Nos primeiros meses da pandemia, uma rara boa notícia trazida junto com a Covid-19 foi a onda de solidariedade que varreu o país. A sociedade civil saiu na frente do poder público e tratou de socorrer a parcela mais necessitada da população, que, em tempos de isolamento social, foi submetida a privações ainda mais profundas do que as habituais. Quem tem fome, tem pressa, ensinou o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997). Na Ação da Cidadania, ONG fundada por ele, o sinal de alerta vem agora com a constatação de que as doações responsáveis pela alimentação de muitas famílias já não chegam nas mesmas velocidade e quantidade de meses atrás.
A bem-vinda
baixa nos números de contaminação e mortes, provocada pelo avanço na vacinação,
deve ser comemorada, mas, por outro lado, desmobilizou pessoas físicas e
empresas voluntárias. A inflação nas gôndolas dos mercados e a alta do gás
pioraram a situação. Como resultado dessa combinação, a Ação da Cidadania, que
chegou a arrecadar mais de R$ 10 milhões por mês este ano, agora recebe em
torno de R$ 300 mil, uma redução de mais de 90%.
Na outra
ponta, a quantidade de gente pedindo ajuda não para de crescer. No Rio,
entidades menores, em rede, tentam apoiar umas às outras, trocando alimentos e
outros donativos para suprir necessidades emergenciais. Outro fenômeno chama
atenção: pessoas que mudaram de lado, passaram de voluntários a candidatos a
algum tipo de auxílio.
Crislaine
Inglidis, de 32 anos, sempre participou ativamente do projeto Parque Vivo, que
funciona há 18 anos na Gávea com aulas de reforço escolar e outras atividades
para moradores do Parque da Cidade e da Rocinha, na Zona Sul. Com o desembarque
do coronavírus no Rio, perdeu o emprego de recepcionista em uma clínica médica,
que fechou. Ela e o filho, Juan, de 7 anos, que vivem no Parque da Cidade,
chegaram a depender integralmente de cestas básicas repassadas na entidade,
parceira da campanha Eu Ajudo Como Dá, criada na pandemia pela dentista Simone
Levy.
—Sempre fui
ativa como voluntária no projeto, ajudando muitas pessoas com o pouco que
tinha. Mas chegou uma hora em que eu precisei de ajuda também — conta
Crislaine, que ainda necessita de apoio, mas já começa a ver luz no fim do
túnel, na forma de alguns trabalhos extras.
Histórias
como a de Crislaine estão longe de serem incomuns. Diretor-executivo da Ação da
Cidadania, Rodrigo Kiko Afonso conta que a instituição, atuante junto a uma
rede de ONGs, movimentos e lideranças de todo o Brasil, agora convive também
com pessoas físicas batendo à porta. A próxima edição da tradicional Campanha
Natal sem Fome é sua esperança de ver as doações voltarem a crescer.
De janeiro a
agosto deste ano, a Ação da Cidadania conseguiu arrecadar cerca de R$ 100
milhões entre doações financeiras e de alimentos —um recorde na história da
fundação. Em setembro, no entanto, o montante mensal desabou.
—Há a crise
afetando as empresas e também a questão cultural das pessoas que só ajudam na
tragédia e não doam no drama. Quando as pessoas veem na capa do jornal Extra
famílias pegando ossos para comer, vão correndo doar. Mas não há uma cultura de
doação contínua. Fora que há gente que doava e agora está mais apertada. Os
servidores públicos do Rio eram grandes doadores, mas isso já não se vê mais
—observa Kiko.
Este ano,
por outro lado, a fundação aumentou de 2.100 para 3 mil as instituições
assistidas. Para o diretor, a crise econômica enfrentada no Rio desde 2016
também é um fator que agrava o quadro de miséria:
— A Covid
serviu para acelerar o processo. Sem o vírus, inevitavelmente daqui a um ou
dois anos estaríamos vivendo o cenário de agora.
mês sim, mês não
Moradora do
Morro Santo Amaro, no Catete, Maria Lúcia Alves da Silva, 63 anos, ainda precisa,
mas já não conta mais com as doações como antes. Ela tem a guarda de dois
netos, Leon, de 11, e Lívia, de 15, e se desdobra em faxinas para dar conta do
sustento dos jovens. Os três vivem num cômodo (que precisa urgente de obras
contra infiltrações) com dinheiro de um salário mínimo de pensão do marido de
dona Lúcia, falecido, mais R$ 500 mensais que a idosa recebe por seu trabalho
pesado:
—Aqui sou e
Deus —resume ela, que eventualmente é ajudada pelo Instituto Pastoral São Cosme
e Damião, parceiro da Ação da Cidadania:
— Eles
tentam ajudar, mas nem sempre dá. Tenho recebido a cesta um mês sim, outro não.
