Em viagem à
Europa, povos indígenas e lideranças comunitárias do Pará buscam apoio contra
invasões de garimpeiros e mineradoras como a Belo Sun, que planeja instalar no
Xingu a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil.
Maria Leusa Munduruku nunca
pensou que precisaria ir tão longe para ajudar o seu povo. Na Suíça, diante de
representantes de refinarias que recebem ouro extraído da Amazônia, ela relata
como o consumo do metal precioso tem influência destrutiva no território onde
vivem os munduruku, no Pará.
"Eles perguntaram para
a gente o que podem fazer para ajudar. A gente pede que eles parem de comprar o
ouro e que consultem os povos indígenas. Os países europeus que compram, que
apoiam esse comércio com sangue indígena, são culpados também", diz Maria
por telefone à DW Brasil após a reunião na Suíça, na última sexta-feira (06/05).
Vitória, de 5 anos,
acompanha a mãe. A criança é uma das testemunhas do ataque que a aldeia onde
vivia com a família sofreu, há um ano, quando garimpeiros atearam fogo na
tentativa de intimidar quem se opõe à atividade ilegal dentro da Terra Indígena
(TI) Munduruku.
"Eles queimaram nossas
casas, atiraram pedras em nossos filhos. A vida dos nossos filhos está no meio
dessa violência", relembra Maria Leusa, que preside a Associação de
Mulheres Indígenas Munduruku Wakoborũn, cuja sede também foi atacada.
Só em 2019 e 2020, garimpos
ilegais levaram ao desmatamento de pelo menos 1.925 hectares na TI Munduruku,
apontou um estudo recente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Irregularidades estão por toda a cadeia: segundo os pesquisadores, quase 49
toneladas de ouro brasileiro vendidas no período são ilegais, o que corresponde
a 28% do total produzido. Um levantamento feito pelo Instituto Escolhas neste
ano encontrou um dado ainda mais preocupante: metade do ouro comercializado
entre 2015 e 2020 têm indício de ilegalidade (229 toneladas).
Além das denúncias feitas a
autoridades no país, lideranças indígenas e comunitárias buscam mais atenção
internacional. Ao longo de uma semana, uma comitiva se encontrou com
parlamentares da União Europeia e representantes da indústria na tentativa de
obter apoio.
"Estamos denunciando a
participação deles em projetos que destroem nossos territórios e a vida de
muita gente, que deixam um lastro muito grande de problemas sociais e
ambientais. Nós estamos dizendo para eles que são responsáveis também pelo o
que está acontecendo no nosso território", resume Ana Laide Soares
Barbosa, do Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Batalha judicial pelo ouro
Entre os compromissos na
Suíça, uma reunião com a Konwave Gold Equity Fonds era aguardada. Em cima da
hora, no entanto, a reunião foi cancelada sem explicação, segundo a comitiva.
O fundo é um dos
investidores da mineradora canadense Belo Sun, que tenta há anos iniciar na
região da Volta Grande do Xingu, no Pará, a maior mina de ouro a céu aberto do
Brasil. Com capacidade de produção anual estimada em 5,8 toneladas, o
empreendimento teria uma barragem de rejeitos de 35 milhões de metros cúbicos
– mais que o dobro da capacidade da estrutura que rompeu em Brumadinho, em
Minas Gerais, na tragédia de 2019.
O projeto, que, segundo
ações do Ministério Público Federal (MPF), acumula diversas violações de
direitos humanos e ambientais, é alvo de uma batalha judicial há quase uma
década. Em seu último episódio, em 25 de abril deste ano, a mineradora sofreu
mais uma derrota: o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) manteve
suspenso o licenciamento ambiental.
Na prática, essa decisão
repete outra tomada em 2017 pelo próprio tribunal, que anulou a licença de
instalação concedia à Belo Sun pelo governo estadual do Pará. Para o desembargador
que analisa o caso, os impactos que o empreendimento teria sobre as comunidades
de pescadores, ribeirinhas, indígenas e assentados da reforma agrária na
Volta Grande do Xingu precisam ser estudados a fundo.
