A teoria clássica da regulação ordenadora e
criminalizadora, também conhecida como teoria do comando-e-controle, parte do
princípio de que o regulado teria seu comportamento moldado rumo aos fins da regulamentação,
em resposta a ameaças a condutas desviantes do previsto na norma aplicável ao
caso. Assim, o objetivo da multa seria dissuadir da prática em desacordo com a
norma.
O Acórdão Tribunal de Contas da
União 729/2020, que tratou do monitoramento da arrecadação de
multas administrativas emitidas por 15 agências e órgãos de regulação do
governo, mostrou que aqueles entes aplicaram, no período sob análise, mais de
651 mil multas, totalizando R$ 18,3 bilhões a serem arrecadados [1]. É uma
cifra impressionante!
Apesar de tais dados passarem a impressão de que agências e órgãos de regulação
estariam agindo de maneira ativa no sentido da efetivação da melhoria da
qualidade dos serviços prestados à população, faz-se necessária uma reflexão
sobre o tema. Números tão elevados não só impressionam; na verdade, preocupam.
Emissão de mais multas não significa melhoria de serviços, pode até indicar o
contrário: 1) um maior descumprimento das normas estabelecidas; 2) os agentes
podem estar prestando serviços ruins; 3) a regulação pode se mostrar
demasiadamente severa, necessitando ajustes (o que pode incluir, até mesmo, a
desregulação); 4) a agência pode ter falhado em estabelecer normas que produzam
incentivos adequados. Ou mesmo, todas as opções anteriores... Pode, na verdade,
ser o sinal de que é preciso mudar!
Mais impressionante é saber que, desse total, foram arrecadados pouco mais de
R$ 435,4 milhões, correspondendo a 2,37%. Dos 15 órgãos analisados, 11
arrecadaram menos do que 10% do valor das multas aplicadas [2]. Ou seja: a
maioria das multas não é paga!
É preciso superar a falácia de que o sucesso da atividade regulatória seja
medido pelo número de autuações. Um sistema regulatório rígido, apoiado na
aplicação mecânica de normas, em vez de sustentado por uma maior racionalização
da atuação estatal, gera uma deturpação das prioridades regulatórias. Mais do
que punir, é preciso que se estimulem comportamentos de adequação à regulação.
Da mesma forma que as empresas fazem planejamento tributário - estudando
maneiras de reduzir legalmente a carga tributária que incide sobre o
empreendimento -, elas também fazem planejamento regulatório: às vezes
infringir uma norma e sujeitar-se à multa pode ser mais "vantajoso",
quando avaliado sob a perspectiva de custo-benefício, do que ajustar sua
conduta a normas que não levam em conta os contextos (dificuldades e
particularidades) de sua implantação. Corrobora com esse entendimento o citado
Acórdão do TCU, que
constatou que os entes fiscalizados costumam pagar somente multas de menor
valor, contestando, administrativa ou judicialmente, multas maiores [3].
Tem-se, assim, dados objetivos que evidenciam o fracasso de conformidade
vivenciado em vários setores regulados sob o comando-e-controle.
A título de curiosidade traz-se a "Fábula do Rei Regulador" [4],
anedota espirituosa e bastante ilustrativa da espiral regulatória [5],
convidando à reflexão:
"Era uma vez, em um reino não muito distante... havia uma reclamação dos
súditos sobre o preço do pão. O rei, indignado, decretou um preço máximo. No
dia seguinte, os padeiros reduziram o peso do pão. O rei, para que os padeiros
não fugissem do regulamento, decretou um peso mínimo. Então, os padeiros usaram
farinha de qualidade inferior. O rei ordenou uma qualidade mínima. Os padeiros,
em resposta, só permitiam aos súditos comprar pão se comprassem também leite,
que não estava submetido ao controle de preço. O rei emitiu um novo decreto
proibindo a venda casada de produtos. No dia seguinte, os produtores colocaram
uma fruta cristalizada em cima do pão e disseram que o preço era livre porque
não se tratava mais de pão, mas sim de um bolo. O rei então teve que incluir
bolos no regulamento. E eles continuaram e continuaram até que o rei se fartou
e nacionalizou as padarias. Moral da história: se você não quer ficar preso na
espiral regulatória, não regule".
Diferente do que possa parecer, não se trata de uma ode acrítica à
desregulação, mas um alerta (no mínimo divertido) à regulação excessiva
(impensada, insensata, ineficiente), naquela linha: seria cômico se não fosse
trágico.
O fenômeno regulatório detém diversas facetas visíveis e invisíveis. Na
prática, sanções despropositadas podem representar um estímulo ao
inadimplemento: o agente prefere buscar meios para se esquivar da obrigação ou
protelá-la (e.g., por meio da judicialização). O saldo final pode ser o aumento
do custo do funcionamento da máquina pública sem que isso se reverta em melhora
na qualidade ou eficiência da prestação do serviço. A crítica é dolorosa.
