terça-feira, 21 de março de 2017

Para BNDES, sem adesão de outros órgãos, leniência não dá segurança jurídica


A presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Maria Silvia Bastos Marques, diz que seria importante que todos os órgãos de controle se posicionassem sobre os acordos de leniência das empresas da Lava-Jato. Seria uma forma de reduzir a insegurança jurídica em casos de venda de participação acionária ou de ativos dessas companhias para terceiros no futuro.
Maria Silvia explicou ainda que, depois de fechado o acordo de leniência, as empreiteiras precisam assinar um termo de compromisso com o banco para retomar os desembolsos suspensos à exportação. Esse termo de "compliance" prevê que as empresas revelem novos fatos de corrupção, se surgirem, para evitar um vencimento antecipado das dívidas com o banco. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: Qual o balanço de sua gestão depois nove meses?
Maria Silvia Bastos Marques: Chegamos em junho de 2016, com governo ainda interino, num momento sensível. Tínhamos dois focos: processos de concessão e de exportação de serviços. Nas concessões, o ambiente naquele momento era de modicidade tarifária, taxas de retorno irrealistas, o BNDES bancando boa parte do risco regulatório e do risco financeiro das concessões, inclusive, estendendo empréstimos-ponte e financiando até 100% em boa parte dos casos.
Valor: Como o BNDES assumia o risco regulatório?
Maria Silvia: Como os projetos não tinham taxa de retorno adequada, o banco não só estendia volume de crédito alto como o tamanho de incentivo em TJLP era desproporcional em muitos casos. Porque, se o projeto tem taxa de retorno adequada, não precisa ter incentivo porque este vem do retorno. O resultado foi que, em alguns casos, os leilões fracassaram.
Valor: Quais?
Maria Silvia: Por exemplo, linhas de transmissão, leilões vazios, que não aconteceram. Havia ainda ágios elevados, conflitos importantes das partes relacionadas, deterioração das condições macroeconômicas, o que fez com que os 'project finance' [em que as receitas são a garantia do negócio], que seriam os contratos de longo prazo, não paravam mais de pé. Ou seja, as garantias dos projetos não eram mais suficientes. E houve a deterioração das condições cadastrais e de crédito de parte dos controladores e patrocinadores das concessões por causa da Operação Lava-Jato. Esse era o pano de fundo que a gente encontrou.
Valor: Isso envolvia concessões de rodovias, aeroportos....
Maria Silvia: Envolvia todas as concessões, mas sobretudo as de rodovias e aeroportos. No caso das exportações de serviços, é preciso distinguir. Nas concessões, o BNDES financia diretamente o concessionário. Na exportação de serviços, o banco não financia o exportador, mas o importador, o país, e faz o pagamento em reais no Brasil ao exportador. Todos os projetos estavam amparados não só por programas governamentais - porque eram política de governo, aproximação com países -, como todos eram garantidos pelo governo e, no caso da América Latina, pelo Convênio de Crédito Recíproco (CCR). Do ponto de vista bancário, o banco não corria risco porque tinha suas garantias.
Valor: A garantia é o Tesouro?
Maria Silvia: O Fundo Garantidor da Exportação (FGE). São três blocos de garantia: FGE e CCR na América Latina e, fora da região, as contas vinculadas, como a conta petróleo, e também o FGE. Isso teve impacto sobre a imagem do banco, pois houve questionamento público sobre o mérito dos projetos.
Valor: O que mais vocês encontraram?
Maria Silvia: O BNDES, desde o começo da Lava-Jato, começou gradativamente a interromper desembolsos para as construtoras. Em maio de 2016, antes portanto de entrarmos no banco, 100% dos desembolsos às exportações estavam suspensos. Não houve mais contratação de longo prazo e nenhum desembolso [para as empreiteiras]. A mensagem é clara: esta gestão não interrompeu pagamentos. Estes já estavam suspensos.
Valor: A AGU ordenou a suspensão dos desembolsos?
Maria Silvia: A gestão anterior já tinha consultado a AGU, e a AGU não falou nada além do que deveria: caberia ao BNDES fazer a análise de crédito e decidir se desembolsa ou não os recursos. Um fato não foi divulgado.
Valor: Qual?
Maria Silvia: Em dezembro de 2014, o BNDES informou ao Banco Central os critérios de desembolso para as empresas envolvidas na Lava-Jato do ponto de vista de cadastro. O banco disse, que havendo denúncia na LavaJato contra uma empresa, reduziria em um nível a avaliação cadastral e que, se a empresa se tornasse ré, o cadastro sairia de regular para ruim, situação em que o banco suspende os pagamentos. E da mesma forma o BNDES informou como sairia desse processo: com a absolvição pela Justiça ou fechamento de acordo de leniência, o cadastro sairia de ruim para regular.
