Faltamos aula para te ensinar uma lição', diz o cartaz exibido em um dos protestos do movimento Fridays for Future |
Quando o filósofo australiano Roman Krznaric fala da América Latina,
seu contentamento é evidente.
E embora tenha visitado vários países latinos ao longo
dos anos, a convivência com povos indígenas na Guatemala o marcou profundamente.
Foi lá que teve "uma visão completamente diferente
da vida", em grande parte graças ao "incrível vínculo que eles têm
com a terra".
"E acredito que a conexão com o mundo vivo que você
encontra na cultura maia é realmente valiosa em meio à cultura de consumo
hiperurbana de hoje."
A ideia de que "precisamos nos reconectar com a
terra e com os longos ciclos do tempo" o cativou.
Em seu livro The Good Ancestor ("O bom
ancestral", em tradução livre), Krznaric, que deu aula de sociologia e
política na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, denuncia que vivemos na
"era da tirania do agora", que tem um "curto-prazismo
frenético" na raiz das crises que estamos enfrentando.
Ele acredita, no entanto, que temos "habilidades
exclusivamente humanas" para combatê-lo. Ele cita, por exemplo, o
"pensamento catedral", o que ele chama de "rebeldes do
tempo" e movimentos inspiradores ao redor do mundo, como o "design
futuro" no Japão.
A seguir, confira um trecho da entrevista que Krznaric
concedeu à BBC News Mundo.
BBC
News Mundo - Por que você acha que o curto-prazismo se tornou uma constante na
forma como vivemos?
Roman Krznaric - Hoje, quando as pessoas falam sobre
"curto-prazismo", imediatamente pensamos que nossos telefones
celulares são o problema. Nós os checamos 110 vezes por dia, estamos imersos em
uma distração digital.
Mas as raízes são muito mais antigas. Na Europa, remonta
ao relógio medieval, quando o tempo começou a ser medido e dividido em pequenas
frações.
No século 14, os primeiros relógios mediam cada hora. No
século 18, eles já mediam cada minuto, e no século 19, ganharam o ponteiro dos
segundos. E isso fez o tempo acelerar. Agora temos negociações de ações feitas
em nanossegundos.
Uma das razões pelas quais o curto-prazismo é um grande
problema agora é porque percebemos que no século 21 temos muitos desafios de
longo prazo: há as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade; novas
tecnologias como inteligência artificial e o bioterrorismo, por exemplo.
Há muitas questões que requerem pensar no longo prazo, e
a pandemia é uma delas.
Sabemos que os países que criaram planos para a pandemia
de longo prazo lidaram com o vírus de maneira mais eficaz do que aqueles que
não criaram, por exemplo, os Estados Unidos e o Brasil.
Essa é uma das razões pelas quais sabemos que o
planejamento de longo prazo é mais importante do que nunca.
Para mim, tem sido interessante ver o que tem sido
comentado em relação a meu novo livro: quantas pessoas da área médica ou de
saúde pública disseram que não há planejamento de longo prazo suficiente nesse
setor, seja no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em
inglês) ou nos sistemas de saúde de outros países.
Acho que a pandemia está nos fazendo ver problemas de
curto prazo, mas precisamos criar resiliência em nossos sistemas de saúde para
planejar nossa resposta a pandemias que possam surgir.
E já estamos começando a conseguir que cada vez mais
governos percebam que precisam disso, não apenas em resposta a algo como a
covid-19, mas em termos de planejamento de longo prazo com outras questões,
como a crise climática.
BBC
News Mundo - Em seu livro, você fala sobre a importância do "pensamento
catedral". Em que consiste e como pode ser desenvolvido?
Krznaric - O pensamento catedral é a capacidade de
conceber e planejar projetos com um horizonte muito amplo, talvez décadas ou
séculos à frente e, claro, é baseado na ideia de catedrais medievais. Na
Europa, as pessoas estavam começando a construí-las e sabiam que não as veriam
concluídas no decorrer de suas vidas.
Se trata de fazer algo com uma visão de muito longo
prazo. Os seres humanos foram muito bons nesse tipo de pensamento, muito mais
do que imaginamos.
