A Lei nº 14.210/2021 acrescentou um importante tema ao processo administrativo brasileiro: a possibilidade de haver uma decisão coordenada na Administração Pública federal. O projeto de lei, de autoria do senador Anastasia, tem como inspiração histórica a Lei italiana nº 241/99, que havia instituído a conferenza di servizi (ou seja, a conferência de serviços). Isto é, trata-se de uma ferramenta prevista numa lei que tem mais de 30 anos no solo italiano e que também está, de forma similar, estabelecida no Código de Procedimento Administrativo português desde 2015 (por meio da chamada conferência procedimental). Mas, afinal, o que essas expressões representam?
Vejam
por que é interessante e a razão pela qual vale a pena nos atermos a isso. É
que para determinadas situações interorgânicas, ou seja, nas situações que
envolvam mais de um órgão ou entidade da Administração federal, e nas quais
exista a importância e a necessidade de uma harmonização de compreensões a respeito
de determinados assuntos, ao invés de haver uma contraposição, ou,
eventualmente, um conflito de compreensões, a Lei 14.210/2021 autoriza que as
autoridades administrativas "sentem-se à mesma mesa" e desenvolvam
uma espécie de negociação multilateral, a qual permitirá a edição de um ato
administrativo, uma decisão administrativa que envolverá todos os órgãos
correlacionados nessa decisão coordenada e que gerará efeitos multipartes.
Vejam
como é importante a compreensão desse tema para a questão da consensualidade e
do desenvolvimento de soluções negociadas que disciplinem o funcionamento da
Administração Pública e que, inexoravelmente, incidirão sobre os direitos e
deveres dos administrados.
Imaginem
uma empresa que conte com vários departamentos, com vários órgãos, com várias
pessoas, e que precisem, entre si, harmonizar o funcionamento dessa empresa.
Claro que é perfeitamente possível, em tese, que o diretor ou presidente da
empresa baixe uma regra na qual todos se conformem. Alguns vão se regozijar com
essa regra e outros vão ficar contrariados e ter dificuldade em executá-la. E,
eventualmente, o diretor ou presidente não deterá todas as informações
necessárias e suficientes para saber as razões pela qual um dos seus
departamentos entende válida aquela compreensão e outro ou outros departamentos
reputam que aquela forma de resolver o problema não é adequada. Logo, em
empresas já se consolidou que existe uma necessidade de se incorporarem
processos de negociação cotidiano interno. A empresa tem um interesse comum: o
sucesso dela! E os departamentos têm, muitas vezes, interesses antagônicos e,
por isso, podem surgir conflitos entre si. E é muito difícil negociar um
conflito depois que ele já é posto.
Por
isso, é muito importante que haja processos de negociações na empresa,
processos de negociações multidepartamental, os quais implementem uma decisão
harmônica, que nem todos vão necessariamente concordar com o seu conteúdo, mas
irão gostar de ter participado da solução final. Essa é a lógica que está por
detrás da Lei nº 14210/2021.
Analogicamente
falando, nós podemos imaginar que os conflitos interorgânicos da Administração
federal até podem ser resolvidos por meio de portarias, decretos e outros atos
normativos que, top-down (de cima para baixo), instituam como os órgãos,
entidades e agentes devem se comportar. Mas isso é muito custoso, demora muito,
atiça conflitos e contraposições; gera pessoas, muitas vezes, insatisfeitas com
as subsunções "de cima para baixo".
Diante
disso, afigura-se muito importante que nós nos apercebamos do significado, para
toda a Administração Pública brasileira, da Lei nº 14.210. Ela preceitua o que
vem a ser a decisão coordenada no âmbito da administração pública federal, senão
vejamos:
"§1º.
Para os fins desta lei, considera-se decisão coordenada a instância de natureza
interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a
finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação
concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis
pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a
compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação
pertinente" (Incluído pela Lei nº 14.210, de 2021).
Nesse
sentido, a decisão coordenada é uma forma de atuação cooperativa, negocial, de
articulação administrativa por parte da Administração Pública federal. Por meio
da Lei nº 14.210/2021, os órgãos e entidades são incentivados a desenvolver
esforços colaborativos, a fim de negociar soluções multipartes, inclusive, com
incidência unitária em seus polos ativos - isto é, àqueles sujeitos
administrativos que se digladiam, mas que podem se resolver e a quem serão
imputados os atos -, e também seus polos passivos, as pessoas físicas ou
jurídicas de direito privado que experimentarão direta ou indiretamente os
efeitos do ato.