Valor: Qual é o impacto do cadastro?
Maria Silvia: O cadastro é uma condição necessária. O banco não pode dar crédito a alguém que não tenha cadastro. O fato de ter cadastro não quer dizer que daremos crédito. Mas, para fazer a análise de crédito e talvez desembolsar alguma coisa, a empresa precisa ter cadastro positivo. O cadastro ruim é impeditivo para assumir risco de crédito e a empresa pode ter cadastro ruim por outras razões, como estar inadimplente com fornecedor, ter uma ação ambiental.
Valor: É como se fosse um rating?
Maria Silvia: É um elemento para o rating. É preciso deixar claro que o BNDES é um banco de desenvolvimento, não somos um banco comercial.
Valor: O que isso quer dizer?
Maria Silvia: Que não estamos preocupados somente com garantias de crédito. Estamos preocupados em primeiro lugar com os projetos. Isso é importante porque lemos cotidianamente que o banco não quer emprestar e descumpriu compromissos. Nenhuma dessas afirmações é verdade.
"Com o Ministério Público começamos tratativas para uma possível cooperação institucional"
Valor: Por que, então, as empreiteiras se queixam tanto?
Maria Silvia: A verdade é que havia empréstimos-ponte [contratados pelas empresas da Lava-Jato] que não viraram empréstimos de longo prazo. Não houve isso de o banco mudar condições de leilão em contrato fechado. Não havia contrato fechado e o banco jamais mudou condição de leilão. Quando há um leilão [de concessão], as condições de financiamento são X. Mesmo que o leilão vá ser contratado cinco anos depois, valem as condições do leilão mesmo se o banco mudar a política operacional. Há, por exemplo, leilões de energia de três anos atrás e nós já mudamos a política operacional, mas vamos contratar [o financiamento] para esses leilões com base nas condições anteriores.
Valor: A crítica é a de que o banco tem hoje um caixa de R$ 130 bilhões porque não quer emprestar.
Maria Silvia: Passamos 60% do tempo tentando resolver questões dos projetos. Se não fosse assim, o que teríamos feito nessas situações? Como todos os projetos têm garantias, fianças bancárias e corporativas, teríamos simplesmente executado as garantias e colocado dinheiro em caixa e emprestado para outros. Se tivéssemos descompromisso com os projetos, com as empresas, teríamos executado as fianças, que é nossa prerrogativa. Não fizemos isso. Estamos preocupados com os projetos.
Valor: Há uma solução geral para as concessões antigas?
Maria Silvia: Não. Algumas empresas pagaram ágios elevados nos leilões que não cabem nos projetos. Outras tinham outorgas que não cabem na receita; outras tiveram premissas de tráfego e demanda superadas pelas condições econômicas. Temos convicção de que estamos fazendo tudo para que esses projetos não morram. Para isso contamos com discussão governamental. O caso das concessões é emblemático porque assim que entramos no governo sentamos com a turma do PPI, o ministro Moreira Franco e sua equipe e fizemos revisão do processo de cabo a rabo.
Valor: Qual foi o resultado?
Maria Silvia: As revisões já impactaram o leilão dos aeroportos, que agora não têm empréstimo-ponte, o percentual de TJLP é menor que antes, agora há o disciplinamento que trata de partes relacionadas.
Valor: Que disciplinamento?
Maria Silvia: Em cada edital lançamos as condições de financiamento. Lá, damos regras
para partes relacionadas. Por exemplo: para contratação acima de determinado valor, tem que passar pelo conselho de administração e contratar auditoria. Porque, nas concessões anteriores, esse conflito ocasionou problema para as concessões. E a falta de transparência da taxa de retorno das concessões é enorme.
Valor: Por exemplo?
Maria Silvia: O aeroporto de Viracopos é público. Tem um consórcio que é o concessionário e as construtoras UTC e Triunfo. O consórcio construtor foram as duas empresas, e elas estão processando a concessionária [das quais são sócias], cobrando R$ 600 milhões referentes à obra. Com isso, não há clareza onde está a taxa de retorno, se na obra ou na concessão. Isso tudo foi disciplinado e já funcionou no leilão de transmissão de energia, em outubro, depois de vários leilões vazios. Com investimento de R$ 12 bilhões, ágio de 12%, com o BNDES oferecendo condições a taxa de mercado e prazo de 18 anos. O projeto tem atratividade.
Valor: No caso do aeroporto do Galeão, não é preciso sentar com o concessionário e rever o contrato?
