Crescente
mobilização em oposição ao projeto, dentro e fora do país, provoca
contra-ataque do Ministério da Infraestrutura
Dez anos após a batalha contra a usina
hidrelétrica de Belo Monte (PA), movimentos ambientais, indígenas e de esquerda
repetem o roteiro com relação a uma nova obra monumental na região Amazônica, a
Ferrogrão.
A crescente mobilização em oposição ao projeto, dentro e fora do país, provocou
um contra-ataque do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que tem busca do
dar um verniz 'verde' à ferrovia.
Com cerca de mil quilômetros de extensão e um custo orçado em R$ 20 bilhões, a
obra escoaria grãos, sobretudo soja e milho, de uma das principais regiões
produtoras do país, Mato Grosso, pelo chamado Arco Norte, na Amazônia. Teria
uma ponta em Sinop (MT) e outra no porto de Miritituba (PA), no rio
Tapajós.
O fato de atravessar áreas ambientais e margear terras indígenas tornou o
projeto uma nova causa célebre para ativistas.
'O projeto da Ferrogrão só pode ser comparado a catástrofes humanitárias e
ambientais como a rodovia Transamazônica e a usina hidrelétrica de
Belo Monte', diz carta enviada pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil) em julho à Internacional Progressista (IP), entidade que reúne
lideranças globais de esquerda.
Entre os apoiadores da IP estão o senador americano Bernie Sanders, o
ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis e o ex-líder do Partido
Trabalhista britânico Jeremy Corbyn.
No próximo dia 17, uma comitiva da entidade global virá ao Brasil para
encontros com movimentos sociais e partidos políticos, e a mobilização contra a
Ferrogrão será um dos pontos na agenda. A delegação terá 12 integrantes,
incluindo congressistas e ativistas de Europa e EUA.
Uma das preocupações dos ativistas é a tentativa do governo de apresentar o
projeto como ambientalmente sustentável, o que o coordenador-geral da
organização, o economista americano David Adler, chamou de 'lavagem cerebral
verde' em entrevista à Folha no mês passado.
O governo vem se mexendo para tentar melhorar a imagem de suas obras, Ferrogrão
inclusive.
Uma das iniciativas foi a assinatura de um memorando de entendimento pelo
Ministério da Infraestrutura com a Clima te Bonds Initiative (CBI), organização
britânica especializada na certificação de projetos e operações financeiras
'verdes', com o intuito de orientar investidores. Não há custo para o governo
na parceria, assinada em setembro de 2019 e sem prazo para ser encerrada.
'Se eu vou fazer uma ferrovia na Amazônia, preciso passar segurança
para os investidores, principalmente no quesito imagem. Queremos ser o estado
da arte em termos de estruturação verde, governança ambiental,
monitoramento de processos, recuperação de áreas degradadas, travessia de
fauna', afirma o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas.
Segundo a CBI, o acordo com o ministério envolve o compartilhamento de
informações sobre 'critérios verdes e de melhores práticas internacionais para
o acesso aos mercados de finanças sustentáveis'.
Mas o trabalho específico relacionado à Ferrogrão ainda não se
iniciou, de acordo com Leisa Souza, head de América Latina da CBI.
'A Climate Bonds não avaliou o pedido de certificação das operações financeiras
para construção da Ferrogrão até o momento', afirma.
Entre os argumentos que o ministério apresenta está a promessa de retirar 1
milhão de toneladas de gás carbônico da atmosfera, graças à redução esperada de
90% no fluxo de caminhões na BR-163, que hoje leva a soja mato-grossense para o porto no
Tapajós.
'O Arco Norte já é uma realidade. Em muito pouco tempo vai se impor a
duplicação da BR, pois são todo dia 2.500 [caminhões] bitrens com carga para o porto,
e mais 2.500 voltando. Com a Ferrogrão, essa duplicação fica completamente
descartada', afirma o ministro.
Além disso, argumenta Tarcísio, a ferrovia, longe de ser um novo fator de
desmatamento, atuará como uma espécie de barreira ecológica.
'Ela roda a 40 metros em média do eixo da rodovia, que já é uma região bem
antropizada [modificada por ação do homem]. Vai funcionar como barreira verde,
contendo uma pressão fundiária que é mais inerente à rodovia do que à ferrovia',
diz.
