"Acordo de
leniência com um só órgão traz insegurança jurídica"
A ministra-chefe da
Advocacia-Geral da União (AGU), Grace Mendonça, disse considerar
"prudente" a postura do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) de aguardar para conceder crédito a empresas investigadas na
Operação Lava-Jato que fecharam acordos de leniência com o Ministério Público
Federal (MPF).
Em entrevista ao
Valor, ela ressalta que esses acordos, que não passaram pela chancela do
Ministério da Transparência e da AGU, não livram as empresas de sanções
administrativas ou ações de improbidade no Judiciário.
A restrição do
BNDES ao crédito enfureceu as empresas envolvidas na Lava-Jato. Para Grace,
porém, a cautela do banco é compreensível. O fato de uma empresa fechar acordo
de leniência com o MPF, diz a ministra, não quer dizer que possa novamente
celebrar contratos com a administração pública, ou que tenha obtido uma
quitação total do que deve para os cofres públicos federais. Ela defende que só
uma atuação conjunta entre MPF, Ministério da Transparência, AGU e Tribunal de
Contas da União (TCU) poderá garantir segurança jurídica aos acordos.
A ministra também
conta que pretende apresentar neste semestre, ao Supremo Tribunal Federal
(STF), a proposta de um grande acordo entre bancos e poupadores em torno das
ações que discutem a correção da poupança durante os planos econômicos das
décadas de 80 e 90. Além de pôr fim a uma discussão jurídica que se arrasta há
duas décadas, o acordo teria o mérito de injetar dinheiro na economia em um
momento de crise, aponta a ministra.
A AGU está
trabalhando atualmente em um levantamento sobre quem seriam os beneficiários
desse eventual acordo e que valores estariam envolvidos. Ela assegura que, até
o momento, tanto os bancos como os poupadores se disseram favoráveis a um
consenso fora do litígio judicial. A seguir, os principais trechos da
entrevista:
Valor: A presidente do BNDES, Maria Silvia Bastos
Marques, afirmou recentemente que os acordos de leniência com o MPF não são
suficientes para destravar o crédito a empresas investigadas na Lava-Jato. O
BNDES precisa esperar que a AGU e o Ministério da Transparência chancelem esses
acordos?
Grace Mendonça: É
prudente aguardar. Os acordos fechados sem a participação da AGU e do
Ministério da Transparência não afastam medidas administrativas ou mesmo as
ações de improbidade que buscam ressarcimento ao erário.
Valor: O que continua travando a aprovação desses
acordos?
Grace: A própria
lei que autoriza o Ministério da Transparência a celebrar acordos de leniência
é muito recente. O tema é muito novo para todos nós. Nesse período, o que
podemos constatar é a importância de um trabalho integrado.
Valor: Que instituições devem participar desses
acordos?
Grace: É
fundamental, primeiro, que as competências legais sejam respeitadas. Não é
possivel que um órgão pretenda adentrar na esfera de competência do outro,
porque o outro vai continuar defendendo seu âmbito de atuação. Temos uma lei
que atribui ao Ministério da Transparência a competência para tratar dos termos
dos acordos de leniência. A AGU tem o papel de trabalhar em conjunto com o
ministério nesses acordos. Tanto que assinamos uma portaria interministerial
para imprimir uma celeridade maior a esse procedimento. Hoje, nós trabalhamos
em conjunto, Ministério da Transparência e AGU, afastando fragilidades que no
passado só fomos constatar no fim do procedimento. Além disso, precisamos ter
participação muito efetiva também do TCU e do Ministério Público. Para que essa
política seja implementada de maneira segura, todos esses atores precisam estar
envolvidos.
Valor: E se os acordos são feitos de forma isolada?
Grace: Quando um
acordo é celebrado exclusivamente por determinado órgão sem que os outros
tenham participação, em especial sem aqueles órgãos aos quais a legislação
atribuiu a competência, na prática nós temos uma situação de insegurança
jurídica.
