A calamidade econômica
fez do tema o assunto do dia. É o momento de tomar medidas que acabem de vez
com a visão de que esse mal não tem cura
A pandemia que
desligou o motor do planeta durante meses proporcionou uma visão sem precedente
da chaga da desigualdade, doença social com a qual a humanidade convive, em
vergonhosa desatenção, há séculos. Cada vez mais, no entanto, pesquisas e
estudos ressaltam que a disparidade de renda não é só um problema dos pobres, a
quem um dia, não se sabe quando, a prosperidade geral do país vai beneficiar.
Ela é, isso sim, um freio para o crescimento, ao espremer a ampliação da classe
média entre bilionários, de um lado, e miseráveis, do outro, e impedir uma
multidão de acessar os bens e serviços que movem o progresso. Conseguir que as
distorções retrocedam é tarefa difícil, que não se resolve com uma bala de
prata, mas necessária. E o momento, por mais paradoxal que pareça, pode ser
apropriado. Na história da humanidade, são justamente as sociedades no fundo do
poço econômico, muitas vezes em decorrência de uma calamidade, que costumam ser
bem-sucedidas nesse esforço.
O maior salto na distribuição igualitária de renda nos tempos modernos ocorreu
exatamente quando a II Guerra Mundial acabou e o mundo, sem outra saída,
recolheu de quem tinha para reerguer quem não tinha. Agora, diante da
necessidade de recompor a terra arrasada pelo novo coronavírus, enxerga-se nova
chance de arrumar a casa e reduzir a distância entre quem vive dentro das
paredes simétricas e coloridas que enfeitam Copenhague, a capital da Dinamarca,
e quem se aperta em um único cômodo nos casebres da favela Santa Marta, no Rio
de Janeiro. “A crise decorrente da pandemia reforçou a necessidade urgente de
criarmos estratégias para que o capital seja injetado em projetos que reduzam a
desigualdade social”, diz o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco
Central.
Firme e forte nas sociedades desde os primórdios da civilização, a
desigualdade, de tão enraizada, ganhou um escaninho determinista, de mal sem
cura. “Cada sociedade, a seu tempo, desenvolveu um conjunto de valores para
justificar as distorções”, disse a VEJA o economista francês Thomas Piketty,
autor do best-seller O Capital no Século XXI, que acaba de lançar Capital e
Ideologia (Ed. Intrínseca). Para Piketty (veja aqui a entrevista), “a igualdade
total é indesejável e impossível de ser alcançada. Mas não há o que justifique
o cenário atual, com tanta gente excluída da economia, da educação e da saúde”.
Polêmico, encarado com altíssimas reservas pela ala dos economistas mais
liberais, o escritor francês aponta, ao longo de portentosas 1?056 páginas, o
que vê como soluções para o problema, a começar por uma acachapante sacudida no
sistema de tributação. A fórmula dele não é a única, nem a mais debatida,
embora impostos estejam na alma das propostas de redistribuição de renda, entre
especialistas de esquerda e de direita.
No Brasil, que não cresce há seis anos e ocupa a desonrosa posição de sétimo
país mais desigual do mundo, o Congresso discute dois projetos de reforma tributária,
enquanto aguarda um prometido terceiro, o do ministro da Economia, Paulo
Guedes, que, antes mesmo de ser apresentado, já foi costurado e descosturado
várias vezes. Guedes defende a criação de um clássico da distribuição de
recursos, o chamado “imposto negativo”: o Estado passaria a depositar o
equivalente a 20% do rendimento mensal do trabalhador de baixa renda em uma
conta a ser usada em sua aposentadoria. Agora, voltou também a acenar com uma
taxa sobre transações financeiras nos moldes da CPMF. Trata-se de um imposto
polêmico, de péssima memória para os brasileiros, mas é um dos mais justos em
termos de incidência, pois atinge todos, ricos e pobres, que de uma forma ou de
outra fazem alguma operação bancária. A questão é que a classe média, de longe
a mais sobrecarregada com a mordida atual do Leão, entenderia melhor o retorno
dessa taxação se fosse minimamente aliviada da atual carga de impostos, sem o
retorno em serviços públicos. O mesmo precisa ser feito em relação às empresas,
com a desoneração da folha salarial. Pelas regras atuais, o empregador hoje é
desestimulado a contratar, o que só piora ainda mais as condições de quem
precisa trabalhar.
Evidentemente, o problema é complexo e tem facetas pouco conhecidas. Apesar da
desigualdade abissal (veja no gráfico acima) — o 1% mais rico da população
detém quase um terço da renda nacional —, o Brasil é um dos países que mais
investe em transferências de renda: os gastos com proteção social, saúde e
educação alcançam 17% do PIB, ante 10% em média nas nações mais ricas, do grupo
do G-20. Mas essa alocação de recursos é simplesmente desastrosa. Tal qual um
Robin Hood às avessas, o governo repassou em 2019 um total de 350 bilhões em
subsídios para a faixa de alta renda, enquanto Bolsa Família, salário-família e
abono salarial receberam, juntos, 48,5 bilhões de reais. “As distorções no
Brasil atingem um grau extraordinário, tanto na receita quanto no gasto de
governo”, diz Edmar Bacha, um dos economistas responsáveis pelo Plano Real,
criador de um conceito clássico, a “Belíndia”, país fictício e contraditório,
resultado da união de Bélgica e Índia, com leis e taxas do primeiro, pequeno e
rico, e com a realidade social do segundo, imenso e pobre. Segundo Bacha, o
descontrole acontece desde o período colonial, “porque quem desenhou o sistema
se beneficiou dele”.
