporais de
evaporação”, diz Pires.
“Nossa concepção de racionamento econômico leva em conta um peso excessivo de
despacho fora da ordem de mérito, não previsto pelo modelo computacional, de
térmicas com CVU [custo variável] de até R$ 1.700 por megawatt-hora para
preservar volumes mínimos dos reservatórios, com uma consequente oneração
excessiva de tarifas de eletricidade, que poderia ser evitada mediante
planejamento.”
Essas usinas, que analistas do setor afirmam ironicamente ser movidas a “Chanel
no 5” pelo altíssimo custo do óleo combustível, têm valor do megawatt-hora de
12 a 14 vezes superior ao de hidrelétricas.
O reflexo disso é percebido no bolso. Desde 2013, logo após a polêmica medida
provisória (MP 579) editada pela então presidente Dilma Rousseff para reduzir
os preços da energia, a tarifa média no mercado regulado subiu 105,2%. É mais
que o dobro da inflação acumulada de 47,7% no período, calcula o CBIE.
“Todos os anos é a mesma histórica. Chega julho, agosto ou setembro e as
térmicas mais caras são acionadas. Não temos tido problemas mais graves
unicamente por falta de crescimento da economia. O setor elétrico precisa de
mudanças”, afirma Pires.
Segundo ele, a solução passa por contratar termelétricas movidas a gás natural
(menos caras e menos poluentes frente a opções como óleo combustível e carvão
mineral) para operar “na base” do sistema, ou seja, de forma praticamente
ininterrupta.
Pires avalia que ter em torno de 8 mil MW — o equivalente à geração de Itaipu —
em novas térmicas a gás seria suficiente. Neste ano, com reservatórios do
Sudeste/Centro-Oeste no patamar mais baixo desde 2015, quase todas as térmicas
do país estão sendo acionadas mesmo em plena temporada de chuvas. Além disso, o
Brasil tem importado energia dos vizinhos.
Luiz Eduardo Barata, ex-diretor-geral do ONS, concorda com a percepção de que o
regime de chuvas mudou para valer. “Não sou especialista em mudanças
climáticas, mas estou convencido de que é isso. Ao não cuidarmos da Amazônia e
do Cerrado, estamos perpetuando o problema. Não é apenas um período crítico,
que passará.”
Barata diverge, no entanto, quanto à forma de lidar com esse novo desafio e
afirma que não compartilha a visão dos “adorado - res de térmicas”. Para ele, o
caminho é apostar mais em um “programa intensivo de fontes renováveis”, como
parques eólicos e solares, que podem representar até 50% da matriz elétrica —
hoje a participação está em torno de 12%.
Como essas fontes são intermitentes, devem ter o complemento das térmicas a
gás, mas não para operar na base. As hidrelétricas deverão funcionar como
reguladoras do sistema, provendo mais energia quando não há vento e ou sol, mas
recebendo um alívio como carros-chefe da operação. “O gás é um combustível de
transição energética, com menos emissões do que o óleo e o carvão, mas o mundo
não vai por esse caminho”, diz Barata.
A pressão sobre as contas de luz continua em 2021. A TR Soluções, empresa de
tecnologia aplicada ao setor elétrico, projeta reajuste médio de 17,1% nas
tarifas residenciais. A estimativa considera 53 concessionárias de distribuição
do país, além de sete permissionárias, das quais só três — Light (RJ), Enel Rio
e Energia Borborema (PB) — já tiveram processos homologados.
Em auditoria recente, o Tribunal
de Contas da União (TCU)
chamou a atenção para uma “alocação desequilibrada” entre consumidores do
mercado cativos (principalmente residências e pequenos comércios) e livres (indústria
e grande comércio).
Entre 2015 e 2019, segundo o órgão de controle, foram gastos R$ 47 bilhões com
a receita fixa dos geradores termelétricas, que recebem uma remuneração
independentemente de serem ou não acionados, a fim de garantir segurança ao
sistema. Esse custo é totalmente arcado por consumidores cativos — embora o
mercado livre já corresponda a 30% da demanda total. Para escapar, mais e mais
empresas tornam-se consumidores livres. Enquanto isso, pequenos investidores
instalam painéis fotovoltaicos para fugir das contas de luz das distribuidoras,
por meio de um sistema de compensação. Um custo crescente vai ficando em cima
de cada vez menos consumidores. É um círculo que a auditoria do TCU chama de “espiral da morte”.
Fontes: CBIE e TR Soluções * Referentes à exclusão do
ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins incidente sobre as contas de luz,
conforme julgamento do STF
Por Daniel Rittner, no Valor Econômico
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