Hoje – com a pandemia ainda crescente provocada pelas múltiplas mutações do vírus da covid-19, a falta de vacinas e a descentralização de ações governamentais salvacionistas em prol da preservação da vida – a promoção de uma cultura de tolerância torna-se emergencial.
Se por um lado as pessoas não dialogam e não buscam
por justiça social, por outro os negacionistas da ciência valem-se das redes
sociais para instigar o linchamento virtual daqueles cidadãos que clamam pelo
direito à vida.
Neste Brasil multirracial – que há séculos convive com
o racismo (histórico e estrutural) e a discriminação contra negros, judeus,
indígenas, ciganos e dissidentes políticos – fica difícil falarmos em uma
política de intolerância zero, pois este “outro e velho” vírus tem raízes
seculares. Por questões de gênero, etnia, religião ou classe social, milhares
de cidadãos e cidadãs brasileiros, de qualquer faixa etária, são impedidos de
viver com um mínimo de dignidade. Milhares sequer dispõem de água potável para
beber e internet para conseguir estudar, enquanto outros clamam por oxigênio
para respirar artificialmente, item imprescindível para sobreviver nas UTIs –
Unidades de Tratamento Intensivo.
A situação de desequilíbrio estende-se para além da
área da saúde adentrando o campo da cultura e da ciência, cujos conhecimentos
são sufocados, negligenciados, negados. Hoje, além dos ataques virais
provocados pelo vírus mutante Delta, somos também atropelados por discursos
intolerantes disseminados por uma legião de racistas e negacionistas que
sustentam a polarização que, por si só, corrói a democracia.
Em situações de crise – como esta que o Brasil vive,
abalado pela ausência de diálogo e ações salvacionistas – constatamos que o
excesso de polarização compromete a vida e negligencia a morte. A história tem
demonstrado – principalmente no século XX, definido por Eric Hobsbawn como o
“século das catástrofes e das incertezas” – que os governos totalitários e autoritários,
muitos dos quais genocidas, se alimentaram das visões discordantes para
implementar a violência e políticas de exclusão idealizadas para acuar,
perseguir, isolar e, até mesmo, exterminar aqueles que não se encaixam no
modelo idealizado como “normal”.
Sob este prisma – da intolerância –
pergunto:
• como conhecer e legislar sobre a complexidade das
relações humanas em situações de conflito?
• como transformar a polarização em ingrediente
positivo, de respeito às distintas visões de mundo como pregam os regimes
democráticos?
• como impedir que o povo e a democracia morram
sufocados pela falta de oxigênio e pela ignorância dos nossos governantes?
Promover a cultura da tolerância exige muito mais que
uma iniciativa individual ou de uma única instituição. Diz respeito à
preservação de um bem coletivo: a liberdade de “ser” e de “estar-no-mundo”. Daí
a importância da educação em Direitos Humanos, que, segundo Maria Victória
Benevides, é de “natureza permanente, continuada e global, voltada para a mudança
e visando à inculcação de valores… não deve ser apenas instrução, meramente
transmissora de conhecimentos”. A meu ver, deve formar seres mais humanos.
Portanto, precisamos investir nas mudanças de mentalidade, que – tanto no
Brasil e outros tantos países da Europa e Américas – se faz delineada por
preconceitos seculares decorrentes de fatores históricos.
É nesta direção, por exemplo, que os testemunhos dos
sobreviventes do Holocausto e das ditaduras (militares ou civis, que ainda
abalam este século XXI) podem contribuir para o bem-estar da humanidade pois
exigem uma compreensão histórica de direitos humanos, que, por sua vez, nos
remete ao reconhecimento do direito à vida. Nestes tempos sombrios de pandemia,
novos cenários históricos se estabelecem, novos fantasmas ou inimigos-objetivos
(como muito bem definiu Hannah Arendt) emergem, novos embates e desafios
surgem. Novas gerações nascem e as lições do passado recaem também sobre elas
exigindo um exercício permanente de memória, não necessariamente de via única
quanto a suas interpretações. Haverá bifurcações e encruzilhadas, e a educação,
nesse sentido, é um instrumento de transformação.
