Há algum tempo, a sociedade brasileira vem despertando para a perversidade
de subsídios setoriais, que são usufruídos pelos agentes econômicos, sem
repassar benefícios proporcionais para a população. Exemplo recente foram os
bilhões de reais empalmados, ainda que licitamente, por uma empresa
automobilística que deixou o país por razões comerciais, com milhares de
desempregados.
No setor elétrico, há farta quantidade de encargos tarifários, para atender
políticas públicas, muitas delas fundamentais para, por exemplo, suprir a
população carente ou atender custos com a distribuição de energia elétrica em regiões
isoladas do Sistema Interligado Nacional. Há, porém, encargos que precisam ser
sopesados, considerando seus benefícios pontuais e o grave impacto na alta
conta de consumo de todos os brasileiros.
Aliás, essa é a mensagem deste breve artigo: temos como abaixar a conta de luz
sem prejudicar a sustentabilidade do setor de distribuição de energia elétrica, nem tampouco
inviabilizar a geração distribuída de energia solar no país.
Não se pode esquecer que os subsídios não dão em árvore. No setor elétrico, a
redução artificial do custo de energia para agentes econômicos específicos,
tais como micro e mini geradores de energia elétrica, repercute diretamente na tarifa dos consumidores
cativos, daqueles que, conquanto mais vulneráveis, honram mensalmente a sua
conta de consumo de energia emitida pela concessionária de distribuição local.
Por esse motivo, o subsídio cruzado na tarifa de energia elétrica, em que se beneficia uma camada da população, em
detrimento de todos os demais consumidores de energia elétrica, deve ser sopesado, em face dos benefícios e
danos causados à sociedade por inteira.
A geração distribuída (GD) de energia
elétrica mostra-se de fundamental importância para difundir a
energia solar, matriz limpa e abundante, no Brasil. Através da GD, qualquer um
pode gerar a sua própria energia, usualmente através de painéis solares, em sua
própria residência, seja no terraço do prédio, no telhado na casa ou até mesmo
flutuando sobre a piscina. Incentivada através do Sistema de Compensação de
Energia Elétrica, instituído pela regulação setorial, admite-se a GD até mesmo
em propriedade de terceiros, de forma remota, compartilhada ou ainda numa
comunhão de múltiplas unidades consumidoras. A GD deixou de ser apenas uma
economia na conta de energia dos consumidores que instalam o seu painel solar.
Ela virou um grande negócio.
Através do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), o micro ou mini
gerador pode injetar sua energia gerada e não consumida na rede de
distribuição, para que depois, quando precisar, possa usufruir da mesma
quantidade de energia, ou compartilhar com terceiros, a ser reivindicada da
distribuidora. O consumidor, também produtor de energia, passou a ser chamado
de prossumidor. Parece justo, econômico e benéfico para a sociedade, sobretudo
tratando-se de energia solar.
O problema é que a tarifa de energia
elétrica no Brasil ainda não é binômia para todos os consumidores,
em que seria possível separar o custo da infraestrutura de transmissão e
distribuição de energia elétrica do
preço do volume de energia consumido. Acrescentam-se, ainda, na tarifa de todos
nós, as perdas comerciais (furtos) e técnicas de energia elétrica, dissipadas na rede elétrica, além dos
significativos encargos tarifários.
Para incentivar a geração distribuída de energia elétrica, a Resolução Normativa 482/12 da Agência Nacional
de Energia Elétrica, que instituiu o SCEE, isenta o mini ou micro gerador de
pagar os custos de infraestrutura de rede, as perdas e os encargos tarifários
que deveriam incidir sobre a energia fornecida pela concessionária de
distribuição. A lógica, que se mostrará perversa a seguir, é que seria adequado
equiparar a quantidade de energia injetada na rede pelo prossumidor e o volume
posteriormente por ele consumido.
Esquece-se, contudo, que a infraestrutura de rede, os encargos tarifários e a
perdas da energia fornecida pela distribuição devem ser pagas pelo sistema, nos
termos da Lei 9.427/96. Se o mini ou micro gerador for isentado desse custo, os
demais consumidores, em sua grande maioria os menos favorecidos, que não têm
condições de instalar um painel solar, pagam pelo subsídio concedido àqueles
prossumidores de GD.