A pregação ambiental do governo até agora tem sido insuficiente para fazer o
projeto deslanehar. Em março, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu
em liminar uma lei do governo Michel Temer que alterava os limites da Floresta
Nacional do Jaman-xim, no Pará, para viabilizar a passagem da Ferrogrão.
Com isso, o traçado da obra permanece incerto, embora o ministério diga que o
contato com a área da floresta seja mínimo.
Em outra frente, o Ministério Público Federal argumenta junto ao TCU (Tribunal
de Contas da União) que não houve consulta prévia a povos indígenas sobre a
obra, como manda convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Até o momento, a resistência de tribos da região sul do Pará tem sido intensa.
'Não é só uma ferrovia, é um projeto que representa a morte para nós. A
gente sempre vai ser contra esse tipo de coisa', diz Alessandra Munduruku,
vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará.
Moradora de Itaituba (PA), na margem do Tapajós, ela diz que a ferrovia acelerará
o surgimento de novas áreas de plantio de soja e o adensamento urbano,
processos já em curso.
'Estão cada vez mais nos espremendo. Onde eu moro, a gente tem que ir bem longe
para pescar. A cidade cresceu tanto que não temos mais de onde tirar palha
[para as casas nas aldeias]', afirma.
Doto Takak-Ire, do Instituto Kabu, que representa 12 aldeias na região de Novo
Progresso (PA), diz que os indígenas não se opõem à obra em si, mas à forma
como está sendo executada.
'A gente não é contra a obra, nem contra o desenvolvimento do Brasil.
A gente é contra a violação dos direitos', afirma ele.
Segundo Doto, é fundamental haver um amplo processo de consulta aos povos
indígenas, que não será resolvido apenas com algumas audiências públicas
promovidas pelo governo.
'Estão confundindo audiência publica com consulta', afirma ele, que é da etnia
caiapó, com cerca de 2.700 pessoas na região.
O ministério diz que o traçado da ferrovia não resvala em áreas
indígenas, mas Doto questiona essa afirmação. Segundo ele, há quatro terras
indígenas na área de influência da obra, que serão afetadas pelo aumento no
cultivo de soja: Capoto/Jarina, Panará, Mekragnot e Baú.
Para o ministro Tarcísio, os ativistas ambientais e indígenas estão se portando
como linha auxiliar de interesses comerciais contrários à ferrovia.
O principal, como mostrou a Folha, é a oposição feita pela Rumo Logística, que
usa uma rota alternativa para escoar os grãos, em direção ao sul. Ela pressiona
o governo pela autorização para expandir sua malha de Rondonopolis (MT), onde
já atua, até Lucas do Rio Verde (MT), para transportar a produção do estado até
o porto de Santos (SP).
'Ativistas, até por boa-fé ou desconhecimento, acabam atuando em defesa desses
interesses comerciais. Tenho certeza de que nenhum deles conhece a região,
conhece a BR-163, conhece o projeto da Ferrogrão', diz o ministro.
Outra o atalho para a qual o governo já se prepara é o possível uso da
Ferrogrão na campanha eleitoral do ano que vem, sobretudo pela candidatura de
Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para isso, a resposta está pronta: o projeto era defendido também pelo PT e
chegou a constar de uma versão do PIL (Programa de Investimentos em Logística),
anunciado pelo governo Dilma Rousseff, em 2015. Mas nunca foi adiante.
Projeto da Ferrogrão liga Mato Grosso ao Pará
Economista vê projeto falho e necessidade de aporte de dinheiro público
Extensão: 933 km
Investimentos estimados: R$ 21,5 bilhões, dos quais R$ 8,4 bilhões em obras
Tempo de concessão: 69 anos
Fontes: PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) e MPF
Ferrogrão
Com cerca de 1.000 km de extensão e um custo orçado em R$ 20 bilhões, a
obra escoaria grãos, sobretudo soja e milho, de uma das principais regiões
produtoras do país, Mato Grosso, pelo chamado Arco Norte, na Amazônia
Por Fábio Zanini, Folha de S. Paulo
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