Estes tempos de isolamento social forçado pela
pandemia nos instigam a retomar o conceito de tolerância que, ainda que dúbio,
deve ser interpretado como uma virtude. Conceito que, se não for bem
compreendido no contexto das relações humanas, pode ser acionado a um
des(serviço) da sociedade que pretende salvar vidas e alcançar a democracia
plena, ainda que essa plenitude seja utópica. O fato de a democracia liberal
prever a liberdade de escolha não quer dizer que temos total conhecimento da
verdade e anulação das práticas intolerantes. Ao contrário, abre espaço para as
novas formulações racistas e para o uso sistemático de fake news que distorcem
a realidade valendo-se de falsas imagens e falsas palavras. Não devemos
confundir liberdade de expressão (um dos fundamentos da democracia) com
liberdade de agressão ao Outro. Aliás, esta é “a diferença entre a vida
selvagem e a vida civilizada”, como enfatizou o advogado Celso Mori.
Ao defender o direito à liberdade de expressão sem
limites, os movimentos racistas entram pelas fissuras da democracia fragilizada
e proliferam seus discursos de ódio, assim como problematizou Pierre-André
Taguieff (1987) em sua obra La Force du Préjugé. Essai sur le Racisme et ses
Doubles. Com isso, quero dizer que racistas fanáticos não são personagens
exclusivos dos estados totalitários e nem de um passado tão longínquo. Ódio e
violência sem limites funcionam como impulsos para a ação de indivíduos que
ignoram o diálogo, a ética e o significado da dignidade humana. Revisitando o
nosso passado e avaliando a atual crise humanitária vivenciada pelo povo
brasileiro, pergunto: “aonde esse ser humano irresponsável pode chegar?”.
Avaliando a retórico dos discursos totalitários e
populistas endossados tanto por grupos de direita como de esquerda, e
principalmente após os anos de 1980, percebemos que houve um deslocamento do
eixo de argumentação: de raça para etnia/cultura, da ideia de desigualdade para
o apelo ao direito à diferença. Enfim, as metáforas biológicas e zoológicas
foram substituídas por vocábulos da cultura, religião, tradição e imaginários
conjugados. Assim, para melhor compreendermos como se processam certas mudanças
mentais ou como se dá a construção do fanatismo, precisamos estar atentos às
persistências e ambiguidades dos discursos.
Infelizmente não conseguimos adentrar no século XXI
ilesos de fobias construídas pelos inimigos da democracia e negacionistas da
ciência. Valendo-se de falsas ideias e levando à configuração de perigos e
mundos imaginários, os novos racistas investem na visão falseada da realidade
que ainda se alimenta de mitos: o mito da conspiração judaico-comunista, o mito
da democracia racial, o mito do perigo estrangeiro, o mito do indígena
indolente e do negro inferior por sua “raça”. Lembro aqui que tais afirmativas
se faziam fundamentadas em uma pseudociência que ganhou seguidores a partir da
segunda metade do século XIX até o final da Segunda Guerra Mundial. Nada mais
do que um de pseudocientistas que sustentaram a teoria das raças superiores
versus inferiores, apresentando-se como especialistas com alto padrão de
conhecimento, apesar de não disporem da aplicação de métodos científicos
confiáveis. Parece-me que hoje eles voltaram sob novas roupagens.
Favorecidos pelos novos meios de comunicação e, ao
mesmo tempo, pela ignorância que persiste sobre o nosso passado histórico, os
hackers invasores (racistas, xenófobos e os pseudocientistas) ganham, cada vez
mais, espaço no mundo globalizado. Uns agem por conta própria; outros,
induzidos por um movimento e/ou partido político; outros falam em “nome da fé”
ou de um “gabinete do ódio”.
Fundamentados na “doutrina da salvação nacional” [sic]
e alimentados por distintos mitos políticos, os populistas, os racistas e os
pseudocientistas têm como referência a sociedade do “caos e da desordem”, a
serem combatidos “por eles”, salvadores da pátria. Ao criticarem a realidade em
que vivem, a definem como imperfeita, (re)desenhando “novas paisagens” para um
mundo novo que não precisa do diálogo, nem da ciência, nem da cultura. A superposição
destes argumentos gera situações de conflitos e dificulta as possibilidades de
convivência pacífica e de tolerância. E, em todas as situações, o racismo, a
xenofobia, o nacionalismo exacerbado e a pseudociência se prestam como
instrumento de poder e coação. O fato é que, neste século XXI, a intolerância
retornou com novas roupagens e fortalecida pelas mesmas mentiras, com a
diferença de que, agora, elas circulam pela internet e pelos nossos celulares.
Daí a importância de investirmos no campo da educação em prol de uma cultura da
tolerância (como uma virtude), postura geradora do diálogo, da convivência e do
respeito à diversidade.
Maria Luiza Tucci Carneiro, Jornal da
USP
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