quarta-feira, 22 de março de 2017

A falta que o planejamento faz


Cidade abriga esqueletos da transposição
Localizada no coração do semiárido nordestino, a pernambucana Salgueiro foi há até pouco tempo um oásis no sertão, ilha de prosperidade na região mais pobre do país. Atraídos por duas grandes obras de infraestrutura e milhares de empregos, a transposição do rio São Francisco e a ferrovia Transnordestina, trabalhadores de todo o Nordeste chegaram a Salgueiro.
Hoje ambas estão paradas, com a maior parte dos canteiros abandonada e trechos já prontos se deteriorando sem proteção contra sol e chuva. A cidade de 60 mil habitantes integra o braço inicial do eixo norte da transposição, que era de responsabilidade da empreiteira Mendes Júnior, considerada inidônea por irregularidades investigadas na Lava Jato e que abandonou a obra. O Ministério da Integração aguarda o desfecho de uma nova Licitação para retomar as obras no trecho.
A posição estratégica — equidistante das principais capitais nordestinas e no cruzamento das BRs 232 e 116— foi determinante para que Salgueiro também abrigasse o principal canteiro da Transnordestina. Iniciada em 2006, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, a ferrovia tem projetados 1.753 km, dos quais só 600 km estão concluídos. Concebida para interligar os portos de Pecém (CE) e Suape (PE) a regiões produtoras de grãos e minério no Piauí, a Transnordestina tem as obras paralisadas desde pelo menos o ano passado —há trechos parados há anos.
Embora esteja a cargo de uma empresa privada, a TL-SA (Transnordestina Logística), subsidiária da CSN (Com-panha Siderúrgica Nacional), a obra sempre dependeu de aportes do governo federal. Em janeiro passado, o TCU determinou a suspensão de repasses governamentais, apontando “alto risco de não conclusão” da ferrovia.
Em nota, a TLSA se disse “totalmente empenhada no planejamento da retomada das obras de construção da ferrovia assim que possível”.
MOMENTO CRÍTICO
O ex-prefeito Marcones Libório (PSB), que administrou Salgueiro por dois mandatos (2009 a 2016) e presenciou o auge e a decadência da cidade, diz que a derrocada coincidiu com a crise econômica do país. “Se a região não tivesse se beneficiado com o período das obras, que atraiu outros investimentos no comércio e construção civil, estaria pior”, afirma Libório.
Assim como moradores ouvidos pela reportagem, o político relata aumento no desemprego e na criminalidade e o agravante da seca, que já dura cinco anos. “Calcula-se que 80% do rebanho bovino do sertão central tenha sido extinto. Ou morreu pela fome ou os animais foram descartados porque seus donos não tinham como manter. O momento é crítico”, diz.
Operador de trator, Everaldo Barros de Oliveira, 39, trabalhou dois anos (2015 e 2016) pela Mendes Júnior nas obras da transposição. Recebia, com horas extras, R$ 2.500 por mês. Com a paralisação, foi dispensado e virou frentista num posto, onde ganha hoje R$ 1.200, menos da metade. “Estamos esperando que [a obra] volte, mas ninguém sabe quando.”
Família de morto em canal pede interdição da obra
DOS ENVIADOS A FLORESTA (PE)
Uéslei Silva França tinha 16 anos e trabalhava como carvoeiro na zona rural de Floresta (PE). Em 8 de fevereiro, uma quarta-feira, foi com primos tomar banho no canal da transposição próximo à Estação de Bombeamento 3, a 500 metros da casa onde vivia com os pais e irmãos, na aldeia Caraíbas, habitada por índios da tribo pipipã. Morreu afogado. Seu corpo só apareceu três dias depois.
Não há proteção nas laterais dos canais ao longo dos 216 km do eixo leste, inaugurado pelo governo federal no último dia 10. Além de Uéslei, pelo menos mais outra pessoa, um homem em Custódia (PE), morreu nessas águas —além de animais. Placas colocadas pelo governo às margens dos canais e barragens proibindo o banho e alertando para o risco de afogamento não têm impedido os mergulhos.
Segundo o relato do primo Manoel Hidelfonso, 16, que estava com ele no dia, Uéslei não sabia nadar. Pulou na água uma vez, quase se afogou. Os outros rapazes o resgataram com uma corda. “Fomos arrumar minha moto, que tinha quebrado, e ele ficou dormindo debaixo de uma algaroba. Quando voltamos, ele tinha sumido.” Manoel conta que o grupo foi à estação e pediu que as bombas fossem desligadas, mas que o pedido só seria atendido três dias depois, quando o corpo enfim veio à tona.
Os pais de Uéslei, Valdomiro Alves de França, 50, e Marineide Maria da Silva, 43, são agricultores pobres, por ora sem plantar por causa da seca. Criam nove cabras, recebem R$ 100 do seguro safra e R$ 400 do Bolsa Família — mantêm os outros filhos na escola. Têm água quando um carro-pipa da prefeitura abastece sua cisterna. A da transposição, logo ali ao lado, não chegou à aldeia. “Quando ouvi sobre essa obra, fiquei animado, porque aqui é um lugar seco e triste. Mas depois desse caso, acho que aquilo tudo tinha de ser fechado. Não existe segurança nenhuma nesses canais”, reclama Valdomiro. Segundo ele, ninguém de parte da obra procurou a família até agora, quase dois meses depois.
O Ministério da Integração Nacional dá outra versão: diz que “desde o incidente equipes de assistência social acompanham os familiares”.
O órgão diz ainda que intensificou campanhas para alertar a população sobre os riscos de nadar nos canais e reservatórios. Questionado se o governo indenizaria a família, a pasta disse que fará “tudo que a lei determina”. Marineide, a mãe, anda mais calada que o marido. “Ninguém se conforma com a morte de um filho”, ela diz. Uéslei era o mais velho dos cinco filhos do casal. Faria 17 anos em 4 de junho.

Por Fabio Victor e Eduardo Knapp, na Folha de São Paulo

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