A presidente do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Maria Silvia
Bastos Marques, diz que seria importante que todos os órgãos de controle se
posicionassem sobre os acordos de leniência das empresas da Lava-Jato. Seria
uma forma de reduzir a insegurança jurídica em casos de venda de participação
acionária ou de ativos dessas companhias para terceiros no futuro.
Maria Silvia
explicou ainda que, depois de fechado o acordo de leniência, as empreiteiras
precisam assinar um termo de compromisso com o banco para retomar os
desembolsos suspensos à exportação. Esse termo de "compliance" prevê
que as empresas revelem novos fatos de corrupção, se surgirem, para evitar um
vencimento antecipado das dívidas com o banco. Leia a seguir os principais
trechos da entrevista.
Valor: Qual o
balanço de sua gestão depois nove meses?
Maria Silvia Bastos
Marques: Chegamos em junho de 2016, com governo ainda interino, num momento
sensível. Tínhamos dois focos: processos de concessão e de exportação de serviços.
Nas concessões, o ambiente naquele momento era de modicidade tarifária, taxas
de retorno irrealistas, o BNDES bancando boa parte do risco regulatório e do
risco financeiro das concessões, inclusive, estendendo empréstimos-ponte e
financiando até 100% em boa parte dos casos.
Valor: Como o BNDES
assumia o risco regulatório?
Maria Silvia: Como
os projetos não tinham taxa de retorno adequada, o banco não só estendia volume
de crédito alto como o tamanho de incentivo em TJLP era desproporcional em
muitos casos. Porque, se o projeto tem taxa de retorno adequada, não precisa
ter incentivo porque este vem do retorno. O resultado foi que, em alguns casos,
os leilões fracassaram.
Valor: Quais?
Maria Silvia: Por
exemplo, linhas de transmissão, leilões vazios, que não aconteceram. Havia
ainda ágios elevados, conflitos importantes das partes relacionadas,
deterioração das condições macroeconômicas, o que fez com que os 'project
finance' [em que as receitas são a garantia do negócio], que seriam os
contratos de longo prazo, não paravam mais de pé. Ou seja, as garantias dos
projetos não eram mais suficientes. E houve a deterioração das condições
cadastrais e de crédito de parte dos controladores e patrocinadores das
concessões por causa da Operação Lava-Jato. Esse era o pano de fundo que a
gente encontrou.
Valor: Isso
envolvia concessões de rodovias, aeroportos....
Maria Silvia:
Envolvia todas as concessões, mas sobretudo as de rodovias e aeroportos. No
caso das exportações de serviços, é preciso distinguir. Nas concessões, o BNDES
financia diretamente o concessionário. Na exportação de serviços, o banco não
financia o exportador, mas o importador, o país, e faz o pagamento em reais no
Brasil ao exportador. Todos os projetos estavam amparados não só por programas
governamentais - porque eram política de governo, aproximação com países -,
como todos eram garantidos pelo governo e, no caso da América Latina, pelo
Convênio de Crédito Recíproco (CCR). Do ponto de vista bancário, o banco não
corria risco porque tinha suas garantias.
Valor: A garantia é
o Tesouro?
Maria Silvia: O
Fundo Garantidor da Exportação (FGE). São três blocos de garantia: FGE e CCR na
América Latina e, fora da região, as contas vinculadas, como a conta petróleo,
e também o FGE. Isso teve impacto sobre a imagem do banco, pois houve
questionamento público sobre o mérito dos projetos.
Valor: O que mais
vocês encontraram?
Maria Silvia: O
BNDES, desde o começo da Lava-Jato, começou gradativamente a interromper
desembolsos para as construtoras. Em maio de 2016, antes portanto de entrarmos
no banco, 100% dos desembolsos às exportações estavam suspensos. Não houve mais
contratação de longo prazo e nenhum desembolso [para as empreiteiras]. A
mensagem é clara: esta gestão não interrompeu pagamentos. Estes já estavam
suspensos.
Valor: A AGU
ordenou a suspensão dos desembolsos?
Maria Silvia: A
gestão anterior já tinha consultado a AGU, e a AGU não falou nada além do que
deveria: caberia ao BNDES fazer a análise de crédito e decidir se desembolsa ou
não os recursos. Um fato não foi divulgado.
Valor: Qual?
Maria Silvia: Em
dezembro de 2014, o BNDES informou ao Banco Central os critérios de desembolso
para as empresas envolvidas na Lava-Jato do ponto de vista de cadastro. O banco
disse, que havendo denúncia na LavaJato contra uma empresa, reduziria em um
nível a avaliação cadastral e que, se a empresa se tornasse ré, o cadastro
sairia de regular para ruim, situação em que o banco suspende os pagamentos. E
da mesma forma o BNDES informou como sairia desse processo: com a absolvição
pela Justiça ou fechamento de acordo de leniência, o cadastro sairia de ruim
para regular.