Valor: O acordo com o MPF não pode resolver todas essas
questões?
Grace: O fato de
aquele órgão ter celebrado acordo de leniência não quer dizer que aquela
empresa possa novamente celebrar contratos com a administração pública, que ela
já tenha dado uma quitação total do que ela deve para os cofres públicos
federais. Há uma série de questões que precisam ser avaliadas pelos órgãos
competentes. Por isso, é muitas vezes compreensível a dificuldade que algumas
entidades têm quando tratam da questão do crédito. Como o BNDES vai trabalhar
num ambiente de segurança dessa forma?
"É
compreensível a dificuldade. (...) Como o BNDES vai trabalhar num ambiente de
segurança dessa forma?"
Valor: Há algum acordo de leniência sendo trabalhado
com a integração das quatro instituições que a sra. menciona?
Grace: Desde o
início do procedimento, não. O que há hoje, até por conta daquele caso mais
avançado [o acordo de leniência da SBM Offshore, que foi fechado pelo MPF e
depois rejeitado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão da instituição], é um
esforço dos órgãos no sentido de atuarem de maneira mais integrada. Mas temos
alguns acordos celebrados pelo MPF sem a participacao do Ministério da Transparência.
O que temos hoje de integração desde o início é entre o Ministério da
Transparência e a AGU. São vários casos sob sigilo ainda.
Valor: A intenção agora é chancelar os acordos já
fechados pelo MPF, ou tudo será rediscutido?
Grace: Na verdade,
não se tem ainda uma rotina estabelecida quanto a esses acordos. O Ministério
da Transparência sempre procurou respeitar muito [os acordos fechados pelo
MPF], para a AGU é importante também que eles sejam respeitados. Agora, alguns
desdobramentos precisam ser melhor avaliados, porque nem sempre os valores que
foram acordados correspondem a valores que o ministério, ou mesmo a AGU,
entendam como sendo os valores efetivamente devidos.
Valor: Como está a situação do acordo de leniência da
Odebrecht?
Grace: O caso da
Odebrecht tem peculiaridades. Foi celebrado acordo com o Ministério Público, em
algum nível não há participacao do Ministério da Transparência, e o próprio
ministro [Torquato Jardim] já manifestou publicamente preocupações quanto ao
tema. Temos também ações em andamento discutindo valores a serem devolvidos aos
cofres públicos federais. Ao todo, nessas ações que a AGU já apresentou [contra
empresas envolvidas na Lava-Jato], buscamos a restituição de cerca de R$ 23
bilhões aos cofres públicos.
Valor: A AGU teria que desistir dessas ações, se
chancelar os acordos de leniência feitos pelo MPF?
Grace: Nós não
temos autorização legal para abrir mão daquilo que é competência da União, que
é a defesa dos cofres públicos federais. Há uma preocupação da AGU no sentido
de respeitar as competências dos diversos órgãos, fazendo as distinções.
Respeitamos os acordos celebrados pelo MPF, porém a competência ali exercida
não afasta o âmbito de atuação próprio da AGU no que se refere à missão que
tem, que é constitucional, de ajuizar ações buscando restituir aos cofres
públicos valores indevidamente desviados.
Valor: Como resolver o impasse?
Grace: Hoje se tem
um ambiente de alteração legislativa, com projetos já em andamento no Poder
Legislativo. É importante que se tenha, nessas propostas, a especificação sobre
a integração desses órgãos, com as premissas que depois serão objeto de
detalhamento sobre o procedimento envolvendo todos eles.
Valor: A sra. vem costurando com bancos e poupadores
acordo em torno das ações dos planos econômicos. Como estão as conversas?
