Mais um ciclo de governos
municipais se inicia nas Prefeituras e Câmaras de todo o país em 2021 e, com
ele, o receio de que políticas públicas até então em execução sejam
descontinuadas, que a inexperiência de equipes do alto escalão maciçamente
reformuladas ocasionem erros e letargia nas decisões administrativas e que os
beneficiários finais dos serviços públicos, os cidadãos, sejam negativamente
afetados por causa de uma transição governamental desajustada e apressada,
agravada pela realização tardia das eleições no presente ano por conta da
pandemia da Covid-19.
Infelizmente esse é um cenário previsível em muitas gestões municipais, um
filme já assistido pela população há tempos e que vem sendo reprisado a cada
quatro anos. A descontinuidade administrativa tem sido a tônica em boa parte
das comunas do Brasil e encontra vários fatores como causas, cabendo destacar:
a inexistência de carreiras estruturadas formadas por servidores de cargo
efetivo em áreas-chave das organizações, a visão de governo (curto prazo) e não
de Estado (longo prazo) dos novos gestores e as deficiências estruturais dos
controles internos.
Esse último fator merece atenção especial, pois a implementação e adequado
funcionamento dos controles internos em ambiente governamental deriva de
mandamento constitucional1, presente, portanto, há mais de três décadas no
nosso ordenamento jurídico pátrio.
Mas o que vem a ser esse tal controle interno e qual a sua importância no
contexto do setor público? Um estudo desenvolvido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2009 com o título 'Critérios
Gerais de Controle Interno na Administração Pública' define o controle, em
termos genéricos, como uma ação tomada com o propósito de se certificar que
algo seja cumprido de acordo com o que foi planejado, cuja existência só tem
significado e relevância se houver riscos de que os objetivos pactuados não
sejam alcançados.
Logo, controles internos satisfatoriamente desenhados devem ser direcionados à
mitigação de riscos que possam afetar a concretização dos objetivos do Estado,
em sentido amplo. Como a atuação estatal é significativamente variada, os
controles também devem ter alcance diversificado, priorizando sempre riscos
inerentes de maior escala (ou seja, de maior probabilidade e impacto).
É por isso que uma boa estrutura de controles internos deve ser delineada,
minimamente, nas dimensões estratégica e operacional (aspectos relacionados aos
objetivos primordiais das organizações), além das áreas de comunicação e de
conformidade (compliance), pois além de disponibilizar para a sociedade bens e
serviços de qualidade, os governos devem, de forma inafastável, prestar contas
da sua atuação e ser transparentes, já que utilizam como fonte de financiamento
primária os tributos recolhidos dos cidadãos e empresas.
Em que pese não existir legislação nacional que normatize a estrutura dos
controles internos para todos os entes federados, estudos capitaneados pelo
Conselho Nacional de Controle Interno (Conaci)2 sinalizam a importância de
atuação em quatro macrofunções:
- ouvidoria: objetiva fomentar o controle social e a participação popular, por
meio do recebimento, registro e tratamento de denúncias e manifestações do
cidadão sobre os serviços prestados e a adequada aplicação de recursos públicos, com foco na
melhoria da sua qualidade, eficiência, resolubilidade, tempestividade e
equidade;
- controladoria: tem por finalidade orientar e acompanhar a gestão
governamental para subsidiar a tomada de decisões a partir da geração de
informações, de maneira a garantir a melhoria contínua da qualidade do gasto
público;
- corregedoria: visa apurar os indícios de ilícitos praticados no âmbito da
administração pública e promover a responsabilização dos envolvidos, por meio
da instauração de processos e adoção de procedimentos, voltados inclusive ao
ressarcimento do erário, nos casos em que houver dano; e
- auditoria: função destinada a avaliar os controles internos administrativos
dos órgãos e entidades, examinar a legalidade, legitimidade e aferir os
resultados da gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial quanto à economicidade, eficiência, eficácia e efetividade, bem
como da aplicação de recursos
públicos por pessoas físicas e jurídicas.
Estas atividades guardam correlação com os componentes presentes em um modelo
mundialmente aceito, delineado pelo Comitê das Organizações Patrocinadoras da
Comissão Treadway (Coso, na sigla em inglês): ambiente de controle, avaliação
de riscos, atividades preventivas e detectivas de controle, informação e
comunicação e monitoramento. Devem permear toda a estrutura administrativa dos
órgãos, sendo, portanto, responsabilidade de todo o corpo funcional, mas com a
supervisão de uma unidade central que auxiliará o seu desenho e implementação,
bem como avaliará seu funcionamento, por meio de auditorias.
Estruturas de controle com esta envergadura, ajustadas às peculiaridades de
cada Município tomando por base avaliações de riscos locais, podem contribuir
decisivamente para a execução das políticas públicas, para a conformidade dos
atos de governo ao regramento normativo vigente e para a devida prestação de
contas.
Assim, o controle interno deve estar na agenda dos novos prefeitos e
presidentes de câmaras municipais desde o primeiro dia de suas gestões,
competindo a estes apoiar a cultura de comportamento ético e responsável em
todo o aparelhamento estatal, estabelecer estruturas de governança apropriadas e, com
isso, conceder o indispensável suporte às unidades de controle em termos de
autonomia e recursos para o pleno desenvolvimento de suas atribuições.
A sedimentação do controle interno na cultura organizacional dos Poderes
Executivo e Legislativo municipais é crucial para que as mudanças de governos
decorrentes do pleito eleitoral não provoquem descontinuidade no atendimento
dos interesses sociais legítimos e que os objetivos estratégicos de longo prazo
das instituições públicas prevaleçam independentemente dos ciclos
administrativos quadrienais. Controlar é preciso!
Por Jorge de Carvalho, em O
Estado de S. Paulo
_______________
1 Constituição Federal, art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário
manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I - avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos
orçamentos da União;
II - comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e
eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e
entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades
de direito privado;
III - exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como
dos direitos e haveres da União;
IV - apoiar o controle externo no
exercício de sua missão institucional.
2 Panorama do controle interno no Brasil - 2017 (3ª edição).
Jorge de Carvalho é Auditor
de Controle Externo do
Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCMSP). Contador graduado pela
Uneb, especialista em gestão pública municipal, contabilidade governamental,
direito público e controle municipal. Coautor de livros sobre auditoria e
contabilidade aplicada ao setor público.
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