Está em pauta no Supremo Tribunal
Federal a ADI 5529, que examina a inconstitucionalidade do artigo 40, parágrafo
único, da Lei de Propriedade Industrial (Lei n° 9.279/1996) [1]. Discute-se a
postergação da data de domínio público da patente, com projeções tão profundas
quanto o acesso à saúde, a proteção do meio ambiente e a tutela da concorrência.
Enquanto o padrão mundial de duração das patentes é 20 anos [2], a legislação
em discussão permite uma prorrogação adicional por uma década! Atento à
desproporção, em julgamento no último dia 7 o Supremo suspendeu a eficácia da
norma em relação a patentes de produtos e processos farmacêuticos e
equipamentos da saúde.
No presente artigo, examina-se o tema a partir da interface com o
desenvolvimento sustentável. Vale salientar que o próprio site do STF destaca
tal conexão e correlaciona a ADI a quatro dos 17 objetivos do desenvolvimento
sustentável (ODS), conforme se extrai da página de acompanhamento processual:
Desenvolvimento sustentável e patentes
A Agenda 2030 estabelece objetivos para transformar o mundo, a partir de um
roteiro para lidar com desafios globais, em diversos campos. Para tanto, são
estabelecidos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), aos quais
correspondem 169 metas que traçam uma agenda para a humanidade [3]. A inovação
tecnológica e o incentivo a criatividade são parte importante desse processo de
transformação. Novas tecnologias reduzem a poluição, utilizam menos recursos,
permitem acesso à água e novos tratamentos para doenças.
Definir limites adequados para as patentes não significa negar sua importância
[4]; ao contrário, implica reconhecê-la e discutir seu adequado exercício.
Ocorre que, sem a devida atenção, a patente recebe uma proteção jurídica que a
converte em mero monopólio. Como adverte o prêmio Nobel Jopeh Stiglitz:
"O problema fundamental do sistema de patentes é simples: ele se baseia na
restrição do uso do conhecimento. Como não há custo extra associado ao fato de
um indivíduo adicional desfrutar dos benefícios de qualquer parte do
conhecimento, restringir o conhecimento é ineficiente. Mas o sistema de
patentes não restringe apenas o uso do conhecimento; ao conceder poder de
monopólio (temporário), muitas vezes torna os medicamentos inacessíveis para
pessoas que não têm seguro. No Terceiro Mundo, isso pode ser uma questão de
vida ou morte para pessoas que não podem comprar novos medicamentos de marca,
mas podem ter condições de comprar genéricos" [5].
O debate travado na ADI 5529 diz respeito à manutenção desmedida das patentes,
circunstância que atinge brutalmente setores essenciais como saúde,
concorrência e meio ambiente. Vale notar que entre as ODS o objetivo nove diz
respeito a indústria, inovação e infraestrutura, e inclui, entre suas metas:
"Apoiar o desenvolvimento tecnológico, a pesquisa e a inovação nacionais
nos países em desenvolvimento, inclusive garantindo um ambiente político
propício para, entre outras coisas, a diversificação industrial e a agregação
de valor às commodities" (ODS9, meta 9.b). As metas incluem também
"fortalecer a pesquisa científica, melhorar as capacidades tecnológicas de
setores industriais em todos os países" (ODS9, meta 9.5), e "promover
a industrialização inclusiva e sustentável" (ODS9, meta 9.2). Desenvolver
a tecnologia e proteger a inovação é parte das premissas da Agenda 2030,
contudo, a proteção deve ser adequada.
O enunciado do artigo 40, parágrafo único, da LPI é desproporcional e
estabelece um prazo que pode chegar a uma década a mais do que no resto do
globo, como se destaca a seguir. Está em descordo também com as metas da
Agenda2030 de "atingir a cobertura universal de saúde (...)" (ODS3,
meta 3.8) e "reduzir a taxa de mortalidade materna global (...)"
(ODS3, meta 3.11).
Três fatos relevantes sobre o tema
Para melhor compreensão da ADI 559, e também para afastar alguns mitos [6], é
preciso enfatizar três fatos:
a) O Brasil adota padrões acima dos outros países em matéria de propriedade
industrial;
b) A discussão em pauta não extingue a propriedade intelectual no Brasil, nem
acabará com a inovação tecnológica;
c) O impacto da decisão do STF para o Sistema Único de Saúde (SUS) é calculado em
bilhões de reais.
Fato 1) O Brasil adota padrões acima dos outros países em matéria de propriedade
intelectual
A proteção da propriedade intelectual é fundamental e ninguém está propondo o
fim das patentes, porém, sua tutela jurídica deve estar em harmonia com a
realidade e a Constituição.
O Acordo sobre os Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao
Comércio (TRIPS, na sigla em inglês), em seu artigo 33, determina que "a
vigência da patente não será inferior a um prazo de 20 anos, contados a partir
da data do depósito". Em cumprimento ao acordo, o Brasil adotou o prazo de
20 anos para patentes de inovação e 15 anos para modelo de utilidade, contatos
a partir do depósito do pedido. Acontece que o trecho da lei em discussão no
Supremo permite adicionar mais dez anos para patentes (e sete para modelos de
utilidade), a partir da concessão. É o que se designa trips-plus.