Grace: Nossa ideia
foi abrir primeiro o diálogo com os bancos federais. Na sequência, tendo uma
sinalização positiva, conversei com o presidente do Banco Central [Ilan
Goldfajn], que também sinalizou positivamente. Depois falamos com a Federação
Brasileira de Bancos para apresentar algumas premissas que considerávamos
relevantes. Em seguida, com a sinalização também positiva da Febraban,
desencadeamos a conversa com órgãos representativos dos poupadores, como o
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Febrapo. Tivemos também
em relação a eles sinalização positiva.
Valor: Quando o acordo pode ser fechado?
Grace: A ideia é
imprimir a máxima celeridade para, ainda neste semestre, apresentar uma
proposta ao STF.
Valor: Há algum obstáculo?
Grace: O obstáculo
diz respeito à interlocução mais ampla. O Idec tem boa representatividade em
relação ao conjunto de poupadores, a Febrapo também, e estamos trabalhando no
levantamento de outros atores que possam contribuir.
Valor: O maior problema é encontrar alguém que
represente o conjunto de poupadores?
Grace: Sim, porque
precisamos trazer uma solução definitiva a toda essa discussão. De nada
adiantaria o esforço para solucionarmos apenas parte do problema.
Valor: Como fica a situação de quem entrou com ação
sozinho?
Grace: É justamente
esse o desafio. Temos um trabalho envolvendo até a Ordem dos Advogados do
Brasil, que também está presente na discussão travada no STF e demonstrou
vontade de colaborar. Penso que já avançamos bem, porque temos a boa vontade
demonstrada, com muita clareza, por todos aqueles com os quais conversamos.
Valor: E as ações que prescreveram?
Grace: A ideia
seria respeitar esses prazos prescricionais. Trabalhamos então com as ações que
não estão prescritas ainda, ou seja, todo o acervo de ações em andamento ou já
com trânsito em julgado.
Valor: Muitos poupadores que entraram com ações já
morreram. Herdeiros podem entrar no acordo?
Grace: Esse é um
dos temas em discussão.
Valor: Os bancos privados vão participar?
Grace: O diálogo
com eles também está bem avançado, nada impede que façam parte do acordo.
"O diálogo com eles [bancos] está avançado, nada impede que façam parte
desse acordo [sobre os planos econômicos]"
Valor: A sra. mencionou algumas balizas colocadas no
diálogo com a Febraban...
Grace: Precisamos
trabalhar com algum critério que delimite bem quem são aqueles que poderão
participar do acordo. Outras balizas dizem respeito ao direito propriamente
dito. Não estamos aqui reconhecendo que há uma lei que seja inconstitucional. O
que há, na verdade, é um ambiente que favorece o diálogo entre as partes
interessadas. Isso é importante por causa da segurança jurídica, ainda mais
quando você trata de uma questão tão sensível, que adentra a esfera econômica.
É um valor caro para os bancos e também para a União, e para o próprio sistema
monetário como um todo, o fato de que não se tenha no âmbito do acordo o
reconhecimento da inconstitucionalidade.
Valor: Quando os bancos concordam em pagar, ainda que
menos, não reconhecem uma inconstitucionalidade?
Grace: Não. A
premissa não é o reconhecimento da inconstitucionalidade, mas tentar chegar a
uma solução consensual.
Valor: Esse acordo pode gerar precedente para outras
discussões, como a correção de depósitos judiciais?
Grace: Não, seria
um acordo específico para as questões que envolvem a correção da poupança nos
planos econômicos.
Valor: Quais os valores em jogo?
Grace: Ainda
estamos trabalhando em um levantamento preciso. Mas temos uma perspectiva de
redução dos montantes [estimados anteriormente pelos bancos], até porque
estamos falando em um acordo. Esse percentual não está fechado. Nós sabemos da
importância de se buscar uma solução consensual, e todo acordo pressupõe que
cada parte ceda um pouco. Mas uma grande força motivadora, além de contribuir
para um desfecho consensual dessa demanda e para desafogar o Judiciário, é a
perspectiva econômica.