Maria Silvia: A outorga do Galeão [R$ 19 bilhões a serem pagos em 25 anos] custa mais hoje do que a receita bruta anual do aeroporto. Galeão tem um excelente operador [Changi, de Cingapura], está pronto e montamos uma força-tarefa para identificar os problemas. A demanda era fazer uma equação financeira que coubesse para o BNDES, e conseguimos fazer. Mas isso não se esgota no banco porque há um contrato e um órgão regulador envolvido [a Anac]. No Galeão, tem outorga fixa por ano e eles precisam de outorga crescente. Há essa flexibilidade no contrato? Não cabe a nós julgar, mas o órgão regulador. A MP 752, que flexibiliza e dá critérios para a caducidade [das concessões] vai ajudar a dar segurança jurídica.
Valor: Teria que rever as condições do contrato?
Maria Silvia: Sim, por isso tem a medida provisória. Uma parte dessas concessões o governo já anunciou que serão relicitadas [Concer, Dutra e CRT].
Valor: O que mais muda no financiamento às concessões?
Maria Silvia: Não tem mais empréstimo-ponte, hoje os financiamentos do banco são de no máximo até 80% [de participação], com 20% de 'equity' [ações] do investidor. As condições de financiamento são definidas para os leilões específicos. No caso do leilão de aeroportos, a parcela em TJLP é até 40% e tem debêntures. Podemos entrar em até 100% das debêntures a custo de mercado.
Valor: Haverá demanda pelos recursos do banco nessas condições?
Maria Silvia: Acho que terá e vamos trabalhar junto com os concessionários para viabilizar. Mas, se não tiver interesse, temos outros projetos para apoiar. Também definimos edital em inglês para as novas concessões - antes, não havia -, mais prazo entre o lançamento do edital e o leilão, pagamento de 25% da outorga e dos ágios no momento de assinatura do contrato.
Valor: Houve casos em que o banco executou garantias por descumprimento de contrato?
Maria Silvia: Houve o caso da Triunfo. O banco executa quando é nossa obrigação. Com
a Triunfo houve muita conversa. Continuamos conversando mesmo depois de eles terem entrado com ação contra o banco e nós executando as garantias, como temos obrigação de fazer, mas nunca avançou. Nunca houve disposição de apontar caminho e outras garantias. Não é algo que a gente deseje. Obviamente, é um pouco demais achar que o Banco Central quer viver com juros altos e o BNDES não quer gerar crescimento e emprego. A missão do banco é essa.
Valor: No caso da exportação de serviços, o que se constatou?
Maria Silvia: O Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria profunda em 149 contratos e nos ajudou muito na retomada. O tribunal nos apontou aperfeiçoamentos nos processos que o banco estava usando. Era um dos assuntos mais delicados do banco e estamos conseguindo com transparência e critérios horizontais tratar do assunto, que não é simples e afetou muito a imagem do BNDES. Em outubro, divulgamos novos critérios para os novos projetos. Para os projetos suspensos, anunciamos as condições necessárias à retomada dos desembolsos.
"Se os bancos derem mais de 40% do total em fianças, o BNDES compartilha as garantias do projeto com eles"
Valor: Quais são as condições?
Maria Silvia: São quatro: ter o funding fechado; avanço físico da obra; risco de crédito do importador; e assinar o termo de 'compliance'. Olhamos, por exemplo, uma obra em um país que está com 30% de avanço físico, mas o único financiador é o BNDES. Nesse caso, o funding não está fechado ainda, então, é um dos quatro critérios não cumpridos. O termo de 'compliance' deve ser assinado pelo importador e o exportador dizendo que não há nada ilícito no projeto.
Valor: A partir de agora?
Maria Silvia: Não. Se houver [evidência de corrupção] em um projeto existente, não pode ser retomado. Dos 25 projetos de exportação de serviços suspensos, três foram retomados - dois com a Queiroz Galvão (um em Honduras e outro na República Dominicana) e, agora, anunciamos que estamos aptos a retomar um projeto com a Andrade Gutierrez, em Gana.
Valor: Qual é a conexão da leniência e o termo de "compliance" do BNDES?
Maria Silvia: Nas concessões, tenho que fazer análise de crédito e cadastro do concessionário. Na exportação de serviço, o importador tem que ter crédito com o banco, e tanto o exportador quanto o importador têm que ter cadastro positivo com o banco, o que está refletido no termo de "compliance". É importante dizer que o banco está em estreita colaboração com o Ministério Público Federal. Temos troca permanente de informação e reuniões. Temos ido com frequência ao TCU para resolver o estoque grande de problemas. Nossa aproximação com os órgãos de controle é positiva. Assinamos [na quinta-feira] termo de cooperação com o Ministério da Transparência [ex-CGU]. No caso do MPF, começamos tratativas para possível assinatura de um acordo de cooperação institucional.