O país adota em todas as áreas período protetivo superior aos demais países e
ao exigido por acordos internacionais [7], como se verifica na proteção de
direitos autorais por 70 anos após a morte do autor (Lei 9.610/1998, artigo
41). Em relação às patentes, o prazo é de dez anos além do padrão global. Como
destaca estudo elaborado pela USP: "O período médio de proteção para
patentes oferecido pela legislação brasileira é o maior entre os países
analisados, inclusive com relação aos países desenvolvidos". Além disso,
"quando contrastado com as nações integrantes do bloco dos BRICS,
agrupamento econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul,
nenhuma patente experimentou prorrogação semelhante ou vigência efetiva
proporcional à brasileira" [8].
Fato 2) A discussão em pauta não extingue a propriedade intelectual no Brasil,
nem acaba com a inovação tecnológica
É equivocada a premissa de que haja uma oposição entre tecnologia e
desenvolvimento sustentável. Como destaca a Organização Mundial de Propriedade
Intelectual (WIPO, na sigla em inglês), "a implementação efetiva da Agenda
de Desenvolvimento é uma prioridade chave e um componente importante da
assistência que a WIPO pode fornecer aos seus estados membros, dentro de seu
mandato, para ajudar a alcançar os ODS" [9].
Em harmonia com tal perspectiva, o STF divulga em seu site que "no âmbito
brasileiro, a concretização desse importante compromisso internacional exige a
atuação de todos os poderes da República. Nesse sentido, o Supremo Tribunal
Federal é uma instituição central para difundir a visão, a cultura e,
principalmente, os valores tão elevados da Agenda 2030: a vida, a dignidade, a
justiça e a sustentabilidade. Ademais, a atuação jurisdicional do STF contribui,
efetivamente, para o cumprimento das metas associadas a cada um dos objetivos
dessa agenda" [10].
O argumento de que a inconstitucionalidade abalaria a indústria nacional é
pífio. Os depósitos de patente no Brasil são principalmente estrangeiros. Dados
do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI [11]) revelam que apenas
um de cada cinco patentes é nacional, o que nos faz "vorazes consumidores
de patentes estrangeiras".
Como adverte Calixto Salomão Filho, a adequada proteção da propriedade
intelectual serve ao fomente da concorrência: "O direito à patente ou à
marca não pode ser visto como uma propriedade ou privilégio de seu titular.
Entendido como mecanismo de tutelar a concorrência, (no sentido institucional)
assume a função principal de garantir o acesso a escolha dos consumidores"
[12].
Fato 3) O impacto da decisão do STF para o SUS é calculado em bilhões de reais
É fácil perceber que os impactos do tema são gigantescos. Durante a vigência da
patente, não se faz licitação para
compra de medicamentos, e o SUS fica adstrito ao fabricante. Está em jogo,
portanto, o acesso à saúde. O julgamento da inconstitucionalidade implica
economia bilionária para o SUS, em um momento crucial do país. Segundo pesquisa
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), "o prejuízo acumulado, a
partir da hipótese de entrada de medicamentos genéricos em substituição dos
medicamentos patenteados nas compras do SUS, com os sete medicamentos
adquiridos via compra centralizada alcançou a cifra de R$ 2.026.853.179,00"
[13].
A lista de medicamentos que já estaria em domínio público, se afastada a norma
inconstitucional, inclui mais de 70 medicamentos para doenças como câncer,
diabetes, HIV, psoríase. São exemplos Bevacizumabe, mais conhecido como Avstin
(cuja proteção já alcança 32 anos), Rivaroxabama, Sugammadex e Ofev.
Propriedade intelectual e desenvolvimento sustentável
Para atingir o objetivo de "assegurar uma vida saudável e promover o
bem-estar para todos, em todas as idades" (ODS3), foi estabelecida a Meta
3.b, que define:
"Apoiar a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos para as
doenças transmissíveis e não transmissíveis que afetam principalmente os países
em desenvolvimento, fornecer acesso a medicamentos essenciais e vacinas acessíveis,
de acordo com a Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, que afirma o
direito dos países em desenvolvimento de usarem ao máximo as disposições do
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio com relação às flexibilidades para proteger a saúde pública e, em
particular, fornecer acesso a medicamentos para todos".
Não se justifica adotar-se uma política pública de proteção de patentes uma
década além do previsto no Acordo Trips. No plano internacional, a Declaração
de Doha fixa que o "Acordo TRIPS não impede e não deve impedir os Membros
de tomar medidas para proteger a saúde pública" [14]. A duração
desproporcional de patentes, portanto, não pode prevalecer. Como registra o
voto proferido pelo ministro Dias Toffoli na ADI, em relatório do Tribunal de Contas da União registrou-se
que "entre 2008 e 2014, a quase totalidade dos pedidos de patentes incidiu
na previsão do parágrafo único do artigo 40", bem como que "a
exploração protegida pela patente de produtos farmacêuticos dura em média 23
anos, sendo comum a concessão de patentes que, ao final, terão perseverado por
29 anos ou até mais". Tal duração, aponta estudo da Fiocruz, é obtida com
ardilosas artimanhas (evergreening) [15].
