Uma abordagem
da perspectiva material
Nos últimos tempos, assiste-se no
Brasil, tal como no estrangeiro, ao fenômeno da pulverização das hipóteses de
responsabilidade, seja dos agentes públicos ou dos particulares, por infrações
à ordem jurídico-administrativa.
A isso segue uma densa e multifária legislação e, ao mesmo tempo, a
singularidade, inaudita até há pouco entre nós, da cominação de sanções
administrativas de excessiva gravidade, seja pela sua materialização em
prestações pecuniárias elevadíssimas ou em severas restrições de direito, o que
é capaz de atrair uma semelhança frente às penas criminais[1].
Desse modo, a reiterada aplicação das regras de responsabilização
administrativa, sem uma cultura inclinada à incidência dos direitos
fundamentais, seja no plano substancial ou procedimental, conduzirá, com
certeza, à prática de arbitrariedade, a pretexto de motivada sob a intenção de
realizar o interesse público.
Não se pode esquecer, nos quadrantes do Estado constitucional, ou democrático
de Direito, que a constituição traça o modelo que deve permear na atuação dos
poderes públicos e da sociedade.
Atrai o nosso cuidado a proscrição do bis in idem, ou seja, de uma dupla
responsabilização pela prática de um mesmo fato. O princípio comporta um exame
sob as perspectivas material e processual. No presente texto, pelas limitações
de espaço, circunscrevemo-nos a uma abordagem quanto à primeira delas. Para
tanto, será previamente útil a constatação de situações onde o legislador tipifica
duplamente a mesma infração.
Vejamos.
O art. 5º da Lei nº 12.846/2013, ao tipificar os atos lesivos à Administração
Pública brasileira, destaca, no seu inciso IV, aqueles praticados no âmbito das licitações e
contratos, dentre os quais consta o tendente a fraudar licitação ou
contrato dela decorrente (alínea d), conteúdo que coincide substancialmente com
o do tipo do art. 155, IX, da Lei nº 14.133/2021[2]. E, como se não bastasse, o
inciso XII deste diploma tipifica como infração, a ser punida com as penas que
arrola no seu art. 156, quaisquer das ações previstas no art. 5º, IV, daquele
diploma.
Significa dizer, então, que uma fraude perpetrada por um licitante numa
determinada licitação será, igual e duplamente, punível com base na
Lei nº 12.846/2013 e na Lei nº 14.133/2021[3]. Num rápido paralelo com o
direito criminal, suponha-se que um prefeito, acusado de haver se apropriado de
verbas repassadas em face de um convênio específico, venha a ser processado e
punido tanto pelo art. 312 do Código Penal quanto pela infringência do art. 1º,
I, do Decreto-lei nº 201/67.
É sabido que a proscrição do bis in idem representa um princípio imanente ao
Estado de Direito[4], reconhecido pela via interpretativa, na qualidade de
direito fundamental implícito.
Visto sob a perspectiva substancial, proíbe-se - acentua María Jesús Gallardo
Castilho[5], com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol - a
duplicidade do exercício do jus puniendi pelo Estado (tribunais ou
administração) quando estiver presente a identidade de sujeito, fato e
fundamento.
Uma amostra elucidativa está na STC 188/2005, que se originou de haver um
guarda municipal sido punido pela prática de três faltas disciplinares,
cometidas no período de um ano.
Ao depois, a administração novamente lhe aplicou penalidade (suspensão por três
anos), agora por violação ao art. 27.3 da Ley Orgánica 2/1986, ao tipificar
como falta disciplinar muito grave a prática de três infrações dentro de um
ano, ou seja, o mesmo fato pelo qual já havia sido punido.
Declarou-se a inconstitucionalidade da norma, por resultar adversa ao non bis
in idem, à medida que a regra impugnada possibilita a duplicidade de sanções a
alguém pelos mesmos fatos e fundamento.
A recepção dessa orientação não é incompatível com o nosso ordenamento, sendo
exemplo inconteste as Súmulas 18 e 19 do STF, de sorte que a aplicação de mais
de uma punição pelo mesmo fato pressupõe que se cuidem de responsabilidades
diversas, como a administrativa e a criminal.
No regime dos direitos fundamentais da Constituição vigente, cujo pioneirismo
da sua precedência perante a organização do Estado não é questão de mera
topografia, a impossibilidade da duplicidade de punição, se é de ser
visualizada com a individualização da pena, ganha seu substrato indiscutivelmente
pela consagração da legalidade e segurança jurídica. A sua transposição para a
província das sanções administrativas é, do mesmo modo, inquestionável, nos
termos do art. 5º, §2º, da Lei Básica.
Desse modo, a previsão típica de mais uma hipótese de responsabilização
administrativa para um mesmo fato e sujeito afigura-se incompatível com a
proscrição do bis in idem no sentido material e, de conseguinte, não ostenta
validade. O conflito aqui não é superado pela incidência do art. 22, §3º, da
LINDB, o qual, mais apropriado à matiz processual do princípio, não possui
eficácia para resistir a um confronto com um direito fundamental.
[1] Essa realidade, de recente verificação, é mencionada por Lucía Alarcón
Sotomayor (Los confines de las sanciones: en busca de la frontera entre derecho
penal y derecho administrativo sancionador. Revista de Administración Pública,
n. 195, p. 142-143, setembro-dezembro de 2014.
[2] De notar que, quanto à fraude em licitação, subsiste ainda o tipo do
art. 46 da Lei nº 8.443/92, relativo à competência sancionatória do Tribunal
de Contas da União.
[3] Causa estupefação a admissão categórica do bis in idem, mas de uma forma
natural, sem notar a sua antijuridicidade, que se vê no art. 159 da Lei nº
14.133/2019, prevendo que as penas desta e da Lei nº 12.846/2013 sejam
aplicadas aos mesmos fatos num mesmo procedimento.
[4] Está consignada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de
2000, a saber: 'Artigo 50º Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais
do que uma vez pelo mesmo delito. Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente
por um delito do qual j· tenha sido absolvido ou pelo qual já· tenha sido
condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei'
(disponível em: www.europal.europa.eu. Acesso em: 22 de julho de 2021). Pelo
texto, vê-se que engloba os perfis material e processual. Abordando a projeção
do preceito na jurisprudência comunitária, conferir Luis López Guerra > en
la jurisprudência del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. Revista Espanõla de
Derecho Europeo, n. 69, p. 9-26, janeiro/março de 2019.
[5] Los principios de la postestad sancionadora. Madri: Iustel, 2008, p. 295.
Por Edilson Pereira Nobre
Júnior, no Jota
Edilson Pereira Nobre Júnior -
Professor titular da Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Desembargador do
Tribunal Regional Federal da Quinta Região. Pós-doutor pela Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra. Coordenador da Comissão de Direito
Comparado do IDASAN.
- - - - - - -
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre os livros, clique aqui. |
|
Para saber mais sobre a Coleção, clique aqui.
|
|
Para saber mais sobre o livro, clique aqui.
- - - - - -
No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Coleção As mais belas lendas dos índios da Amazônia” e acesse os 24 livros da coleção. Ou clique aqui. O autor: No mecanismo de busca do site amazon.com.br, digite "Antônio Carlos dos Santos" e acesse dezenas de obras do autor. Ou clique aqui.
-----------
| Clique aqui para saber mais. |
| Click here to learn more. |
| Para saber mais, clique aqui. |
|