Professora da USP, diretora de Ciência e Inovação do Instituto Brasileiro de Cardiologia, médica do Instituto do Coração e especialista em medicina intensiva, Ludhmila Hajjar rejeitou em março o convite para ser ministra da Saúde e, desde então, se debruça sobre estudos sobre a pandemia, das graves sequelas cardíacas do chamado “pós-Covid” à terceira onda, que ela vê surgir nas unidades intensivas, passando pelo estrago das variantes do coronavírus.
Médica
de influentes políticos em Brasília, ela fala a seguir de sua rotina, afirma
não ver contradição entre combater o vírus e impulsionar a economia (“um país
doente é uma nação pobre") e detalha as razões do “não” dado ao presidente
Jair Bolsonaro.
Especialistas são quase
unânimes em falar de uma terceira onda. Qual a sua avaliação?
Minha
opinião é a de que a gente já está vivendo a terceira onda. É claro que, em
epidemiologia, surgiria uma segunda onda depois que a primeira se encerrou. Se
nós olharmos com atenção, não saímos da segunda onda, mas vínhamos declinando
em casos de óbito. Desde a segunda semana de maio, podemos afirmar sim que
estamos vivendo a terceira onda.
A vacina traz esperança
de reversão desse cenário?
Sim.
Até porque aconteceu em outros países e regiões. Após uma cobertura vacinal
ampla, os dados significativamente melhoraram, mas o Brasil, apesar de ter, em
números absolutos, uma quantidade grande de vacinas, não alcançou a cobertura
vacinal. Essa conversa poderia ser completamente diferente se a gente chegasse
aqui com 40%, 50% da população vacinada. Estamos entre 14% e 16% da população
brasileira vacinada em duas doses.
O uso da máscara,
portanto, deve continuar, mesmo com a cobertura vacinal adequada?
Uma
dose imuniza cerca de 16% do que seria o alvo da imunização. E existe chance de
reinfecção. As máscaras continuam por algum tempo, para as pessoas estarem
imunizadas, para observarem os efeitos. E acredito que até o final de 2022 as
pessoas não devam abrir mão dos cuidados, entre eles, a máscara e o
distanciamento. Temos que estar alertas também quanto às variantes. Hoje, 90%
da população que é contaminada é com a variante P.1, identificada inicialmente
em Manaus. E cada variante tem um comportamento.
Toda essa política vai de
encontro às defesas feitas pelo presidente Bolsonaro? Como se sentiu ao ser
convidada a ser ministra, e depois ao dizer não?
Eu
fui convidada pelo presidente Bolsonaro, em um sábado em que ele me ligou e
disse: venha para Brasília, vamos conversar. O ministro Pazzuelo deve sair do
Ministério da Saúde e muita gente me indicou você. E foi assim. Eu não
esperava, sou uma médica, professora universitária, minhas posições são muito
claras e sempre foram. Jamais acreditei em tratamento precoce, tão defendido
por alguns. Sempre defendi o isolamento social e a Ciência no controle da
pandemia. Ainda assim, recebi o convite para ir a Brasília e acreditei que
pudesse estar havendo uma mudança de direcionamento, frente a tantas mortes,
tanta tragédia que o Brasil vem vivendo. Foi o que me motivou a fazer minha
mala e ir para Brasília naquele momento. Médica, trabalho no SUS e também na
iniciativa privada. E eu acreditei. Foi o sentimento que me pegou naquela hora.
Passar a ser médica de 200 milhões de brasileiros.
E como foi a conversa?
Na
primeira conversa, no Palácio do Alvorada, já ficou claro que não pensávamos
igual. Realmente não havia um desejo de mudança por parte do governo. Tentei
alinhar, disse que estava ali para ajudar, mas não deu. Não estou no Ministério
da Saúde pois não houve convergência de ideias entre mim e o presidente da
República. Respeitei-o muito porque ele disse exatamente o que ele pensa e o
que ele esperava (de mim). Eu teria que entrar num mundo que de fato não faz
parte daquilo que aprendi, que vivi, que estudei. Temos visões inteiramente
diferentes.
Houve algum nível de
frustração seu?
Não
vou dizer que, quando peguei minha mala de volta, não houve esse momento. Mas
era incompatível. Foi um sonho que durou 24 horas, mas voltei rapidinho (para a
realidade) porque percebi que ali não conseguiria realizar (o que queria).
Qual o grau de preocupação
dos médicos com as variantes?
O
que a gente mais teme é uma disseminação das variantes e uma incapacidade das
vacinas (em detê-las).
A impressão é de que
houve uma naturalização da pandemia. Máscaras embaixo do queixo, aglomerações.
Essa não acaba sendo uma “variante” igualmente grave?
Concordo.
Há três pontos que considero essenciais. Um é a falta de direção unificada
transparente sobre o assunto. Quando há informações antagônicas, a população
fica perdida, surgem as fake news. Outroé a perda de tempo no tratamento
preventivo. Comparando com a Aids, por que ela está controlada? Porque houve um
direcionamento único, as pessoas compreenderam a mensagem e procuraram se
defender. A Ciência precisa ser a gestora das decisões. É muita espetacularização
do ódio e falta de informação clara sobre a pandemia. Não seria errado olhar
para trás e dizer: erramos, o povo está morrendo, o que podemos fazer? É como
se cuidar da pandemia fosse deixar de lado a Economia. Quando é o contrário. Um
país doente é um país pobre. Não tem jeito.
A senhora tem estudado a
pós-Covid, especialmente as questões cardíacas. ..
Sim.
A Covid-19 é uma doença que atinge predominantemente três órgãos: o pulmão, o
coração e o rim. O pulmão é o órgão mais afetado, mas o coração sofre em 50%
dos casos, na fase aguda e após a doença. Até seis meses depois temos observado
complicações cardiovasculares relacionadas ao coronavírus. Quanto mais grave o
caso, mais inflama. Amplia a ocorrência de trombose em vários órgãos. A
Covid-19 não termina quando você sai do hospital ou do consultório.
Por Maiá Menezes, em O Globo
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