Essa forma de pensar possibilitou construir a Grande
Muralha da China ou viajar ao espaço, construir Machu Picchu ou Brasília: não
era atuar apenas no aqui e agora.
Acho que é uma habilidade que podemos desenvolver. As
empresas podem fazer isso para criar planos de sustentabilidade de 100 anos. Na
verdade, muitas já estão fazendo isso. Os governos também podem fazer o mesmo.
Vou te dar um exemplo muito específico: você se lembra do
acidente nuclear no Japão após o terremoto e tsunami de 2011?
A usina de Fukushima entrou em colapso e causou um
desastre, mas havia outra usina chamada Onagawa que foi atingida com ainda mais
força pelo tsunami, mas sobreviveu porque o engenheiro que a projetou a
construiu cerca de 30 metros mais alta do que realmente era necessário.
Ele sabia que poderia haver um tsunami, embora na época
talvez a probabilidade não fosse muito alta. Esse é um pensamento de longo
prazo, é o tipo de pensamento que precisamos.
Algumas cidades europeias, como Amsterdã, planejam não
ter carros movidos a combustível fóssil em suas ruas após 2030. Elas querem uma
economia 100% circular a partir de 2050.
BBC
News Mundo - Quais são as implicações do "curtoprazismo", não apenas
sob uma perspectiva pessoal, mas para a democracia como sistema?
Krznaric - Acredito que existe um problema terrível com a
democracia e que não damos direitos ou uma voz representativa às futuras
gerações.
Sabemos que nossos políticos mal conseguem ver além da
próxima eleição ou da última manchete. Mas também sabemos que nossas ações
estão tendo consequências para todas as futuras gerações.
Me dei conta disso em parte porque nos anos 1990
trabalhei como cientista político e, embora fosse aparentemente um especialista
em democracia, nunca me ocorreu que estávamos privando de direitos essas
gerações, às quais não demos espaço, mesmo quando foram afetadas por nossas
ações.
Existem alguns movimentos realmente inspiradores em
diferentes partes do mundo que estão tentando abrir espaço para as próximas
gerações.
No meu livro The Good Ancestor, eu escrevi sobre um
movimento no Japão chamado "design futuro", que é baseado em uma
ideia praticada por comunidades aborígenes americanas, e que consiste em que no
processo de tomada de decisão seja considerado o impacto de uma medida nas
próximas sete gerações.
No Japão, os habitantes de uma determinada localidade são
convidados a discutir e traçar planos para aquele lugar.
Eles geralmente são divididos em dois grupos: a um deles
é dito que eles são os moradores do presente, e à outra metade é dito que eles
são os habitantes que viverão lá a partir do ano 2060.
Um dos resultados surpreendentes é que os residentes que
se imaginam a partir de 2060 apresentam planos muito mais radicais e
transformadores para suas cidades, seja sobre saúde, investimentos ou ações
contra as mudanças climáticas.
Trata-se de um movimento popular que se espalhou por todo
o país. Muitas cidades progressistas em outras partes do mundo podem adotar
esse mecanismo para revitalizar a democracia, para reinventá-la, para dar voz
às gerações futuras usando a imaginação.
BBC
News Mundo - O que você descobriu ao escrever o livro The Good Ancestor?
Krznaric - O que realmente me surpreendeu é que comecei a
ver que existe um movimento do que chamo de rebeldes do tempo em diferentes
partes do mundo. São pessoas que se dedicam ao pensamento de longo prazo e à
justiça intergeracional.
Eu não sabia que havia tantos projetos incríveis ao redor
do mundo. Por exemplo, na Escócia, a artista Katie Paterson criou um projeto de
arte chamado Future Library, em que a cada ano, durante 100 anos, um autor famoso
doa um livro (inédito) que permanecerá intocado até o ano 2114.
Quando este ano chegar, os 100 livros serão impressos em
papel feito a partir de mil árvores que foram plantadas em uma floresta nos
arredores de Oslo. É como um presente para o futuro.
Há também o silo global de sementes no Círculo Polar
Ártico, que busca armazenar milhões de sementes dentro de um bunker de rocha
indestrutível, projetado para durar 1.000 anos. O objetivo é preservar a
biodiversidade vegetal do planeta.
