“(...) Embora o PL
nº 3.278/2021 signifique um gesto de boa vontade da parte do parlamento e vise
a contribuir para a melhoria do cenário acima descrito, é importante analisá-lo
objetivamente. E é sob uma análise objetiva que o projeto mostra não apenas as
suas limitações, mas os seus efeitos nocivos sobre os serviços de transporte
coletivo urbano. (...)”
Está em tramitação no Senado
Federal o Projeto de Lei nº 3.278/2021 ('PL nº 3.278/2021'), de autoria do
ex-senador e atual ministro do Tribunal de Contas da União, Antônio Anastasia,
que tem por objeto a reforma da Lei nº 12.587/2012 (a 'Lei de Mobilidade
Urbana'). O PL nº 3.278/2021, conforme consta da sua justificativa, pretende
ser a resposta à 'queda constante de produtividade e qualidade do transporte
público nas cidades'.
O cenário em que tal
proposta se insere é conhecido de todos: os serviços de transporte coletivo
urbano têm suportado na última década uma queda progressiva da demanda, causada
pela concorrência de outros modais, como o transporte individual privado (por
aplicativos), e mais recentemente pelas políticas de restrição à locomoção de
pessoas adotadas na pandemia da COVID-19 e pela alta do preço dos combustíveis,
um insumo altamente significativo para a operação e que, por ser uma commodity
que tem seu preço definido no mercado internacional, tem variado em razão de
fatores imprevisíveis como a guerra na Ucrânia. Além disso, deve-se destacar o
crônico e generalizado problema da desconsideração, pelos poderes concedentes
(municípios e Estados), do direito das concessionárias e permissionárias ao
equilíbrio econômico-financeiro dos respectivos contratos. Passada uma década
de sua promulgação, a Lei de Mobilidade Urbana, que estabelece, em seu art. 9º,
o direito das operadoras a subsídios em caso de déficit de cobertura da tarifa
de remuneração (o preço contratual) pela arrecadação da tarifa pública (o preço
cobrado dos usuários), ainda é solenemente ignorada, pelo menos neste
particular.
Entre as modificações
propostas pelo PL nº 3.278/2021, estão: (i) introdução de novas definições à
Lei de Mobilidade Urbana (criação dos conceitos de 'rede básica de transporte
coletivo', 'transporte público coletivo complementar' e 'transporte público
coletivo sob demanda', entre outros); (ii) alteração das regras a respeito do
regime econômico-financeiro das concessões de transporte coletivo urbano; e
(iii) instituição de mecanismos de colaboração entre a União e os entes
subnacionais para organização e financiamento dos serviços.
Embora o PL nº 3.278/2021
signifique um gesto de boa vontade da parte do parlamento e vise a contribuir
para a melhoria do cenário acima descrito, é importante analisá-lo
objetivamente. E é sob uma análise objetiva que o projeto mostra não apenas as
suas limitações, mas os seus efeitos nocivos sobre os serviços de transporte
coletivo urbano.
A primeira razão para isso é
que o projeto de lei tende a tornar menos nítida a distinção - que foi um
avanço conceitual importante da Lei de Mobilidade Urbana - entre tarifa pública
e tarifa de remuneração, com os sentidos já referidos acima.
Com efeito, no art. 2º do
projeto, que introduz um novo inciso XVII ao art. 4º da Lei nº 12.587/2012,
tarifa de remuneração passa a ser 'o valor que cobre os reais custos de
produção do serviço de transporte coletivo básico ou complementar, incluindo a
remuneração do prestador do serviço'. A seu turno, a nova redação proposta para
o art. 9º, caput, da Lei de Mobilidade Urbana qualifica a tarifa de remuneração
como aquela 'resultante do processo licitatório'. Ora, ou a tarifa de
remuneração é, como hoje, o preço contratual resultante da licitação, ou então
é um agregado de 'custos reais' mais 'remuneração'. E como o PL nº 3.278/2021 não
dá nenhum parâmetro para definir o que sejam 'custos reais' ou a 'remuneração',
esses dois aspectos essenciais da operação ficam em aberto, o que não pode
acontecer.
A confusão aumenta ainda
mais quanto se verifica, na proposta de inc. XXI do mesmo art. 4º, o conceito
de subsídio como o 'valor do déficit tarifário a ser complementado pelo poder
público delegante com o objetivo de manter a tarifa pública cobrada do usuário
abaixo do custo real do serviço prestado'. Há uma clara inconsistência no
projeto de lei: o subsídio passa a ser o montante necessário para a cobertura
do 'custo real' do serviço e não para custeio da tarifa de remuneração, já que
esta seria acrescida também da remuneração do operador. Na melhor das
hipóteses, o subsídio se amesquinha e deixa de servir para reequilibrar de
forma integral os contratos de concessão. É o sentido inverso do que deve ser
uma reforma da Lei de Mobilidade Urbana.
