terça-feira, 21 de março de 2017

Questões de Estado


A esta altura já parece claro que faltou à Polícia Federal e ao Ministério Público, no caso da Operação Carne Fraca, um sentido de estar a serviço do Estado brasileiro, o que obriga a medir as consequências de denúncias tão amplas quanto as que foram divulgadas em uma entrevista coletiva que anunciava ser aquela “a maior operação da História da Polícia Federal”.
Justamente no dia em que a Lava-Jato completava três anos, e havia uma coletiva da equipe de policiais e procuradores em Curitiba para fazer um balanço das operações até o momento. É inevitável a sensação de que houve no episódio uma disputa pelos holofotes que não dignifica as instituições.
Não se discute a necessidade de investigar e combater crimes como os que foram apurados, mas tudo indica que faltou no caso uma assessoria técnica de especialistas para não deixar as denúncias saírem do razoável. Esse caso tem peculiaridades que escapam à normalidade.
Como a Polícia Federal ficou dois anos assistindo a um festival de irregularidades, investigando fraudes no setor de inspeção agropecuária, sem que tomasse providências para evitar que carne estragada fosse vendida aos consumidores brasileiros ou exportada?
É aceitável, embora seja preciso muita boa vontade, a explicação de que o Ministério da Agricultura não foi chamado para ajudar nas investigações porque vários de seus servidores estavam envolvidos nas irregularidades. Não é possível que a Polícia Federal considerasse que todo o alto escalão da Agricultura estava envolvido no esquema, pois com meses de escuta telefônica daria para saber o que realmente estava acontecendo.
Ou a PF tem indícios graves de que a cúpula do ministério estava envolvida, no governo Dilma e também nesse de Temer, ou fica difícil aceitar que uma assessoria técnica não tenha sido agregada à equipe da Carne Fraca, para evitar que uma conversa sobre embalagens de papelão se transformasse na acusação de que os frigoríficos misturavam papelão à carne que vendiam.
PF e MP são órgãos do Estado, e por isso têm autonomia. Mas, justamente essa característica deveria dar a seus membros uma visão de conjunto dos interesses do país que impediria, por exemplo, que o escândalo da carne, ao que parece restrito a uma região e a alguns frigoríficos, fosse generalizado, prejudicando as exportações que são fundamentais à economia brasileira. E dando margem a que os competidores internacionais de nossas empresas ganhem espaços preciosos no mercado internacional enquanto as coisas são esclarecidas.
O caso, desse ponto de vista, é diferente do petrolão, que já do início deixou claro que havia um cartel de empreiteiras atuando na Petrobras. Não havia, portanto, como salvar o setor naquele primeiro momento, mas agora as instituições envolvidas, notadamente o TCU e o Ministério Público, estão conseguindo chegar a um acordo que permitirá às empreiteiras que fizeram acordos de leniência voltar ao mercado, devidamente punidas e devolvendo aos cofres públicos o prejuízo que causaram.
Mas esse caso da carne tem uma perigosa semelhança com o petrolão no que se refere à influência da classe política nas irregularidades. O Diário Oficial de ontem publica a demissão dos superintendentes do Ministério da Agricultura no Paraná e em Goiás, os dois estados alcançados pela Operação Carne Fraca.
Gil Bueno de Magalhães, do Paraná, era apadrinhado pela bancada do Partido Progressista, especialmente os deputados Dilceu Sperafico, Nelson Meurer e Ricardo Barros, esse atualmente ministro da Saúde. Em Goiás, foi afastado o servidor Júlio César Carneiro, apadrinhado do petebista Jovair Arantes, que já controlava a superintendência goiana da Agricultura no governo petista. Relator do processo de impeachment de Dilma, manteve a influência.
Osmar Serraglio, do PMDB do Paraná, hoje ministro da Justiça de Temer, chamava Daniel Gonçalves Filho, considerado pela Polícia Federal como o chefe do esquema criminoso, de “grande chefe”. O que um deputado ou senador quer ao nomear um fiscal do Ministério da Agricultura? O mesmo que o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti queria ao pedir a nomeação do diretor da Petrobras “que fura poço”.
Atribui-se ao chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898) a frase que diz que é melhor não saber como se fazem leis e salsichas. Nada mais atual em relação aos problemas brasileiros. Na Lava-Jato, e agora na Operação Carne Fraca, ficamos sabendo o que acontece quando políticos vendem leis e impedem a fiscalização das fábricas de salsichas.

Por Merval Pereira, em O Globo