Conforme estudo apresentado pelo Centro de Estudos em Regulação e
Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas, essa sistemática cria um ciclo
vicioso, pois na medida em que a energia fica mais cara para o consumidor cativo
que não tem painel solar, a tendência é que os mais abastados instalem ou
compartilhem painéis e migrem para GD e também deixem de pagar a infraestrutura
de rede, os encargos tarifários e as perdas de energia. Com a redução da
quantidade de consumidores cativos não integrantes da GD, a fatia dividida para
cada um cresce ainda mais, afinal os custos de rede permanecerão sendo os
mesmos, estimulando-se a migração para GD cada vez mais e, sucessivamente,
aumentando a tarifa para os demais consumidores. Trata-se da espiral da morte,
muito bem definida pela FGV/CERI, o que inviabilizará o fundamental setor de
distribuição de energia elétrica do
país.
Para se ter ideia dos custos evitados pelo prossumidor, pode ser comparado o
preço unicamente do volume de energia consumida e o valor daquela energia
acrescidos dos custos de rede. Conforme análise da Secretaria de Avaliação,
Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia - Secap/ME, a
distorção pode ser percebida, quando observados os resultados do Leilão
01/2018, em que a energia solar contratada pelo ambiente regulado teve preço
médio final de R$ 118,57, enquanto que, ao compensar a energia gerada pela
tarifa cheia de baixa tensão, é como se esse prossumidor vendesse energia à
distribuidora por uma valor de aproximadamente R$ 750,00/MWh, o que amplia
muito a rentabilidade dos investimentos em micro e minigeração solar
distribuída.
Importante ressaltar que a rede de distribuição continua sendo utilizada
normalmente pelo mini ou micro gerador, demandando investimentos pela
distribuidora para permitir o fluxo bidirecional, de modo a receber e fornecer
energia para o prossumidor. E nem se diga que haverá redução de custos ao
permitir a geração de energia próximo ao centro de carga, na medida em que a geração
remota admite que a energia seja injetada na rede de distribuição em um local
distante, em usinas solares de pequenos portes, mas consumida próxima ao centro
urbano.
Dizem, ainda, que a energia solar, proveniente da GD, injetada através do
Sistema de Compensação de Energia Elétrica, permite a redução de custo da
geração termelétrica, preservando-se ainda o meio ambiente. Trata-se de falsa
retórica, na medida em que, de acordo com o SCEE, o prossumidor não possui
compromisso de fornecer energia à distribuidora. Ele injeta de acordo com a sua
conveniência. Assim, tratando-se de fonte de energia solar, que, por natureza,
é intermitente e depende da irradiação do sol, a distribuidora de energia elétrica, para garantir o
abastecimento de 100% do seu mercado consumidor, não pode fiar-se na geração
distribuída, sendo obrigada continuar comprando energia dos leilões promovidos
pelo governo, inclusive da matriz termelétrica.
Aliás, denota-se da aquisição compulsória da energia eventualmente injetada
pela GD, outro grave prejuízo para o consumidor cativo de energia elétrica. Afinal, as
distribuidoras de energia elétrica,
por força da Lei 10.848/04, são obrigadas a adquirir energia em leilão
promovido pelo governo, pelo preço fixado no certame, de forma a assegurar, com
planejamento prévio, o suprimento do mercado. Ao receber a energia injetada
pela GD, a distribuidora fica com excesso de energia, devendo vender no mercado
de curto prazo, pelo preço de liquidação de diferenças. Pela lógica, havendo
sobra de energia no mercado, o preço da energia fica mais barato. Ou seja,
aquele preço de energia mais barato obtido na revenda no mercado de curto prazo
é o preço que a distribuidora estaria recebendo pela energia injetada no
sistema pelo mini ou micro gerador.
Ocorre que, ao exigir da distribuidora a energia que pretende consumir, em
compensação à energia injetada, caso a distribuidora não tenha energia
contratada para o fornecimento solicitado, caberá a ela seguir a mão inversa e
comprar no mercado de curto prazo para fornecer ao prossumidor conectado à sua
rede, pagando preço mais caro, em decorrência da escassez de energia.
