Para
especialistas, projeto aprovado no Congresso traz mecanismos positivos, mas
erra ao manter burocracias
A sistemática de compras públicas no Brasil está em
processo de atualização após a aprovação pelo Senado Federal, no final do ano passado, do Projeto de Lei
4.253/2020, que pretende modernizar o processo de compras pelo poder público e
criar um novo marco legal para substituir as tradicionais Lei das Licitações (8.666/1993) e Lei
do Pregão (10.520/2002),
e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei 12.462/11).
O Senado precisa ainda compilar o texto final do PL para enviar para sanção
pelo presidente da República, que pode ou não vetar trechos do projeto. O
Ministério da Economia, contudo, já avalia as mudanças propostas para orientar
o processo de sanção. Depois que entrar em vigor, esse novo arcabouço legal
deverá ser aplicado no âmbito da administração pública direta e indireta da
União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. O período de
transição entre o regime antigo e novo será de dois anos.
Com quase 200 páginas, o texto final do PL, relatado pelo senador Antonio
Anastasia (PSD-MG), tem como premissa tornar o sistema de contratações públicas mais ágil,
econômico e inovador, além de reduzir a burocracia. Dentre seus diversos princípios, está o de promover o
desenvolvimento nacional sustentável. O projeto prevê que a licitação não tem apenas os
objetivos de evitar contratações com sobrepreço e de promover a justa
competição entre os proponentes. Agora, essa modalidade de contratação deve
também incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Especialistas em compras públicas e inovação consultados pelo JOTA avaliam que,
apesar de o PL modernizar alguns processos de aquisição pelo setor público, ele
ainda escorrega em certos quesitos como, por exemplo, em manter as várias
burocracias da Lei das Licitações,
além de dar mais poder aos órgãos de controle.
As perspectivas variam entre aqueles que têm uma visão mais otimista e outros
mais pessimistas em relação às possibilidades para a inovação que se abrirão a
partir da promulgação da legislação. Ainda é possível, contudo, que haja
modificações durante o processo de sanção.
'Da perspectiva de impulsionar a compra de inovação, o resultado de uma maneira
geral é positivo, mas poderia ser melhor. A intenção está formalmente no texto,
o sufixo 'inova' aparece 17 vezes. Para os processos de licitação, o PL faz avanços
importantes que facilitam o fomento à inovação através da demanda da
administração pública', avalia Andre Rauen, diretor de Estudos Setoriais de
Inovação e Infraestrutura no Ipea.
Em análise produzida para o JOTA, Gabriel Romitelli e Maria Carolina Foss,
coordenadores do Núcleo Jurídico do Observatório de Inovação e Competitividade
do Instituto de Estudos Avançados da USP, afirmam que a proposta para a nova
Lei de Licitações avança
pouco para incentivar a inovação no Brasil.
Ela dispõe, entretanto, de aspectos positivos pontuais ao, por exemplo,
preservar a hipótese de dispensa de licitação para contratações previstas na Lei de Inovação
(10.973/2004), garantir a possibilidade de fazer concurso sem exigência de
cessão dos direitos de propriedade intelectual da solução pela contratada, além
de criar a modalidade de diálogos competitivos (artigo 32), que permite ao
gestor público lançar ao mercado problemas complexos que envolvam uma solução
de inovação tecnológica e de alta complexidade (leia mais abaixo).
'A Lei de Licitações não
deve criar entraves para que haja contratação de inovação pela administração
pública. Isso de não atrapalhar, de certa maneira, o PL parece dar conta. Mas
não adianta a letra da lei, se não houver vontade política de incentivar
ciência, tecnologia e inovação', dizem os pesquisadores.
Para Vera Monteiro, professora da FGV Direito SP e mentora dos ciclos de
aceleração de startups da BrazilLab, o projeto aprovado pelo Congresso é
assertivo ao trazer atualizações para o processo de compras públicas, à luz da
jurisprudência do Tribunal de
Contas da União, mas também perde a oportunidade de criar uma legislação
que dê mais liberdade ao gestor.
'A proposta acaba restringindo a liberdade do gestor, ao manter um passo a
passo para ele fazer uma compra pública. Se ela é boa agora, porque atualiza a
legislação à luz da jurisprudência do TCU, daqui a cinco anos já vai ser velha, porque quanto mais regra
você tem, mais fechado fica o mercado', diz Monteiro, relembrando do princípio
da legalidade na administração pública, em que só é permitido ao gestor fazer o
que a lei autoriza expressamente.
Na visão da especialista, o PL mantém os ganhos relacionados à Lei de Inovação.
Por outro lado, não melhora o arcabouço geral da administração pública para
fazer contratações no dia a dia. 'Mesmo a contratação de startup continua com
todos os mesmos problemas, porque não se flexibilizou a possibilidade de
contratar alguém que não tem experiência.'
