É ônus do TCU indicar sua jurisprudência pacificada com base em sólida
metodologia
Parecerista pode ser
pessoalmente responsabilizado se deixar de considerar jurisprudência pacificada
pelo TCU. O entendimento
integra a razão de decidir do Acórdão 13.375/2020, recebido com grande
preocupação pela comunidade jurídica, especialmente pelos advogados públicos,
que agora se veem obrigados a reconhecer jurisprudência pacífica do TCU e segui-la fielmente para não
serem responsabilizados.
No caso concreto, pregoeira e assessor jurídico do Município de Jacobina (BA)
foram sancionados por restringirem indevidamente a competitividade em pregão, realizado em 2014, para
contratação de serviço de transporte escolar.
O edital exigia a vistoria da totalidade dos veículos necessários ao
cumprimento do contrato para qualificação técnica. Segundo o TCU, esta exigência contraria súmula
272 do Tribunal[1] e 'farta jurisprudência' sobre o assunto.
Porém, os precedentes mencionados no voto são posteriores a 2014, quando
o pregão foi realizado
(Ac. 656/2016; Ac. 2939/2018; Ac. 2098/2019). O relatório lista julgados para
refutar o argumento da defesa de que a 'linha jurisprudencial não seria
consensual à época do certame', mas nenhum deles tem similaridade com os fatos,
versando sobre aquisição de imobiliários ou materiais para manutenção de bens
imóveis, construção de novo campus universitário, construção ou ampliação de
sistema sanitário e construção de escola.
Tampouco esses precedentes se conectam com a questão jurídica de fundo,
versando sobre a exigência de visita técnica por profissional específico da
empresa licitante (Ac. 2179/2011; Ac. 2669/2013; Ac. 1215/2014), a exigência de
visita técnica em um único dia ou datas e horário pré-definidos (Ac. 1172/2012;
Ac. 147/2013; Ac. 2669/2013) ou ausência de previsão da substituição da visita
técnica por declaração (Ac. 1955/2014; Ac. 656/2016). Os mesmos problemas se
verificam com os precedentes do voto.
Em exercício simples de pesquisa de jurisprudência com base em 37 acórdãos com
conexão ao caso concreto, apreciados pelo TCU até cinco anos antes do certame[2], constatou-se que não
havia jurisprudência pacificada no TCU sobre
a exigência de vistoria veicular para fins de qualificação técnica,
credenciamento ou habilitação.
A exigência de vistoria veicular para fins de qualificação técnica surgiu como
uma prática administrativa voltada a contornar problemas de qualidade e
quantidade de veículos de transporte escolar, recorrentes nos pequenos
municípios beneficiados pelo Programa Nacional de Apoio ao Transporte do
Escolar.
Em 2012, é editada a súmula 272 do TCU,
treinando o olhar dos auditores para esta questão. Porém, a súmula jamais foi
aplicada e nos dois casos em que se reconheceu a ilegalidade da vistoria
durante o certame, não houve responsabilização (Ac. 1557/2012; Ac. 2874/2013).
Ademais, o relatório de auditoria da política pública (Ac. 1614/2013) não
apresentou qualquer recomendação ou determinação sobre o assunto.
O reconhecimento da jurisprudência pacificada pelo TCU não é tarefa simples, devendo ser orientada pela Nova
LINDB e pelo CPC.
É ônus do TCU indicar
com clareza a sua jurisprudência pacificada, preferencialmente na forma de
súmulas. O CPC é bastante claro em conferir essa responsabilidade aos
Tribunais.
O ônus de dizer a jurisprudência pacífica não pode ser transferido ao
particular e nem aos advogados públicos, que jamais poderão ser
responsabilizados por deixar de reconhecê-la ou desconsiderá-la (tipificação
assim fere a reserva de lei).
O reconhecimento da jurisprudência pacífica deve ser guiado por metodologia
sólida, com amostra composta pela similaridade com o caso concreto e a questão
jurídica em debate, e que sejam situados à época dos fatos.
Mais importante que reconhecer a jurisprudência pacificada, busca inglória em
qualquer Tribunal, é trabalhar para a boa fundamentação das decisões.
[1] Súmula 272 do TCU:
'[n]o edital de licitação,
é vedada a inclusão de exigências de habilitação e de quesitos de pontuação
técnica para cujo atendimento os licitantes tenham de incorrer em custos que
não sejam necessários anteriormente à celebração do contrato'.
[2] Busquei no sistema de pesquisa disponibilizado pelo TCU acórdãos apreciados pelo
Plenário entre 1º de janeiro de 2009 e 1º de janeiro de 2014 com as
palavras-chave ['transporte escolar' habilitação competitividade veículo].
Por Juliana Bonacorsi de
Palma, no Jota
Juliana Bonacorsi de Palma - Professora da FGV
Direito SP. Mestre e doutora pela Faculdade de Direito da USP e LL.M. pela Yale
Law School.
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