Valor: Como funcionaria?
Maria Silvia: Organizaria nosso relacionamento, diria quais são os canais efetivos de contato no banco e no MPF, com uma troca de informações mais escorreita. O termo de 'compliance' foi feito em colaboração com o MPF e tem uma conexão com o acordo de leniência. Se quem assinar o acordo de leniência descumprir o termo de 'compliance', ou vice-versa, descumprirá o outro. Os dois documentos são conexos. Se isso ocorrer, haverá vencimento antecipado de todos os contratos do banco ["cross default"].
Valor: Qual é o impacto dos acordos de leniência sobre o BNDES?
Maria Silvia: O acordo de leniência trata do cadastro. Quem assina leniência, o cadastro passa de ruim para regular. Em tese, pode novamente contratar com órgãos públicos. É condição necessária, mas não suficiente porque temos que ver a questão de crédito.
Valor: É por isso que o acordo de leniência não é garantia de que a empresa vá ter crédito do BNDES novamente?
Maria Silvia: Não é, mas a empresa já pode operar com o banco. O acordo de leniência tem impacto positivo sobre o banco, é condição essencial. Se houver condição de crédito, podemos retomar e contratar. Mas temos que fazer análise de crédito, ter as garantias. Havendo acordo de leniência estão removidos da análise de cadastro quaisquer fatos relacionados à leniência. Mas o cadastro pode não ser regular por outros motivos.
Valor: O MPF negociou o acordo de leniência da Odebrecht com autoridades americanas e suíças. A empresa confessou as práticas ilegais e concordou em pagar multa de R$ 6,7 bilhões. Ocorre que a AGU, por exemplo, diz que vai exigir reparação também. Isso não cria insegurança jurídica?
Maria Silvia: Por isso, é importante ter todos esses órgãos [de controle] se posicionando. Digamos que algumas dessas empresas queiram vender seus ativos. O potencial comprador pode requerer [para ter segurança] uma palavra final de todos os órgãos. Ele pode ter receio de adquirir dívida no futuro. Quando falei de insegurança jurídica, me referi à transferência de controle. O acordo de leniência, para o BNDES, se não houver outras questões, é suficiente para sanar a questão do cadastro. É bom dizer que não conhecemos o acordo [da Odebrecht].
Valor: É sigiloso?
Maria Silvia: O Supremo Tribunal Federal tem que levantar o sigilo em algum momento. Recebemos um estrato preparado em conjunto pela Odebrecht e a MPF para os bancos públicos. Com o acordo de leniência, a informação do Ministério Público para nós, o cadastro deles [Odebrecht] vai se tornar regular. No caso de exportação de serviços, a Odebrecht precisará assinar o termo de "compliance" junto com o importador, assegurando que naquela operação não há nada irregular.
Valor: Há conversa com a Odebrecht sobre o termo de compliance?
Maria Silvia: Está fechado. Ou eles aderem ou não. O termo de 'compliance' vai ser incorporado a todos os contratos de exportação de serviços que assinarmos com alguém que trate com o poder público, com governos estrangeiros, daqui em diante. A Odebrecht na leniência revelou uma serie de fatos sobre os quais diz que já tem conhecimento, mas se obrigou a fazer apuração interna, continuada, em todas as suas operações. Tudo o que vier a encontrar de novo comunicará ao MPF. Ser tiver assinado leniência e 'compliance' e vier a descobrir coisa adicional, e revelar ao MPF, não tem 'cross default' conosco [não fica inadimplente com o BNDES]. Mas, se não revelar as irregularidades constatadas e elas forem descobertas por outras fontes, descumprirá a leniência e o termo de "compliance".
Valor: O fim do empréstimo-ponte não cria a necessidade de flexibilização de outras condições?
Maria Silvia: Quando acabou o ponte, dissemos que o contrato longo vai ser contratado desde o momento zero. Vamos fazer o longo com fiança bancária até o "completion" físico [conclusão da obra] e financeiro [da operação financeira]. Vamos flexibilizar garantias.
Valor: Como?
Maria Silvia: Vamos compartilhar garantias. Se os bancos derem mais de 40% do total em fianças, o BNDES compartilhará as garantias do projeto com os bancos. Flexibilizamos sem perder a garantia de receber nossos créditos. Vai ajudar a compor o funding.
Por Francisco Góes e Cristiano Romero, no Valor Econômico




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