Também não merece maior crédito a alegação recorrente de que a demora do INPI
na apreciação de patentes (backlog) justificaria conclusão diversa. Se por um
lado é verdadeira a mora nas análises, essa hipótese já recebe adequada tutela
por mecanismo de reparação dos danos [16], previsto na própria no artigo 44 da
Lei de Propriedade Industrial.
Mal utilizada, a patente converte-se em inconstitucional barreira de ingresso a
novos concorrentes, e afronta a consagração constitucional da livre
concorrência, assim como os objetivos constitucionais de construir uma
sociedade livre, justa e solidária, e garantir o desenvolvimento nacional (CR,
artigos 170 e 3º).
Sob a perspectiva do desenvolvimento sustentável, o tratamento jurídico da
tecnologia deve observar a efetivação de direitos humanos e fundamentais, de
maneira que deve ser consagrada a inconstitucionalidade do parágrafo único do
artigo 40 da LPI. O Supremo tem em mãos uma oportunidade preciosa de tornar o
Brasil um país mais justo; esperamos que não seja postergada.
[1] Para uma análise mais profunda, confrontar os
excelentes artigos disponíveis em: SVENSSON, Gustavo. As Inconstitucionalidades
da extensão dos prazos das patentes. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2021.
[2] USP. Grupo de Estudos Direito e Pobreza. A inconstitucionalidade do artigo
40, parágrafo único, da lei de propriedade industrial sob uma perspectiva
comparada. Relatório de pesquisa elaborado para a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 5.529 (ADI nº 5529). São Paulo. 2020.
[3] ONU. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em 11.04.2021.
[4] "(...) While the owner is not given a statutory right to practice his
invention, he is given a statutory right to prevent others from commercially
exploiting his invention, which is frequently referred to as a right to exclude
others from making, using or selling the invention". WIPO. Intellectual
Property Handbook, WIPO, 2004. p. 17.
[5] STIGLITZ, Joseph. Prizes, not patentes. Project
Syndicate, Mar. 6, 2007. Disponível em:
http://www.project-syndicate.org/commentary/prizes-not-patents. Acesso em
11.04.2021.
[6] Em recente análise sobre o tema, Livia Barbosa adverte sobre diversas
afirmações falsas utilizadas no debate sobre a ADI, além de oferecer
interessante exame sobre a funcionalização da propriedade intelectual. BARBOSA,
Livia Maia. O prestígio à função social da patente. Migalhas, Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/depeso/343403/o-prestigio-a-funcao-social-da-patente--adi-5529
[7] BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Patentes marajás: punindo gente honesta.
ConJur. 12.3.2021. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-mar-12/pedro-barbosa-patentes-marajas-punindo-gente-honesta.
Acesso em 11.04.2021.
[8] USP. Grupo de Estudos Direito e Pobreza. A inconstitucionalidade do artigo
40, parágrafo único, da lei de propriedade industrial sob uma perspectiva
comparada. Relatório de pesquisa elaborado para a Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 5.529 (ADI nº 5529). São Paulo. 2020. p. 7 e 35.
[9] UNITED NATIONS. World Intellectual Property Organization. Disponível em: https://www.wipo.int/sdgs/en/story.html
Acesso em 11.04.2021.
[10] STF. Agenda 2030. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/. Acesso em 11.04.2021.
[11] Proporção em 2020: INPI, 2020. Disponível em:
https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/estatisticas/arquivos/publicacoes/boletim-mensal-de-propriedade-industrial_mar_2020.pdf.
Acesso em 11.04.2021.
[12] SALOMÃO Filho, Calixto. Teoria crítica estruturalista do direito
comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 114.
[13] UFRJ. Projeto ABIA: Extensão das patentes e custos para o SUS. Relatório
Final Julho 2016.
[14] United Nations. THE DOHA DECLARATION ON THE TRIPS AGREEMENT AND PUBLIC
HEALTH https://www.who.int/medicines/areas/policy/doha_declaration/en/
[15] Trata-se de "reflexo de uma realidade de como as empresas
farmacêuticas operam para maximizar a exclusividade em relação a seus
produtos". CHAVES, Gabriela Costa. Medicamentos em situação de
exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio
de Janeiro : Fiocruz , ENSP, 2018. p. 43.
[16] BARBOSA, Denis Borges. A inexplicável política pública por trás do
parágrafo único do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial, p. 37.
Por Gabriel Schulman, no Consultor
Jurídico
- - - - - - -
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre os livros, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre a Coleção, clique aqui.
|
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui.
- - - - - -
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Coleção As mais belas lendas dos índios da Amazônia” e acesse os 24 livros da coleção. Ou clique aqui. O autor: No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Antônio Carlos dos Santos" e acesse dezenas de obras do autor. Ou clique aqui.
-----------
| Clique aqui para saber mais. |
| Click here to learn more. |
| Para saber mais, clique aqui. |
|