De fato, no projeto aprovado, a palavra startup aparece apenas uma vez, na
Seção IV, que apresenta as possibilidades para realização do Procedimento de
Manifestação de Interesse (PMI), uma modalidade que permite que a iniciativa
privada proponha e realize estudos, investigações, levantamentos e projetos de
soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública (art.
80), inclusive com a possibilidade de restringir o PMI apenas para startups
(art. 80, § 2º).
'O PMI já existia para as concessões e a lei absorveu isso para os contratos em
geral, incluindo as startups, o que é bem inovador. Na legislação tradicional,
o gestor público não pode dialogar com o mercado, porque isso, muitas vezes, é
visto como risco de corrupção.
Agora, ele vai poder', diz Thiago Marrara, professor de Direito Administrativo
da USP em Ribeirão Preto e consultor.
De acordo com Marrara, permitir que se realize essa consulta só com startups é,
também, uma forma de fomentar esse tipo de empresa no país. 'Elas vão ganhar
experiência de participar de um PMI, notoriedade e podem até ganhar dinheiro se
forem escolhidas para realizar a solução proposta'.
Gabriel Romitelli e Maria Carolina Foss, da USP, também veem com bons olhos o
uso de PMI para contratação de soluções inovadoras. É preciso, entretanto,
entender como será a harmonização dessa previsão com a nova modalidade de
contratação de soluções inovadoras, prevista no Marco Legal das Startups (PL
249/2020), o chamado Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), a ser
celebrado por licitação para
testar soluções de inovação.
Crítica ao PMI, Monteiro, da FGV, diz que essa proposta na nova Lei de Licitações flexibiliza a
possibilidade de que a empresa privada que elaborou o projeto possa participar
do processo licitatório. Anteriormente, isso era proibido para que não houvesse
uma possível captura de interesses por parte do ente privado, nem uma inversão
da lógica do orçamento estatal por parte da administração pública.
'Esse procedimento precisa de cautela. Na prática, isso vai servir para fazer
lobby às claras, ou seja, quem tiver interesse em negociar com a administração
pública vai apresentar projetos que nem sempre seriam a prioridade daquela
gestão. O mecanismo só funciona em situações em que o poder público tem uma
enorme capacidade técnica de analisar estudos e elaborar orçamentos, realidade
que não reverbera nos municípios menores', avalia.
Diálogo competitivo: inova, mas burocratiza
A modalidade dos diálogos competitivos é identificada pelos especialistas como
a maior das inovações previstas no projeto da nova Lei de Licitações. Em resumo, esse modelo,
importado da União Europeia, permite que a iniciativa privada dialogue com a
administração pública para resolver problemas complexos.
Segundo o artigo 32, inciso I do PL, os diálogos competitivos podem ser
utilizados para contratações que reúnam as seguintes condições: inovação
tecnológica ou técnica; impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua
necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e
impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão
suficiente pela administração pública.
'Ele abre esse espaço de o Estado dialogar com o mercado para pensar em
conjunto uma solução. Nele, o gestor público identifica um problema em que não
há uma resposta simples, abre um processo de licitação em que as empresas vão se cadastrar para apresentar
projetos, e então passa a desenvolver um diálogo para encontrar a solução',
explica Thiago Marrara, da USP.
Este contexto, diz Andre Rauen, do Ipea, fomenta a inovação uma vez que
possibilita ao Estado estar atento ao que há de mais moderno no mercado em
termos de solução para problemas complexos. 'Ele não fica viciado em soluções
anteriores. Pode ser, sim, que a solução mais antiga seja, de fato, a melhor,
mas só ouvindo o mercado é que se entende isso'.
É unânime entre os especialistas, entretanto, que a proposta para os diálogos
competitivos erra ao permitir, no artigo 32, § 1º, inciso XXI, que um 'órgão
de controle externo poderá
acompanhar e monitorar os diálogos competitivos, opinando, no prazo máximo de
40 dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do
contrato'.
'Eu duvido que algum gestor público vai celebrar um contrato de diálogos
competitivos antes que o TCU diga
que tudo está dentro das previsões, o que limita sua utilização', diz Vera
Monteiro, da FGV.
Para Rauen, esse controle prévio é um reflexo dos novos tempos, pós-Operação
Lava Jato, o que pode ser juridicamente legal. Contudo, inibe o gestor público.
'O administrador está empoderado pelo voto, mas não pode dar passos mais
inovadores, mais disruptivos se toda hora tiver que perguntar para o controle
se o que estou fazendo é legal. Isso é ineficiente do ponto de vista da rotina.
O controle não consegue dar respostas prévias'.
Por Clara Cerioni, no Jota
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