E há outros movimentos como o Fridays for Future
("Sextas-feiras pelo futuro"). Se trata de pensar no longo prazo,
sobre — de certa forma — ser um bom ancestral.
Tudo isso me dá uma sensação de esperança. Embora eu
saiba que estamos caminhando para três ou quatro graus de aquecimento global e
entre um e dois metros de elevação do nível do mar até 2100, também vejo esses
movimentos incríveis de desenvolvimento e outros de ordem legal que buscam dar
direitos às pessoas do futuro.
BBC
News Mundo - Algumas pessoas veem o futuro como algo muito distante, 100 anos é
muito tempo, e o que acontecer não nos afetará. Você disse que "tratamos o
futuro como um posto avançado colonial distante". O que você quer dizer
com isso?
Krznaric - Acho que colonizamos o futuro. A humanidade,
principalmente nos países ricos, trata o futuro como um posto colonial avançado
distante, onde podemos despejar detritos livremente (e causar) danos ecológicos
e riscos tecnológicos como se não tivesse ninguém lá.
É um pouco como quando a Grã-Bretanha colonizou a
Austrália nos séculos 18 e 19. Eles se basearam em uma doutrina legal agora
conhecida como terra nelius, terra de ninguém. E se comportaram como se não
existissem indígenas. Claro que havia, e é assim que tratamos o futuro, como se
não houvesse ninguém lá.
Mas há 7,7 bilhões de pessoas vivas hoje. Somente nos
próximos dois séculos, dezenas de bilhões de pessoas nascerão. E como elas vão
nos julgar? Entre elas, estarão nossos netos e os netos deles, seus amigos e
suas comunidades.
Como vão olhar para nós pelo que fizemos ou deixamos de
fazer quando tivemos oportunidade?
Claro que acho que na vida cotidiana esse futuro pode
parecer muito distante. Não podemos sentir o aumento do nível do mar ou da
temperatura em 2100, mas podemos usar nossa imaginação. Isso é extraordinário.
Você e eu podemos sentar e imaginar nossos filhos. Por
exemplo, pense no aniversário de 90 anos do seu filho. Ele está cercado pela
família e amigos e olha pela janela. Que tipo de mundo existe lá fora? Talvez
seja uma bela utopia ou um mundo em chamas.
É um experimento mental. O que diria de mim a seus amigos
e familiares, o que diria sobre seu ancestral falecido há tanto tempo, sobre o
legado que deixei para ele?
E, ao fazer esse exercício, me dou conta, e esta é a
parte realmente importante, de que não estão sozinhos. Vejo que fazem parte de
uma comunidade, mas também da rede do mundo vivente: do ar que respiram, da
comida que está disponível, da água que bebem.
Então, se me preocupo com a vida dele, preciso me
preocupar com toda a vida.
Acho que muitas pessoas podem usar esse tipo de conexão
familiar com o futuro como uma ponte para algo muito mais universal. Você sente
que deve cuidar não apenas de seu filho e dos filhos deles, mas também de todas
as crianças e do mundo do qual farão parte.
Esse experimento utiliza uma parte única do cérebro
humano, que é pensar no longo prazo. A maioria das criaturas, dos animais, não
têm essa capacidade de pensar tão à frente. Somos incríveis por poder fazer
isso e, embora seja algo extraordinário, não a usamos com muita frequência.
Fazer isso pode nos motivar a agir.
Nossa tecnologia, por exemplo, é desenvolvida para ativar
nosso cérebro de curto prazo. Eu chamo de cérebro de marshmallow, aquele que
nos leva a apertar o botão "compre agora".
BBC
News Mundo - Estamos prestes a nos despedir de um ano marcado por uma pandemia
que teve efeitos trágicos para milhões de pessoas. Como 2020 será lembrado nos
próximos anos?
Krznaric - Acho que depende da perspectiva pela qual você
olha para isso. Avancemos para 2120, vamos nos lembrar deste ano? Talvez não. É
possível que não lembremos dele por causa da pandemia, mas como mais um ano em
que não tomamos medidas contra as mudanças climáticas.
Mais um ano em que não agimos para evitar a perda da
biodiversidade, pode ser que a pandemia passe a ser vista como um pequeno
problema, apenas um momento em que olhamos para trás na história.