Conforme
já alinhavado neste texto, o Código de Procedimento Administrativo português,
de 2015, preceitua em seu artigo 77 que as conferências procedimentais se
destinam ao exercício em comum ou conjugado das competências de diversos órgãos
da Administração Pública, no sentido de promover a eficiência, a economicidade
e a celeridade da atividade administrativa. Essa é a lógica da Lei nº
14.210/2021. Quando eu falo em decisão coordenada, eu falo em eficiência, em
economicidade, em celeridade da atividade administrativa e, mais do que isso,
eu falo em segurança jurídica.
E
talvez a conclusão mais importante esteja justamente na natureza e no regime
jurídico do ato administrativo que resulta desse processo decisório apartado,
acessório e sui generis. Haverá essa integração das autoridades, que resultará
na prática de um ato unitário, e não de um feixe de atos, mas de conteúdo
complexo, praticado quando for positivo, ou seja, quando houver uma solução do
pseudoconflito. Vejamos, portanto, como isso se dá no caso brasileiro.
A
possibilidade de se instalar o processo de decisão coordenada pode se dar desde
que a matéria seja relevante (49-A, I) e que essa importância demande
articulação, ou se, nos termos do 49, II, houver discordância que prejudique a
celeridade do processo decisório.
Em
contrapartida, ele é proibido, nos termos do artigo 49, A, §6º, I, II e III, em
processos administrativos que envolvam: a) licitação; b) poder sancionador; ou
c) em que estejam envolvidas autoridades de poderes distintos. Por exemplo, não
pode haver uma decisão coordenada entre um órgão ou entidade da administração
pública federal e o Tribunal de Contas da União (ou um membro/entidade do Poder
Judiciário).
Dessa
ordem de processo decisório deverão participar, coletivamente, não só os órgãos
e entidades imediatamente envolvidos, mas é possível também que se envolvam
aqueles interessados que atendam os requisitos do artigo 9º da Lei nº 9784/99,
dispositivo que alarga a possibilidade de participação. Todos os órgãos e
entidades deverão, nos termos do artigo 49-E, apresentar um documento
específico sobre o tema, atinente à respectiva competência, a fim de subsidiar
os trabalhos e integrar o processo de decisão coordenada. Isso instalará um
processo de deliberação colegiada, que culminará, em prazo razoável, em ata a
ser assinada por todos os órgãos e entidades participantes. Nessa ata deverá
constar, além do relatório e síntese, o registro das orientações, das
diretrizes, das soluções ou das propostas de atos relativos ao objeto da
convocação.
Em
segundo lugar, deverá constar na ata o posicionamento expresso dos
participantes para subsidiar futura atuação governamental em matéria idêntica
ou similar. Em terceiro lugar, deverá constar do relatório a decisão de cada
órgão ou entidade relativa à matéria sujeita à sua competência. Haverá,
portanto, uma multiplicidade de decisões (imputadas aos respectivos órgãos).
Isto é, do processo de decisão cooperativa, decisão coordenada, haverá uma
decisão positiva, coletiva, com dois níveis de normatividade: serão descritos
nessa ata os temas gerais, que promovam uniformização superior às partes
envolvidas; e os temas especiais, relativos à competência privativa de cada
órgão ou entidade. Existirá, portanto, um ato administrativo plurissubjetivo e
complexo, eis que emana de várias pessoas e pode conter múltiplos assuntos,
todos enfeixados e uniformizados numa só ata/decisão: a decisão coordenada.
Como
se constata, portanto, a decisão coordenada tem a finalidade de permitir a
participação, a integração de todos os legitimados e interessados na futura
decisão administrativa, a fim de não só acelerar, gerar vantagens de
eficiência, mas, principalmente, a fim de conferir unidade a processos
decisórios complexos, que digam respeito a mais de um órgão ou entidade da
Administração Pública federal. Isso, sem dúvida alguma, é muito bom, porque
incrementa o diálogo, incrementa a participação democrática, o consensualismo e
a confiança na formação dos atos administrativos. E, por outro lado, o que
também é igualmente importante, diminui os conflitos e os respectivos custos de
transação, harmonizando e conferindo estabilidade a perspectivas e soluções
consensuais.
É um
novo Direito Administrativo. É um Direito Administrativo da confiança. Do
acolhimento. Da consensualidade. Por isso, devemos saudar a Lei nº 14.210 e
essa nova disposição, esse novo capítulo da Lei nº 9784/99.
Flávio
Germano de Sena Teixeira Júnior é advogado, assessor especial da Secretaria de
Estado de Projetos Especiais do Governo do Distrito Federal, mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife - UFPE.
Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior, Revista Consultor Jurídico
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