Valor: Qual é o
impacto do cadastro?
Maria Silvia: O
cadastro é uma condição necessária. O banco não pode dar crédito a alguém que
não tenha cadastro. O fato de ter cadastro não quer dizer que daremos crédito.
Mas, para fazer a análise de crédito e talvez desembolsar alguma coisa, a
empresa precisa ter cadastro positivo. O cadastro ruim é impeditivo para
assumir risco de crédito e a empresa pode ter cadastro ruim por outras razões,
como estar inadimplente com fornecedor, ter uma ação ambiental.
Valor: É como se
fosse um rating?
Maria Silvia: É um
elemento para o rating. É preciso deixar claro que o BNDES é um banco de
desenvolvimento, não somos um banco comercial.
Valor: O que isso
quer dizer?
Maria Silvia: Que
não estamos preocupados somente com garantias de crédito. Estamos preocupados
em primeiro lugar com os projetos. Isso é importante porque lemos
cotidianamente que o banco não quer emprestar e descumpriu compromissos.
Nenhuma dessas afirmações é verdade.
"Com o
Ministério Público começamos tratativas para uma possível cooperação
institucional"
Valor: Por que,
então, as empreiteiras se queixam tanto?
Maria Silvia: A
verdade é que havia empréstimos-ponte [contratados pelas empresas da Lava-Jato]
que não viraram empréstimos de longo prazo. Não houve isso de o banco mudar
condições de leilão em contrato fechado. Não havia contrato fechado e o banco
jamais mudou condição de leilão. Quando há um leilão [de concessão], as
condições de financiamento são X. Mesmo que o leilão vá ser contratado cinco
anos depois, valem as condições do leilão mesmo se o banco mudar a política
operacional. Há, por exemplo, leilões de energia de três anos atrás e nós já
mudamos a política operacional, mas vamos contratar [o financiamento] para
esses leilões com base nas condições anteriores.
Valor: A crítica é
a de que o banco tem hoje um caixa de R$ 130 bilhões porque não quer emprestar.
Maria Silvia:
Passamos 60% do tempo tentando resolver questões dos projetos. Se não fosse
assim, o que teríamos feito nessas situações? Como todos os projetos têm
garantias, fianças bancárias e corporativas, teríamos simplesmente executado as
garantias e colocado dinheiro em caixa e emprestado para outros. Se tivéssemos
descompromisso com os projetos, com as empresas, teríamos executado as fianças,
que é nossa prerrogativa. Não fizemos isso. Estamos preocupados com os
projetos.
Valor: Há uma
solução geral para as concessões antigas?
Maria Silvia: Não.
Algumas empresas pagaram ágios elevados nos leilões que não cabem nos projetos.
Outras tinham outorgas que não cabem na receita; outras tiveram premissas de
tráfego e demanda superadas pelas condições econômicas. Temos convicção de que
estamos fazendo tudo para que esses projetos não morram. Para isso contamos com
discussão governamental. O caso das concessões é emblemático porque assim que
entramos no governo sentamos com a turma do PPI, o ministro Moreira Franco e
sua equipe e fizemos revisão do processo de cabo a rabo.
Valor: Qual foi o
resultado?
Maria Silvia: As
revisões já impactaram o leilão dos aeroportos, que agora não têm
empréstimo-ponte, o percentual de TJLP é menor que antes, agora há o disciplinamento
que trata de partes relacionadas.
Valor: Que
disciplinamento?
Maria Silvia: Em
cada edital lançamos as condições de financiamento. Lá, damos regras
para partes
relacionadas. Por exemplo: para contratação acima de determinado valor, tem que
passar pelo conselho de administração e contratar auditoria. Porque, nas
concessões anteriores, esse conflito ocasionou problema para as concessões. E a
falta de transparência da taxa de retorno das concessões é enorme.
Valor: Por exemplo?
Maria Silvia: O
aeroporto de Viracopos é público. Tem um consórcio que é o concessionário e as
construtoras UTC e Triunfo. O consórcio construtor foram as duas empresas, e
elas estão processando a concessionária [das quais são sócias], cobrando R$ 600
milhões referentes à obra. Com isso, não há clareza onde está a taxa de
retorno, se na obra ou na concessão. Isso tudo foi disciplinado e já funcionou
no leilão de transmissão de energia, em outubro, depois de vários leilões
vazios. Com investimento de R$ 12 bilhões, ágio de 12%, com o BNDES oferecendo
condições a taxa de mercado e prazo de 18 anos. O projeto tem atratividade.
Valor: No caso do
aeroporto do Galeão, não é preciso sentar com o concessionário e rever o
contrato?