Mas, é claro, também acredito que pode ter nos mostrado
onde falhamos e o que é possível.
Temos visto fracassos terríveis de alguns governos ao
fazer frente à pandemia, mas, ao mesmo tempo, vimos países que realmente
enfrentaram esse desafio de maneira eficaz.
Embora a covid-19 tenha muito a ver com o imediato, com o
presente, com uma família que perdeu um ente querido ou um governo lidando com
o desemprego em massa, para mim, a covid-19 é um momento de olhar para trás e
ver se aprendemos algo sobre a importância de pensar no longo prazo.
É perceber que esta não é a única pandemia que vamos
enfrentar. Haverá outras depois dessa, sobretudo em um mundo mais globalizado.
Portanto, devemos aprender a nos tornar pensadores de
catedrais. Devemos começar a planejar no longo prazo. Se não conseguirmos
aprender esta lição de 2020, não teremos aprendido quase nada, e isso será uma
tragédia.
Mas se pudermos reconhecer que devemos ser bons
ancestrais, que não podemos simplesmente responder ao presente, que devemos
pensar no longo prazo, seja em relação à ecologia do planeta, aos riscos
tecnológicos ou à próxima pandemia que pode estar no horizonte. Se fizermos
isso, podemos nos chamar de bons ancestrais, os ancestrais que as gerações
futuras merecem.
BBC
News Mundo - O que a pandemia revelou sobre nós mesmos?
Krznaric - Acho que o que ela criou é uma revolução de
empatia.
Na minha rua, por exemplo, normalmente mal nos falávamos,
mas assim que eclodiu a covid-19, de repente criamos um grupo de WhatsApp com
mais de 100 domicílios, e estamos entregando comida para pessoas vulneráveis ou
idosos que não
podem sair, compartilhamos receitas de pão e
outros tipos de coisas.
E acho que já vimos isso em todo o mundo: as comunidades
se uniram para ajudar umas às outras.
Os seres humanos são muito bons em crises. Vamos além de
simplesmente sentir medo. Não nos limitamos a fechar a porta para cuidar de nós
mesmos.
Como aconteceu depois do 11 de setembro e durante o
furacão Katrina, as comunidades costumam trabalhar muito bem juntas, e acho que
o que a covid-19 mostrou de muitas maneiras, é um lado muito positivo da nossa
capacidade de cooperar, confiar e mostrar empatia.
Junto a todas as tragédias, a covid-19 nos disse algo
sobre nosso "eu" social, que somos homo empathicus (empáticos), e não
apenas homo self-centricus (autocentrados).
Somos o mamífero mais sociável que existe, e é isso que
estamos vendo.
Claro, ainda somos muito egocêntricos, gostamos de
apertar o botão "compre agora" e ficar paralisados no
curto prazo. Mas a covid-19 suscitou algo de bom entre os seres humanos,
sobretudo no nível comunitário.
BBC
News Mundo - Também vimos pessoas que por algum motivo não querem usar máscara
e que dizem que é seu direito não usar. Outras que participam de manifestações
para protestar contra as medidas de confinamento porque dizem que ameaçam sua
liberdade.
Krznaric - Sim, acho que isso também nos diz algo sobre a
natureza humana. É o que o filósofo escocês David Hume dizia no século 18: os
seres humanos são tanto pombas quanto cobras. Temos nossos próprios interesses,
mas também somos cooperativos.
Haverá pessoas que não querem usar máscara, que não
querem fazer parte desse movimento comunitário para o bem público.
E isso, em parte, fala sobre como nós, seres humanos,
somos. Fala dos valores que herdamos do século 20, os valores do individualismo
e uma ênfase excessiva em si mesmo, e nem sempre de valores coletivos.
Mas claro, você tem razão, esse outro lado também veio à
tona porque há lados mais sombrios da natureza humana. Somos seres complexos.
Não sou utópico sobre o que é o ser humano, mas também
acho que a solidariedade prestada é muito notável.
Que tem gente que não quer usar máscara, não me
surpreende, o que me surpreende no bom sentido é essa explosão, por exemplo, de
todos os grupos de WhatsApp que se formaram para ajudar, da cooperação que tem
ocorrido entre as pessoas.
Por
Margarita Rodríguez, na BBC
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