De fato, é possível constatar que o discurso de desregulação no Brasil resultou
em mais regulação; afinal, o momento de criação de agências reguladoras
correspondeu ao fortalecimento da centralização normativa, deixando em
evidência o fato de que priorizar uma forma de intervenção indireta sobre a
direta não significa, necessariamente, menor intervenção.
O Estado regulador não é um Estado intervencionista, nem mesmo
abstencionista/anarcocapitalista. Ele representa um meio termo, um equilíbrio
entre dois modelos ideologicamente bem definidos (Estado Social e Estado
Liberal), em que o foco da desregulação dirige-se aos excessos ou
disfuncionalidades da regulação.
O esforço de modelagem regulatória é, por natureza, complexo e é precisamente o
aspecto da procura por respostas inovadoras para os problemas regulatórios,
apoiadas em medidas educativas e mecanismos cooperativos baseados no diálogo
entre regulador e regulado, que ocupa atenção diferenciada na literatura mais
atualizada de regulação [6].
Nesse contexto, a autorregulação e a corregulação, ao lado de outras técnicas
regulatórias, surgem como ferramentas que integram o "canivete suíço"
do regulador, i.e., instrumentos dos quais o administrador público pode lançar
mão com vistas à conformação eficiente de condutas.
Essas abordagens aparecem como resposta à retórica maniqueísta de oposição
entre desregular e regular, representando uma reflexão mais profunda acerca dos
ganhos sociais oriundos da diminuição da regulação estatal voltada à
compensação social ou à orientação do mercado.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na
autorregulação [7], grupos de empresas de um determinado setor, setores
inteiros ou grupos profissionais concordam, voluntariamente, em agir de
maneiras prescritas, de acordo com um conjunto de regras ou princípios
decididos por eles próprios [8].
Ocorre uma permuta segundo a qual os entes privados aceitam limitar sua
liberdade de ação sob a condição de não haver uma imposição regulatória
unilateral; o poder público, por sua vez, lhes confere o poder de fixar normas
para si próprios. O grupo é responsável por desenvolver os instrumentos de
autorregulação, monitorar a conformidade e garantir a sua aplicação [9]. Os
grupos podem ser totalmente responsáveis pelo desenvolvimento dos instrumentos
de autorregulação ou podem trabalhar com entidades governamentais e outras
partes interessadas, situação em que se tem a chamada corregulação.
Na corregulação, geralmente o governo fornece apoio para permitir que as
disposições sejam aplicadas e fiscalizadas. Na autorregulação, em geral a fiscalização do cumprimento pelos
pares é de responsabilidade do próprio grupo instituidor.
Usados nas circunstâncias certas, esses instrumentos podem oferecer vantagens
significativas sobre a regulação tradicional de comando-e-controle, incluindo:
1) maior flexibilidade e adaptabilidade; 2) custos administrativos e de
conformidade potencialmente mais baixos; 3) capacidade de abordar questões
específicas do setor e do consumidor diretamente; e 4) mecanismos rápidos e
baratos de tratamento de reclamações e resolução de disputas. Ambas as
abordagens de autorregulação e corregulação têm o potencial de ser instrumentos
de política muito eficientes devido à sua flexibilidade: podem ser adaptadas para
o problema específico para o qual foram projetadas e podem mudar rapidamente em
resposta às mudanças nas circunstâncias.
Sempre houve, no Brasil, um difundido receio - sustentado, quase sempre, em
desconhecimento - quanto às categorias de autorregulação e corregulação, como
se elas representassem uma forma de deixar o mercado agir descontroladamente.
Neste sentido, a "Autorregulação do Crédito Consignado" pode ser
citada como exemplo de uma iniciativa que tem se mostrado positiva: associada à
percepção de que o problema de práticas comerciais abusivas no oferecimento de
crédito consignado prejudicava não só os consumidores aposentados, mas também o
próprio mercado quanto a uma concorrência justa e saudável, a Associação
Brasileira de Bancos (ABBC) e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban)
propuseram o Sistema de "Autorregulação do Crédito Consignado". A
assinatura da convenção para adesão é voluntária, mas até fins de 2019
instituições representando 98% do volume da carteira de crédito consignado em
todo o país já haviam aderido ao instrumento [10].
O Sistema de Autorregulação entrou em operação em 2 de janeiro de 2020 e além
de estabelecer a governança e
o regramento mínimo para o seu funcionamento segundo as regras estatais
vigentes, tem três objetivos principais: 1) criar um sistema de bloqueio de
ligações à disposição dos consumidores que não queiram receber ofertas de
crédito consignado ("não me perturbe"); 2) formar uma base de dados
para monitorar reclamações sobre oferta inadequada do produto; e 3) estabelecer
medidas voltadas à transparência, ao combate ao assédio comercial e à
qualificação de correspondentes.
