É sério notar que há resistências políticas à vacina, evidente sintoma do retrocesso
Paul Ormerod, em “O Efeito Borboleta”, descreve uma
inspiradora experiência que Brian Arthur e dois matemáticos russos traduziram
em elegantes equações. Já falei dela aqui no Valor. De uma urna, que contém uma
quantidade não conhecida de bolas, é retirada uma da cor azul, que é reposta,
só que ao lado de outra da mesma cor. Embora os efeitos sejam ínfimos, isto
eleva as chances de a próxima bola retirada ser também azul, independentemente
da proporção original entre azuis e brancas. Este efeito é um feedback
positivo. Não é o que vemos no Brasil do século XXI.
Tenho acompanhado a avalanche de textos acerca da
involução em diferentes segmentos da sociedade, além das diversas naturezas de
retrocessos econômicos. Os resultados intrigam e são também explicados por uma
fatídica equação. “Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra u
m”. Assim Miriam Leitão começou sua coluna no Globo de 24 de outubro.
Atualizada, ela conta as idas e vindas das políticas de combate ao racismo, se
é que há alguma. E ela tem razão. Sinto na cor da (própria) pele. Dois dias
depois, o professor Thiago Amparo, desta feita na Folha de São Paulo, relatou
pesquisa da UFSCar, em que policiais negros, mesmo gratos por fazerem parte da
tropa, temem seus colegas quando estão de folga, sem farda.
Voltar uma, duas ou mais quadras não é “privilégio”
apenas do racismo. O professor Jorge Zaverucha, no Globo de 26 de dezembro,
aponta que mesmo o regime democrático teve mais retrocessos que avanços. Não
acho que chegue a tanto. A possibilidade de eleição, até de antidemocratas, e
dois processos de impeachment em menos de 25 anos indicam que ainda não
retrocedemos, mas chegamos a um perigoso ponto de inflexão.
Na economia a situação é mais contundente. Entre 2011
e 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu, no máximo, 2,2%, contra mais de
30% do PIB global. Como a população brasileira aumentou muito mais que 2,2%, a
renda per capita teve uma queda brutal, o que nos afastou de um padrão razoável
de bem-estar. É péssima a notícia. A economia tende a manter-se em
desequilíbrio quando seus resultados não são promissores, isto é, quando o
encolhimento é o lugar comum. Isto aumenta o oportunismo nas relações
políticas.
A estabilidade da moeda, inteligentemente conseguida
no curto governo Itamar Franco, foi toscamente trocada pela possibilidade de
reeleição em cargos do Executivo. Os custos desse nocivo (e caro) equívoco são
pagos com repulsivas crises políticas e permanente instabilidade das contas
públicas. Fernando Henrique Cardoso (FHC) é ele mesmo testemunha (arrependida)
da bobagem que articulou. É um cenário que nos empobrece, sob todos os
aspectos, e coloca em risco o objetivo alcançado, que foi o fim da inflação
doentia. Também ajudou a consolidar um emblemático padrão de negociação
política, o “é dando que se recebe”, que insiste em ficar por aí, e
piorado.
Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que
proporcionaram uma inaudita política de inclusão, deixaram um rastro de
maracutaias, termo daquela época, além do desrespeito aos ditames das regras
orçamentárias, que viraria moda, não fosse a vigilância do Tribunal de Contas da União, ou de
parte dele. E o impeachment de uma chefe do Executivo parece não ser o fim
desse longo período.
A gestão da pandemia, aqui e alhures, conduz a dois
quadros terrivelmente opostos. De um lado, a união de forças, recursos
financeiros e, em especial, de esforços científicos, mostram que há disponível
um conjunto de instrumentos que podem minimizar e até prevenir os graves danos
da covid-19. O distanciamento social e a descoberta de vacinas em horizonte
inferior a 10 meses ilustram esses esforços.
De outro lado, porém, surge a estreiteza política, que
prefiro chamar de criadouro de feedbacks negativos. É mal antigo, agravado por
agora. Não há limites para desprezar o recurso econômico mais valioso da
humanidade, o conhecimento, talvez nossa principal fonte de riqueza. O número
de mortos com a covid-19 seria bem menor se o distanciamento social não tivesse
sido negligenciado. Mais sério ainda é notar que há resistências políticas à
vacina. É um evidente sintoma do retrocesso, do retorno à quadra 1.
Até na expectativa de vida o cenário é de recuo.
Estudos da Fundação Getulio Vargas (FGV) e do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), citados no Estadão de 28 de dezembro, destacam que em um ano o
Brasil perderá o que alcançou em seis. A pandemia da covid-19 é a principal
explicação para número tão desproporcional. Contudo, a elevada quantidade de
jovens mortos pela violência, inclusive a policial, já sinalizava a tendência
apontada em tais estudos.
A violência, muito a propósito, é uma das variáveis
sobre a qual o retrocesso seria até um elogio. Segundo o mesmo Ipea, a taxa de
homicídios, entre 2007 e 2017, cresceu 33,1% e 3,3% para negros e não negros,
respectivamente. E esses números apenas pioram.
O cenário é de escassez, acentuada pelos já
sistemáticos feedbacks negativos. E não fiz referência aos estonteantes
retrocessos ambientais, que exigem um artigo especial. A tendência é de fique
mais restrito o acesso ao comércio
exterior, dados os efeitos danosos sobre a imagem brasileira. As
necessidades são bem maiores que os recursos disponíveis. O orçamento tem
sérias restrições, o déficit fiscal avança a taxas crescentes e o ritmo de
geração de empregos é muito lento.
São circunstâncias que exigem perspicácia e capacidade
de persuasão para convencer que é essencial fazer mais com menos, principal
significado de produtividade. Só que isso não se faz com atitudes extremas ou
com uma estratégia do tipo tit for tat. Como o jogo político tende a ser
repetido infinitas vezes, a cooperação, mesmo entre opostos, é também um bom
caminho para reconciliar os interesses divergentes.
E as perspectivas econômicas são cada vez mais
obscuras. 2021 ainda será marcado pela pandemia. A política liberal, um ponto
positivo do governo atual, foi precocemente transformada em um “me engana que
eu gosto”. As falas presidenciais não escondem isso. O caso recente da Ceagesp
e os pífios resultados das promessas de privatização dão o tom dessa
transformação, que ficará mais nítida com o aproximar das eleições de
2022.
Desde a redemocratização, o processo de escolha,
sobretudo para os cargos do Executivo, tem sido, grosso modo, na modalidade de
“o menos pior”, entre 1990 e 2017, ou “não tem tu, vai tu mesmo”, em 2018. FHC
talvez seja a rara exceção — no primeiro governo. Os resultados, claro, foram
desastrosos. É dando que se recebe, somado com o menos pior, multiplicado pelo
me engana que eu gosto e elevado a não tem tu, vai tu mesmo, não é outra coisa
que não o grande salto para trás, que é a integral do longo ciclo de sucessivos
feedbacks negativos. Fatídica equação.
A estabilidade da moeda foi toscamente trocada pela
possibilidade de reeleição em cargos do Executivo.
Por Edvaldo Santana, no Valor Econômico
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