Valor: O que a sra. quer dizer?
Grace: A partir do
momento em que o acordo for viabilizado, os poupadores vão receber recursos,
com isso você faz uma injeção de dinheiro na economia. Nós sabemos que essa
ação pode colaborar muito num momento em que o país busca se reeguer
economicamente. O acordo, se firmado, vai trazer esse grande benefício que é
viabilizar a circulação de recursos na economia.
Valor: O governo teme perder se o caso for a julgamento
no STF?
Grace: Não se tem
um receio em relação a eventual decisão desfavorável. Na verdade, todo o
esforço da União sempre foi de demonstrar ao Supremo a constitucionalidade
desses diplomas, que os planos econômicos vieram numa realidade de hiper
inflacao que exigia uma medida rápida, enérgica e eficiente para conter o
processo inflacionário. Então não há um receio, o que há é um empenho em
dialogar. A nova lei de mediação trouxe muito isso. Nem sempre levar a questão
a seu desfecho judicial traz a melhor solução.
Valor: Poupadores reclamam de estratégias para atrasar
o julgamento...
Grace: Na verdade,
nosso sistema recursal acaba propiciando um alongamento da demanda no
Judiciário. Mas nunca se teve um escopo protelatório, de prejudicar o poupador,
mas de demonstrar que se estava diante de uma política de contenção de processo
inflacionário fundamental para a manutenção da higidez do sistema econômico.
Valor: A sra. encontrou algum tipo de resistência?
Grace: Não
encontramos até agora nenhuma resistência de quem quer que seja, nem dos
poupadores nem dos bancos. Ao contrário, sempre tivemos uma sinalização muito
positiva. Talvez estivesse faltando até agora esse órgão que pudesse chamar
para a mesa de negociação todos esses atores, e a AGU se propôs a fazer
exatamente isso.
Valor: Quem fará a mediação, a AGU ou o STF?
Grace: Temos um
órgão próprio na AGU, a Câmara de Conciliação e Arbitragem, que é vocacionada a
buscar uma solução que reflita o consenso entre as partes. Mas não trabalhamos
com a perspectiva de acordo sem a chancela do STF. Agora, nada impede também,
caso eventualmente não consigamos obter o êxito que penso que seja possível,
que o STF atue como mediador.
Valor: Sobre as mudanças na Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF) para socorrer os Estados, qual a expectativa da sra.?
Grace: Houve todo
um esforço da União para auxiliar os Estados que passam por dificuldades
financeiras e fiscais. Foi um trabalho conjunto entre Ministério da Fazenda,
Secretaria do Tesouro Nacional e AGU para apresentar uma proposta que pudesse
trazer uma autorização legislativa clara. É importante deixar claro que não
estamos afastando a LRF. A ideia é aprimorar a lei para que ela traga um
regramento diferenciado para situações de natureza excepcional. O tratamento
inclusive é temporário, até que o Estado restabeleça a normalidade em sua
gestão. Agora, nenhum esforço pode ser implementado sem autorização do
Congresso.
Valor: Os deputados não são simpáticos à aprovação
conjunta das contrapartidas...
Grace: O
restabelecimento do equilíbrio financeiro fiscal só é possível se as
contrapartidas forem aprovadas. É imprescindível que o Estado tenha seu acervo
de compromissos para que esse plano de recuperação seja efetivado e alcance o
seu objetivo maior, que é o equilíbrio das contas. É um período difícil que
aquele ente pode vir a passar se ele aderir ao programa de recuperação? Não
tenha dúvida. Mas é fundamental para que essa excepcionalidade alcance o seu
objetivo único, que é o restabelecimento do equilíbrio. Se somente a União
cumprir ou ajudar o Estado, esse ente federativo não sairá da dificuldade em
que ele está inserido. Por isso é importante que se tenha no Congresso Nacional
a aprovação das contrapartidas.
Por Maíra Magro, no
Valor Econômico
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