Maria Silvia: A
outorga do Galeão [R$ 19 bilhões a serem pagos em 25 anos] custa mais hoje do
que a receita bruta anual do aeroporto. Galeão tem um excelente operador
[Changi, de Cingapura], está pronto e montamos uma força-tarefa para
identificar os problemas. A demanda era fazer uma equação financeira que coubesse
para o BNDES, e conseguimos fazer. Mas isso não se esgota no banco porque há um
contrato e um órgão regulador envolvido [a Anac]. No Galeão, tem outorga fixa
por ano e eles precisam de outorga crescente. Há essa flexibilidade no
contrato? Não cabe a nós julgar, mas o órgão regulador. A MP 752, que
flexibiliza e dá critérios para a caducidade [das concessões] vai ajudar a dar
segurança jurídica.
Valor: Teria que
rever as condições do contrato?
Maria Silvia: Sim,
por isso tem a medida provisória. Uma parte dessas concessões o governo já
anunciou que serão relicitadas [Concer, Dutra e CRT].
Valor: O que mais
muda no financiamento às concessões?
Maria Silvia: Não
tem mais empréstimo-ponte, hoje os financiamentos do banco são de no máximo até
80% [de participação], com 20% de 'equity' [ações] do investidor. As condições
de financiamento são definidas para os leilões específicos. No caso do leilão
de aeroportos, a parcela em TJLP é até 40% e tem debêntures. Podemos entrar em
até 100% das debêntures a custo de mercado.
Valor: Haverá
demanda pelos recursos do banco nessas condições?
Maria Silvia: Acho
que terá e vamos trabalhar junto com os concessionários para viabilizar. Mas,
se não tiver interesse, temos outros projetos para apoiar. Também definimos edital
em inglês para as novas concessões - antes, não havia -, mais prazo entre o
lançamento do edital e o leilão, pagamento de 25% da outorga e dos ágios no
momento de assinatura do contrato.
Valor: Houve casos
em que o banco executou garantias por descumprimento de contrato?
Maria Silvia: Houve
o caso da Triunfo. O banco executa quando é nossa obrigação. Com
a Triunfo houve
muita conversa. Continuamos conversando mesmo depois de eles terem entrado com
ação contra o banco e nós executando as garantias, como temos obrigação de
fazer, mas nunca avançou. Nunca houve disposição de apontar caminho e outras
garantias. Não é algo que a gente deseje. Obviamente, é um pouco demais achar
que o Banco Central quer viver com juros altos e o BNDES não quer gerar crescimento
e emprego. A missão do banco é essa.
Valor: No caso da
exportação de serviços, o que se constatou?
Maria Silvia: O
Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria profunda em 149 contratos e
nos ajudou muito na retomada. O tribunal nos apontou aperfeiçoamentos nos
processos que o banco estava usando. Era um dos assuntos mais delicados do
banco e estamos conseguindo com transparência e critérios horizontais tratar do
assunto, que não é simples e afetou muito a imagem do BNDES. Em outubro, divulgamos
novos critérios para os novos projetos. Para os projetos suspensos, anunciamos
as condições necessárias à retomada dos desembolsos.
"Se os bancos
derem mais de 40% do total em fianças, o BNDES compartilha as garantias do
projeto com eles"
Valor: Quais são as
condições?
Maria Silvia: São
quatro: ter o funding fechado; avanço físico da obra; risco de crédito do
importador; e assinar o termo de 'compliance'. Olhamos, por exemplo, uma obra
em um país que está com 30% de avanço físico, mas o único financiador é o
BNDES. Nesse caso, o funding não está fechado ainda, então, é um dos quatro
critérios não cumpridos. O termo de 'compliance' deve ser assinado pelo
importador e o exportador dizendo que não há nada ilícito no projeto.
Valor: A partir de
agora?
Maria Silvia: Não.
Se houver [evidência de corrupção] em um projeto existente, não pode ser
retomado. Dos 25 projetos de exportação de serviços suspensos, três foram
retomados - dois com a Queiroz Galvão (um em Honduras e outro na República
Dominicana) e, agora, anunciamos que estamos aptos a retomar um projeto com a
Andrade Gutierrez, em Gana.
Valor: Qual é a
conexão da leniência e o termo de "compliance" do BNDES?
Maria Silvia: Nas
concessões, tenho que fazer análise de crédito e cadastro do concessionário. Na
exportação de serviço, o importador tem que ter crédito com o banco, e tanto o
exportador quanto o importador têm que ter cadastro positivo com o banco, o que
está refletido no termo de "compliance". É importante dizer que o banco
está em estreita colaboração com o Ministério Público Federal. Temos troca
permanente de informação e reuniões. Temos ido com frequência ao TCU para
resolver o estoque grande de problemas. Nossa aproximação com os órgãos de
controle é positiva. Assinamos [na quinta-feira] termo de cooperação com o
Ministério da Transparência [ex-CGU]. No caso do MPF, começamos tratativas para
possível assinatura de um acordo de cooperação institucional.