Frise-se a importância da geração distribuída de energia solar, seja por se
tratar de razão da relevante fonte renovável, da esperada otimização do recurso
energético, da economicidade que pode vir a proporcionar e do fomento desse
mercado, com fornecedores de diferentes matérias primas, prestadores de serviço
e comercializadores do insumo. A crítica que se faz refere-se ao Sistema de
Compensação de Energia Elétrica e seu grave prejuízo para sociedade.
A GD não é novidade. O Decreto 5.163/04 já previa a energia elétrica proveniente da
geração distribuída como meio de atendimento à totalidade do mercado dos
agentes de distribuição. No entanto, de forma coerente com ordenamento
jurídico, impunha-se que a contratação de energia elétrica proveniente de GD fosse precedida de chamada
pública promovida diretamente pelo agente de distribuição, de forma a garantir
publicidade, transparência e igualdade de acesso aos interessados. Ademais, o
montante total da energia proveniente da GD não podia exceder a dez por cento
da carga do agente de distribuição.
O SCEE, contudo, impõe à distribuidora a aquisição da energia elétrica gerada pelo
prossumidor, sem qualquer previsibilidade, em descompasso com a norma legal que
impõe a ela a contratação prévia de energia para abastecimento de 100% de seu
mercado de consumo. Assim, a concessionária passa a ser obrigada a adquirir
energia em excesso e a repassar os custos a todos os consumidores que não
compõem aquele seleto Sistema de Compensação de Energia Elétrica.
Por outro lado, ao se considerar os diversos perfis de consumo e a energia
associada ao autoconsumo, verifica-se não ser possível conhecer com precisão a
energia total gerada pela GD. Pior, não há, na metodologia ou no processo de
definição da tarifa das distribuidoras, qualquer cálculo ou homologação do
volume dos subsídios que os demais consumidores suportam em consequência do
SCEE, tampouco há fonte de recurso, seja de encargos setoriais, seja do Tesouro
Nacional. A sociedade não tem as informações completas para a melhor tomada da
decisão política a respeito da continuidade ou não do incentivo na forma como
vem sendo implementado.
O Tribunal de Contas da União,
em recente decisão provocada por representação instaurada pelo Ministério
Público, com base na análise da Secretaria de Fiscalização de Infraestrutura de
Energia Elétrica, reconheceu que o SCEE constitui política de subsídio cruzado
entre consumidores de energia
elétrica, de natureza regressiva em termos de distribuição de renda, que
tem pressionado a tarifa dos consumidores de menor poder aquisitivo e tornado
menos onerosos os gastos dos consumidores com maior renda.
Rechacem-se aqui as críticas tendenciosas à competência do TCU para exame da matéria, ao
invés de se enfrentarem os sólidos fundamentos da Corte, a quem compete sim a
análise de subsídios a setores econômicos, da alocação equitativa de custos e
do incentivo ao seu uso eficiente, da economicidade das medidas adotadas pelos
órgãos públicos, do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos
administrativos, inclusive visando ao auxílio ao Poder Legislativo no exame de
projetos de lei sobre o tema.
Não se pode passar em branco a assertiva do TCU: 'a utilização crescente da GD no Brasil e a regulamentação
ora vigente geram externalidades negativas aos demais consumidores e às
concessionárias de energia
elétrica, o que, além de gerar ineficiências econômicas e de ir contra
os preceitos de justiça social, criam um círculo vicioso, que compromete a
sustentabilidade do próprio marco regulatório'.
Caberá ao Governo incentivar o fomento à geração distribuída, de forma
equilibrada e proporcional, como, aliás, o faz ao conceder relevantes
benefícios tributários, tais como isenção de ICMS e alíquota zero de PIS/COFINS
sobre a energia consumida no âmbito do SCEE. Mas, jamais poderá ignorar
princípios constitucionais da República, criando-se subsídio cruzado
distorcido, para que os mais pobres paguem conta mais alta em benefícios
daqueles que possuem condições de instalar painéis solares e usufruir do
pernicioso Sistema de Compensação de Energia Elétrica.
Por Vítor Alves de Brito, em O Estado de S. Paulo
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