Desde a mais recente
decisão, as ações da empresa na bolsa de valores de Toronto despencaram mais de
50%.
"A ausência de consulta
e consentimento prévio, livre e informado no que tange às comunidades afetadas
é uma das ilegalidades da mina da Belo Sun. A legislação é clara nesse sentido,
a Convenção 169 se aplica aos povos indígenas e às demais comunidades
tradicionais", afirma Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos
indígenas do Brasil (Apib), sobre as ilegalidades cometidas pela mineradora
canadense.
Violência e contrato
irregular
Para quem vive e se opõe à
mineração na região, o risco é grande. "Muitas famílias são ameaçadas e
intimidadas. Neste momento, as ameaças contra uma família em específico, que
denuncia todas as irregularidades, aumentaram muito. Uma pessoa da família teve
que sair às pressas pra não ser morta e não pode voltar pra casa", detalha
Ana Laide Soares Barbosa, reforçando que o nome da vítima não pode ser
mencionado publicamente para sua proteção.
Um dossiê feito por
pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) revela sucessivas
irregularidades na aquisição de terras pela Belo Sun no Projeto de Assentamento
Ressaca, onde a empresa quer instalar sua mina de ouro. Segundo o documento, a
mineradora comprou lotes destinados ao assentamento do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) sob a alegação de que não haveria mais
moradores no local. Os pesquisadores apontaram, no entanto, que assentados
ocupavam as áreas.
O contrato de concessão de
uso firmado entre a mineradora e o Incra em novembro de 2021 e homologado pelo
Conselho Diretor do órgão fundiário em janeiro de 2022 "teve o propósito
de liberar terras de interesse estratégico para a extração intensiva de ouro em
quatro blocos de áreas incidentes no PA Ressaca e incrustadas no Cinturão Verde
Três Palmeiras", afirma o dossiê.
Uma ação civil pública
protocolada pela Defensoria Pública da União há poucos dias agora pede a
anulação do contrato.
"Todas as tratativas
mostram que as negociações do contrato foram muito problemáticas e irregulares.
Sabemos que a Belo Sun precisa desse contrato e, em última análise, do acesso
às terras públicas, para construir sua mina de ouro. E vai fazer de tudo para
consegui-lo", analisa Ana Carolina Alfinito, assessora jurídica da Amazon
Watch.
Procurada, a Belo Sun não
respondeu as perguntas enviadas pela DW que questionam as irregularidades do
contrato com o Incra, mas enviou o link de um blog da empresa com um
informações divulgadas à época da assinatura do acordo.
Belo Sun e Belo Monte
Para Barbosa, o funcionamento
da mina da Belo Sun decretaria a morte da Volta Grande do Xingu, região
paraense onde o rio faz uma grande curva. A mina ficaria a poucos quilômetros
da hidrelétrica de Belo Monte, operada pela Norte Energia desde 2016, e motivo
de diversos processos movidos pelo Ministério Público Federal (MPF) por não
cumprimento das condições impostas à sua construção.
Com autorização para desviar
até 80% da água desse trecho do rio, Belo Monte provocou uma redução drástica
de volume na Volta Grande, com redução de peixes disponíveis e de água para
cultivar a terra, afpontam documentos protocolados pelo MPF.
"É nesse contexto que
Belo Sun quer minerar. Seria o ecocídio da Volta Grande", diz Barbosa, do
Movimento Xingu Vivo para Sempre.
Nas conversas durante a viagem
à Europa, Maria Lena Munduruku também pediu que as empresas se manifestem
publicamente contra o Projeto de Lei (PL) 191, que quer liberar mineração e
outros empreendimentos em terras indígenas. A discussão sobre o PL no
Congresso, segundo ela, já incentiva o aumento das invasões de garimpeiros nos
territórios.
"A gente culpa o Estado
por isso. Eles apoiam esses crimes que estão sendo cometidos no nosso
território", diz Maria Lena sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro.
"Ouro não se come. O
que a gente come são peixes, frutas, vivemos do rio, das florestas. Nossos
filhos estão doentes pelo mercúrio, e as mulheres são as mais atingidas. A
gente quer viver em paz", afirma.
Nádia Pontes, DW
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