Valor: Como
funcionaria?
Maria Silvia:
Organizaria nosso relacionamento, diria quais são os canais efetivos de contato
no banco e no MPF, com uma troca de informações mais escorreita. O termo de
'compliance' foi feito em colaboração com o MPF e tem uma conexão com o acordo
de leniência. Se quem assinar o acordo de leniência descumprir o termo de
'compliance', ou vice-versa, descumprirá o outro. Os dois documentos são
conexos. Se isso ocorrer, haverá vencimento antecipado de todos os contratos do
banco ["cross default"].
Valor: Qual é o
impacto dos acordos de leniência sobre o BNDES?
Maria Silvia: O
acordo de leniência trata do cadastro. Quem assina leniência, o cadastro passa
de ruim para regular. Em tese, pode novamente contratar com órgãos públicos. É
condição necessária, mas não suficiente porque temos que ver a questão de crédito.
Valor: É por isso
que o acordo de leniência não é garantia de que a empresa vá ter crédito do
BNDES novamente?
Maria Silvia: Não
é, mas a empresa já pode operar com o banco. O acordo de leniência tem impacto
positivo sobre o banco, é condição essencial. Se houver condição de crédito,
podemos retomar e contratar. Mas temos que fazer análise de crédito, ter as
garantias. Havendo acordo de leniência estão removidos da análise de cadastro
quaisquer fatos relacionados à leniência. Mas o cadastro pode não ser regular
por outros motivos.
Valor: O MPF
negociou o acordo de leniência da Odebrecht com autoridades americanas e
suíças. A empresa confessou as práticas ilegais e concordou em pagar multa de
R$ 6,7 bilhões. Ocorre que a AGU, por exemplo, diz que vai exigir reparação
também. Isso não cria insegurança jurídica?
Maria Silvia: Por
isso, é importante ter todos esses órgãos [de controle] se posicionando.
Digamos que algumas dessas empresas queiram vender seus ativos. O potencial
comprador pode requerer [para ter segurança] uma palavra final de todos os
órgãos. Ele pode ter receio de adquirir dívida no futuro. Quando falei de
insegurança jurídica, me referi à transferência de controle. O acordo de
leniência, para o BNDES, se não houver outras questões, é suficiente para sanar
a questão do cadastro. É bom dizer que não conhecemos o acordo [da Odebrecht].
Valor: É sigiloso?
Maria Silvia: O
Supremo Tribunal Federal tem que levantar o sigilo em algum momento. Recebemos
um estrato preparado em conjunto pela Odebrecht e a MPF para os bancos
públicos. Com o acordo de leniência, a informação do Ministério Público para
nós, o cadastro deles [Odebrecht] vai se tornar regular. No caso de exportação
de serviços, a Odebrecht precisará assinar o termo de "compliance"
junto com o importador, assegurando que naquela operação não há nada irregular.
Valor: Há conversa
com a Odebrecht sobre o termo de compliance?
Maria Silvia: Está
fechado. Ou eles aderem ou não. O termo de 'compliance' vai ser incorporado a
todos os contratos de exportação de serviços que assinarmos com alguém que
trate com o poder público, com governos estrangeiros, daqui em diante. A
Odebrecht na leniência revelou uma serie de fatos sobre os quais diz que já tem
conhecimento, mas se obrigou a fazer apuração interna, continuada, em todas as
suas operações. Tudo o que vier a encontrar de novo comunicará ao MPF. Ser
tiver assinado leniência e 'compliance' e vier a descobrir coisa adicional, e
revelar ao MPF, não tem 'cross default' conosco [não fica inadimplente com o
BNDES]. Mas, se não revelar as irregularidades constatadas e elas forem
descobertas por outras fontes, descumprirá a leniência e o termo de
"compliance".
Valor: O fim do
empréstimo-ponte não cria a necessidade de flexibilização de outras condições?
Maria Silvia:
Quando acabou o ponte, dissemos que o contrato longo vai ser contratado desde o
momento zero. Vamos fazer o longo com fiança bancária até o
"completion" físico [conclusão da obra] e financeiro [da operação
financeira]. Vamos flexibilizar garantias.
Valor: Como?
Maria Silvia: Vamos
compartilhar garantias. Se os bancos derem mais de 40% do total em fianças, o
BNDES compartilhará as garantias do projeto com os bancos. Flexibilizamos sem
perder a garantia de receber nossos créditos. Vai ajudar a compor o funding.
Por Francisco Góes e Cristiano Romero, no Valor Econômico
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