Complementarmente ao Sistema, e sem prejuízo às punições privadas nele
previstas (e.g., multas que variam entre R$ 45 mil e R$ 1 milhão) [11], a
Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e entes integrantes do Sistema
Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) fiscalizam sua implementação, além de
aplicarem o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e outros normativos cabíveis,
que não são afastados pela Convenção, adicionando um componente de corregulação
ao instrumento autorregulatório.
Perceber-se, com este exemplo, que com a autorregulação e a corregulação o
Estado não está renunciando a suas funções, muito pelo contrário! Ele está atuando
de forma conjunta com o setor regulado no estabelecimento de diretrizes e
procedimentos mínimos, com isso, a proposta tem a capacidade de aumentar a
previsibilidade e a segurança jurídica.
Longe de representarem uma forma de deixar o mercado agir descontroladamente,
de forma voluntariosa, mecanismos como a autorregulação e a corregulação têm
enorme potencial de tornar mais racional e efetiva a regulação.
[1] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO [TCU]. Acórdão TCU-Plenário nº 729/2020. Relatório de
Acompanhamento (RACOM) TC 024.820/2018-0. Relator: Aroldo Cedraz. Data de julgamento: 01/04/2020, Plenário.
Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/TC%2520024.820%252F2018-0%2520/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0/%2520?uuid=e3669810-3a6d-11eb-ad81-51955e150807.
Acesso em: 1 jun. 2021.
[2] Id, 2020, Tabela3.
[3] Ibidem, 2020, §§ 39, 41, 46.
[4] BULLARD, Alfredo; ROLDÁN, Nicole; CARO, André. La Paradoja de la Calidad en
los Servicios de Telefonía Móvil: cuando más se puede convertir en menos.
Congreso Mundial de Móviles de la GSMA. Barcelona, 24 fev. 2014, p. 9.
Disponível em:
https://www.gsma.com/latinamerica/wp-content/uploads/2014/03/Alfredo-Bullard-Reporte-Paradoja-de-la-Calidad-Reporte-Completo.pdf.
Acesso em: 1 jun. 2021.
[5] Situação em que a produção de regulação inefetiva/errada, em vez de gerar
desregulação como uma reação, gera mais regulação (para corrigir os erros da
regulação que lhe precedeu) e assim sucessivamente, numa espiral sem fim.
[6] ARANHA, Márcio Iorio. Manual de Direito Regulatório: Fundamentos de Direito
Regulatório. 5. ed. rev. ampl. London: Laccademia Publishing, 2019, p. 74, 145.
[7] Não é crítico para esta discussão, mas merece ser mencionado que a
autorregulação é uma forma genérica de regulação que detém significados
variados de acordo com a teoria/modelo regulatório adotado (e.g.,
autorregulação unilateral, ou unilateral self-regulation, de uma única empresa;
autorregulação da indústria, ou industry self-regulation, implicando em atuação
coletiva para melhoria da reputação do setor como um todo; autorregulação
regulada, ou enforced self-regulation, que incorpora consequências punitivas
estatais na disciplina normativa proposta pelo regulado e ratificada pelo
regulador) cf. Aranha, 2019, p. 147-148.
[8] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO [OCDE]. Industry
Self-Regulation: role and use in supporting consumer interests. Relatório
DSTI/CP(2014)4/FINAL. 23 mar. 2015, p. 5. Disponível em: https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DSTI/CP(2014)4/FINAL&docLanguage=En.
Acesso em: 1 jun. 2021.
[9] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO [OCDE].
Alternatives to Traditional Regulation. OECD Report. 2006, p. 6. Disponível em:
https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/42245468.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
[10] SECRETARIA NACIONAL DO CONSUMIDOR [SENACON]. Guia: Corregulação do Crédito
Consignado. Brasília: Secretaria Nacional do Consumidor, Ministério da Justiça
e Segurança Pública, mar.
2020, p. 5. Disponível em:
https://www.defesadoconsumidor.gov.br/images/2020/Guia---Corregulao-Crdito-Consignado-compactado---final_compressed-1.pdf.
Acesso em: 1 jun. 2021.
[11] Na autorregulação tem-se controles internos que podem ser até mais severos
para a empresa do que as punições do poder público. Sobre isso, Aranha (2019,
p. 105) esclarece que "[é] um equívoco [...] pressupor-se que a
autorregulação seria uma opção de amenização das consequências pelo
descumprimento das normas quando comparada com constrangimentos públicos, [...]
punições societárias [...] podem ser muito mais severas do que as
extrinsecamente implementadas".
Por Shana Schlottfeldt, Consultor Jurídico
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