Sob o título 'Uma
nova formulação sobre a prerrogativa de foro', o artigo a seguir é de autoria
de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República
aposentado.
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A matéria da
prerrogativa de foro é algo que se vê, no Brasil, desde a primeira Constituição
de 1824.
Veja-se o que disse
Orlando Carlos Neves Belém, na dissertação de mestrado 'Do Foro Privilegiado à
Prerrogativa de Função' (PUCRio, 2008, pág. 114 a 120):
'A Constituição
brasileira do Império – claramente inspirada em outros diplomas liberais, como
a Constituição francesa de 1791, a espanhola 'de Cádiz' e a portuguesa 'do
Porto' – expandiu grandemente o uso da prerrogativa de função como modo de
definir o foro. Inicialmente, a Assembleia Constituinte de 1823 era
praticamente dominada por elementos liberais que queriam uma Monarquia
constitucional limitada. Entretanto, isto se chocou com a vontade do imperador
e a estrutura predominante no Brasil, senhorial e escravocrata. Com a
dissolução da Assembleia e a outorga de uma Constituição pelo Imperador,
surpreende a manutenção do fim dos privilégios de natureza pessoal, deixando
apenas aqueles de natureza real (prerrogativas), isto é, aqueles relativos à
res, às coisas (referindo-se aos cargos)':
Art. 179. A
inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que
tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
§16. Ficam abolidos
todos os privilégios, que não forem essencial e inteiramente legados aos
cargos, por utilidade pública.
§17. A exceção das
causas, que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade
das leis, não haverá foro privilegiado, nem comissões especiais nas causas
cíveis ou crimes.
Assim, dividiu esta
Constituição a prerrogativa de foro entre o Judiciário (Supremo Tribunal de
Justiça) e o Legislativo (Senado). Entretanto, a total eliminação dos
privilégios não foi alcançada, haja vista que a Igreja (seus membros) continuou
gozando de imunidade em relação às cortes.
Ainda se obtém da
lição de Carlos Belém (obra citada):
'A Constituição de
1891, a primeira da República no Brasil, promoveu a efetiva eliminação dos
privilégios, com a separação entre Estado e Igreja, e manteve o foro por
prerrogativa de função, para garantir a responsabilidade dos governantes,
reproduzindo, inclusive, o instituto do 'impeachment', de criação americana. As
constituições brasileiras posteriores pouco fizeram além de manter o foro por
prerrogativa de função e mudar o rol de cargos sujeitos a esta forma de
determinação da competência, bem como dos órgãos responsáveis pelo julgamento.
Por exemplo, a Emenda Constitucional nº 1, promulgada no regime militar foi a
primeira a incluir os membros do Congresso Nacional no rol de autoridades,
aumentando enormemente o seu número.'
A Constituição de
1988, no Brasil, apresenta um paradoxo para quem adota o principio republicano,
pois amplia o rol dos agentes que devem se submeter a esse foro especial.
Entre as
autoridades que são julgadas originariamente por um tribunal no Brasil, temos:
o chefe e os ministros (tanto civis como militares) do executivo federal e os
chefes dos poderes executivos estaduais; todos os membros do Poder Legislativo
(bem como os membros do Tribunal de Contas da União); todos os membros do Poder
Judiciário; e, ainda, todos os membros do Ministério Público.
Em relação aos
tribunais que exercitam este tipo de competência, temos: o Supremo Tribunal
Federal; o Superior Tribunal de Justiça; o Tribunal Superior Eleitoral; o
Superior Tribunal Militar; os Tribunais Regionais Federais; os Tribunais
eleitorais; e os Tribunais de Justiça dos Estados-membros.
Levantamento
realizado pelo projeto 'Supremo em Números', da FGV Direito Rio, mostra que, no
Supremo Tribunal Federal (STF), uma das cortes que julgam os que possuem foro
privilegiado, de 404 ações penais concluídas entre 2011 e março de 2016, 276
(68%) prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a
autoridade deixou o cargo. Os outros processos resultaram em absolvições, estão
em fase de recurso ou em segredo de justiça. A condenação ocorreu em apenas
0,74% dos casos.
Sobre inquéritos
concluídos no mesmo período, o índice de prescrição ou repasse para instâncias
inferiores foi de 38,4% (379 casos). Em apenas 5,8% dos 987 inquéritos houve
decisão desfavorável ao investigado com abertura de processo penal.
Há, pois, uma
tradição de patrimonialismo e corporativismo que retratam a prerrogativa de
foro. Casos houve em que o réu ao sentir que poderia ser condenado renunciava
ao mandato para que o processo fosse para a primeira instância.