Em segundo lugar, o PL nº
3.278/2021 cria dificuldades para o processamento dos pedidos de reequilíbrio
econômico-financeiro. O projeto propõe uma nova redação para o §7º do art. 9º
da Lei de Mobilidade para estabelecer que os processos de reequilíbrio somente
serão realizados 'em caráter excepcional e desde que observado o interesse
público'. Ora, isto significa dar ao poder concedente uma alta margem de
discricionariedade na matéria, o que é altamente indesejável. Com efeito, para
que um pedido de reequilíbrio contratual seja recusado, basta ao administrador
público invocar a 'inconveniência ao interesse público' para que a discussão se
encerre. E o próprio acesso ao judiciário pode ficar prejudicado, já que o juiz
pode compreender que a prejudicialidade ao interesse público, declarada pela
administração, deve ser preservada pelo judiciário, em prestígio à presunção de
validade e legitimidade dos atos administrativos. Nesse cenário, que tem uma
probabilidade razoável de ocorrer, o concessionário ficará tanto sem a tutela
administrativa quanto sem a tutela jurisdicional. O seu direito ao equilíbrio
econômico-financeiro, garantido constitucionalmente (art. 37, XXI), será, na
prática, uma ficção.
Por último, o projeto propõe
um novo arranjo de competências visando à cooperação entre os entes federativos
(União, Estados e municípios) em questões relacionadas à mobilidade urbana.
Aqui o projeto peca pela sua timidez. Sem um movimento mais claro e efetivo no
sentido da transferência de certas competências, dos municípios (a quem cabe
precipuamente a gestão dos serviços públicos de transporte coletivo urbano, por
força do art. 30, V, da Constituição) para os entes maiores (Estados e União),
é muito provável que qualquer esforço de recuperação do setor seja inútil. O
novo marco legal do saneamento básico (Lei nº 14.026, de 15.07.2020) é um
exemplo nesse sentido.
Uma reforma da Lei de
Mobilidade que vise a, de fato, contribuir para melhorar a qualidade e garantir
a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de transporte coletivo
urbano deve passar pelas seguintes diretrizes: (i) reforço do direito das
operadoras aos subsídios mediante a previsão de garantias em favor do
particular como condição para licitação dos serviços; (ii) previsão de
mecanismos de transferências de competências dos municípios para Estados e/ou
União em caso de inexistência de recursos para a instituição de garantias nos
moldes do item anterior; (iii) previsão da criação de um fundo federal
não-orçamentário, a ser gerido por instituição privada, ao qual serão
incorporados bens dominicais (p. ex., imóveis não utilizados) e recursos
orçamentários federais, além do bens de mesma natureza dos entes federativos
que aderirem ao fundo ou, na sua falta, recursos dos Fundos de Participação de
Estados e Municípios, destinado a garantir o pagamento dos subsídios às
concessões de transporte coletivo urbano em todo o território nacional; e, por
fim, (iv) a criação de uma instância administrativa centralizada, de composição
colegiada paritária (metade dos membros indicada pelo poder público e metade
por entidades representativas das operadoras de transporte coletivo), destinada
à servir como última instância administrativa em discussões envolvendo
equilíbrio econômico-financeiro de contratos.
Essa última medida teria o
efeito benéfico de permitir o atingimento de decisões justas, que garantam a
liquidez dos créditos detidos pelas operadoras (muitas vezes, o direito ao
subsídio não chega nem sequer a se materializar, por falta de uma decisão
conclusiva sobre os pleitos das operadoras), e retirar a carga política das
decisões envolvendo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de transporte
coletivo urbano (não é incomum que, mesmo reconhecendo o direito das
operadoras, o poder concedente municipal deixe de tomar as medidas necessárias
para o reequilíbrio do contrato, por receio da 'impopularidade' de tais medidas).
A Lei de Mobilidade Urbana,
que completou dez anos em 2022, é virtuosa e benéfica ao interesse público.
Qualquer reforma ao seu conteúdo deve abordar os temas acima referidos, sob
pena de veicular - a exemplo, infelizmente, do que ocorre com o PL nº
3.278/2021 - soluções ineficazes ou que, mais ainda, contribuem para piorar o
que já existe.
Estadão, Amauri Saad, doutor
e mestre em direito administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of
Toronto. Sócio da área regulatória da Siqueira Castro Advogados em São Paulo
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