O movimento
União Rio se destacou na pandemia com a entrega de leitos e materiais
hospitalares, como EPIs. Depois, focou no auxílio a famílias em situação de
vulnerabilidade.
—Logo no
início a gente entendeu que a fome chegou antes do vírus nas comunidades.
Tivemos um boom de doações até julho de 2020. Em janeiro deste ano, as pessoas
não estavam mais doando cestas de alimentos. E isso casou com o fim do auxílio
emergencial do governo— lembra Daniella Raimundo, cofundadora do União Rio.
Segundo
Daniella, a fome nas casas dos mais pobres voltou com força em fevereiro, e o
assunto na mídia fez elevar de novo as doações:
— De abril a
julho deste ano distribuímos em torno de 30 mil cestas por mês. Mas aí as
ofertas voltaram a diminuir de novo. Em outubro, tínhamos só 300 cestas em
estoque.
Menos cestas básicas
Esse
movimento de ioiô nas ações de solidariedade é um tormento à parte. Na
comunidade do Batan, em Realengo, a Associação Beneficente Amigos pela
Caridade, que nos momentos mais críticos de restrições na pandemia entregava 2
mil cestas básicas por mês, atualmente não tem como atender nem as 160 famílias
cadastradas no seu projeto de reforço escolar. Há seis meses, começaram os
cortes na lista de beneficiados e, como resultado, dias com fila na porta, de
pessoas em desespero.
— Aqui no
Batan temos pessoas passando fome mesmo. E a alta dos alimentos só agrava essa
situação—relata Agnes Ribeiro, fundadora da associação.
Catadora de
garrafas PET e de latinhas na comunidade, Maria Aparecida Conceição, de 43
anos, tem duas filhas. Beatriz, de 12 anos, é inscrita no projeto de Agnes e,
por isso, recebe a cesta básica.
— Muita
coisa mudou. A gente ganhava muitas doações, e isso já não acontece mais. Agora
tem mais catadores no bairro, porque muitos moradores ficaram sem emprego. A
cesta básica é a base da nossa alimentação—revela Maria.
em busca de doadores
Também
atuante nos últimos tempos, a campanha Eu Ajudo Como Dá calcula em 60% a queda
nas doações de alimentos e dinheiro em comparação com os meses de acirramento
da pandemia: o movimento da sociedade civil, desde abril do ano passado, quando
teve início, ajudou mais de 20 mil pessoas e distribuiu cerca de 3 mil cestas
básicas. Hoje, por mês, a meta é entregar o kit de alimentos a algo entre 100 e
200 famílias de projetos ligados ao Instituto da Criança. A dentista Simone
Levy, criadora e líder da campanha, adianta que, no Natal, receberão ajuda 200
famílias. Para driblar a crise nas doações, ela vem investindo em campanhas até
em condomínios. Na ação “Meu condomínio ajuda como dá”, são instalados um
banner e uma caixa para receber os alimentos durante 30 dias. A mesma
iniciativa já foi levada a escolas.
—Temos o
tempo todo que fazer campanhas paralelas para que as pessoas vejam o nosso
projeto. Mesmo quem doa desde o início já está ajudando de forma mais modesta,
com valor menor ou menos alimentos —afirma Simone, que precisou criar uma
modalidade de cesta básica mais enxuta. —Com o aumento do valor dos alimentos,
uma cesta básica por R$ 70 reais passou a ser inviável. Então, agora para o
Natal, lançamos duas: uma no valor de R$ 50 e outra no de R$ 100. A menor não
tem proteína, muitas vezes não tem óleo e manteiga nem café. E o arroz, em vez
de ser no pacote de 5 kg, é de 2 kg.
No Parque
Vivo, famílias hoje dividem os alimentos de uma única cesta básica.
— E o pior é
que a situação das pessoas que perderam emprego na pandemia está mais grave
agora, ainda mais com a inflação forte — diz Andreia Martins, uma das
fundadoras do projeto.
Simone Levy,
que também atua com sua campanha junto à população em situação de rua, vê no
dia a dia das ações de distribuição de alimentos nas calçadas o sofrimento sentido
na pele por um número crescente de pessoas:
—Há famílias
inteiras nas ruas. E, além das que a gente sempre encontra nas nossas ações,
vêm surgindo sempre pessoas novas — diz ela, fazendo um apelo. — Tem várias
maneiras de ajudar. Uma delas, por exemplo, é divulgando projetos como o nosso.
Ludmilla de
Lima, O Globo
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