Na França, inexiste
uma competência penal originária dos tribunais em relação a ocupantes de altos
cargos governamentais, membros do judiciário ou do Ministério Público.
Entretanto, em 23 de novembro de 1993 uma lei francesa criou uma nova corte, a
'Cour de Justice de la République', com competência penal sobre os ministros do
governo. Logo, pode-se falar na existência de um único caso de foro especial
por prerrogativa de função, como citou Orlando Carlos Neves Belém, obra citada,
pág.101 a 104.
Na Alemanha, existe
apenas o 'impeachment', por influência do constitucionalismo americano.
Entretanto, a Lei Fundamental de Bonn estabelece que a decisão sobre a
aceitação da acusação a um juiz pertence à 'Corte Constitucional Federal', o
que assemelha-se à prerrogativa de função.
Um motivo relevante
cuida da chamada 'competência por prerrogativa de função', ou seja, de uma
jurisdição especial, exercida ratione personae, a qual, muito embora criticada
por alguns, não objetiva beneficiar ou privilegiar certas pessoas colocando-as
acima dos cidadãos comuns.
Ao revés, essa
previsão constitucional visa a permitir que determinados cargos e funções
públicas de maior relevo na estrutura do Estado possam ser exercidos com a
necessária independência.
Diz José Frederico
Marques sobre o assunto: Não se trata de privilégio de foro, porque a
competência, no caso, não se estabelece 'por amor dos indivíduos', e sim em
razão 'do caráter, cargos ou funções que eles exercem', como ensinava J. A.
Pimenta Bueno. Ela está baseada na 'utilidade pública e no princípio da ordem e
da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior' – como o disse,
em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo
Criminal, p. 195, nota 1.905).
A competência por
prerrogativa de função, como afirmou o ministro Victor Nunes Leal, na
Reclamação 473, DJ de 6 de junho de 1962, é instituída, não no interesse
pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício com
alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser
julgados com plenas garantias e completa imparcialidade.
Disse ele: a
jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é,
realmente, instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no
interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com alto grau
de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados
com plenas garantias e completa imparcialidade.
Tal prerrogativa,
como acentuou o ministro Cezar Peluso, em voto no HC 91.473/PI, não é
instituída no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse de seu
bom exercício, integrando os predicados objetivos do devido processo legal, de
sorte que seu beneficiário não tem por onde renunciar a tal direito para ser
julgado por órgão de menor categoria. Mas, leve-se em conta que a prerrogativa de
foro não visa beneficiar o cidadão, mas proteger o cargo ocupado.
Mas, sem dúvida
essa situação não pode garantir um atalho para a impunidade. Daí porque a
prerrogativa de foro é vista com desconfiança pela opinião pública. A discussão
em juízo, data vênia, de entendimento contrário, deve ser feita por ação
popular e não por ação de descumprimento de preceito fundamental, de jurisdição
constitucional do Supremo Tribunal Federal.
Na matéria há um
histórico de verdadeiros abusos. Disse bem o ministro Barroso que o foro
privilegiado representa 'perversão da justiça'.
O ministro Barroso
defendeu uma intepretação mais restritiva da regra do foro privilegiado. O
instrumento de tratamento diferenciado apenas a autoridades que cometeram
crimes durante o mandato, no cargo específico ocupado. Sabese que hoje esse
tratamento é estendido para qualquer crime atribuído a autoridades
independentemente de quando foi cometido.
Em despacho, o
ministro Barroso lembrou que, hoje, tramitam no STF cerca de 500 processos
contra parlamentares, de acordo com as estatísticas da Corte. Para o ministro,
a regra resulta em impunidade porque, quando uma autoridade deixa o cargo, o
processo muda de instância, dificultando a conclusão das investigações. Para o
ministro, a regra do foro se tornou uma 'perversão da Justiça'.
'O foro por
prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque dele resulta maior demora
na tramitação dos processos e permite a manipulação da jurisdição do tribunal',
escreveu o ministro.
Aqui se fala em
densificação, concretização (construção da norma), destinada a densificá- la.
Dir-se-ia que será
feita pelo Supremo Tribunal Federal, na sua atividade de maior guardião da
Constituição, uma densificação da norma dentro do que a doutrina chama de
atividade de concretização.
É certo que se
poderia falar numa atividade de densificação da norma, que, na lição de
J.J.Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4º edição, pág. 1165), significa
preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito
especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução,
por esse preceito, dos problemas concretos.
A isso chega-se a
bem da lógica da razoabilidade no que se concentrou sobre a matéria. Além
disso, há de se considerar o postulado da segurança jurídica na prática desses
julgados diante de decisões interativas.
Por Frederico Vasconcelos, na Folha de São Paulo
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