O Ministério da Economia planeja unificar os benefícios federais no Renda
Brasil, uma nova versão do Bolsa Família — um dos únicos mecanismos de efetiva
redução da desigualdade do país. Entre 2001 e 2015, houve queda de 10% na
disparidade social brasileira graças ao programa, que atende 60% da população
mais pobre, mas se ressente de meios de sustentação que não sacrifiquem
justamente a fatia da população mais onerada por impostos. “O PT melhorou as condições
de vida dos 50% mais pobres, mas o fez às custas dos 40% que compõem a classe
média, enquanto os 10% mais ricos continuam concentrando riqueza em nível
extremo”, diz Piketty. Outra ideia em cogitação, no Brasil e no mundo, é a
adoção de alguma forma de renda mínima universal, benefício que supre o cidadão
com recursos para sua sobrevivência básica sem exigir nenhuma contrapartida.
Esse tipo de transferência foi amplamente usado para compensar a súbita
supressão de ganhos durante a pandemia, com bons resultados.
No mundo, o modelo considerado mais eficiente de combate à desigualdade é o que
combina economia de mercado com benefícios sociais, implantado na Europa do
pós-guerra pelos governos social-democratas. Para obter os recursos necessários
para reconstruir cidades e pagar as dívidas contraídas, instituiu-se uma
cobrança progressiva de impostos que chegavam a 80% da renda dos mais ricos.
Uma vez aprovada, essa arrecadação financiou a universalização do ensino e
saúde gratuitos e garantiu trabalho e aposentadorias na Escandinávia,
o melhor exemplo do estado de bem-estar social. Foi a experiência original da
social-democracia que serviu de base para a reforma que Piketty propõe no novo
livro, um “socialismo participativo” que tem como pontos principais a cogestão
nas empresas, com efetiva participação dos funcionários no conselho
administrativo e a taxação de até 90% sobre a renda, o patrimônio e a herança
deixada por milionários. Como se vê, Piketty é bom de diagnósticos, mas delira
um pouquinho quando apresenta soluções. Sobre esses pontos, Armínio Fraga é
taxativo: “É lógico que o sistema precisa ser reformado, mas não se pode punir
o mercado dessa forma. Afinal, ele é o mecanismo responsável pela geração de
riquezas”. Em outras palavras, os empreendedores são justamente aqueles que
fazem a roda girar. Se eles têm mais renda com o capital parado do que na
produção, todos perdem.
Aliás, sem sombra de dúvida, um dos problemas, se não o maior, que acabam por
intensificar a desigualdade, são justamente as assimetrias de acesso ao
mercados de capitais. No Brasil, por exemplo, por mais de duas décadas os juros
básicos da economia, representados pela taxa Selic, superaram 10% ao ano. Em
alguns momentos, como nos períodos de crise em série entre 1998 e 2002, a Selic
chegou a superar 40% ao ano. Não há desincentivo maior à alocação de recursos
privados na atividade produtiva — afinal, por que algum investidor arriscaria
seus milhões de reais se o governo oferece, quase que sem riscos, um retorno
que ele terá de suar muito para ganhar trabalhando? Essa assimetria local
alijou do maior fator de geração de renda do país, entre os anos 1994 e 2016,
toda a classe mais baixa, pois ela não possuía condições de poupar. Com a Selic
a 2,25% ao ano, algo que há até muito pouco tempo se imaginava como um sonho
distante, a classe baixa continuará excluída dos ganhos que eram compartilhados
pelos rentistas, mas, ao menos, poderá se beneficiar daqueles investidores que
finalmente decidiram arriscar seu dinheiro por meio do empreendedorismo.
Embora a bandeira seja adotada por alguns grupos de esquerda (nem sempre com
honestidade), ficou claro nos últimos anos que diminuir a desigualdade é
crucial, inclusive, para quem defende o livre mercado e sabe que o crescimento
econômico é a resposta mais eficiente contra a miséria. O economista Tao Zhang,
do Fundo Monetário Internacional (FMI), estudou o efeito do encolhimento da
classe média e a consequente redução de sua renda nos últimos quinze anos e
concluiu que o movimento provocou uma redução de 3,5% no consumo global. Outra
pesquisa do FMI mostra que quando a parcela de renda dos 20% mais ricos
aumenta, com redução nas outras faixas, o PIB sofre — nas nações da OCDE o
recuo alcançou 8,5% nos últimos 25 anos.
Quanto mais pobre o país, mais fundo costuma ser o abismo entre seus cidadãos.
De acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud),
que utiliza como base o coeficiente de Gini, medida universal de desigualdade
social, lideram a lista das nações mais díspares Namíbia, Zâmbia, República
Centro-Africana, Lesoto, Moçambique e duas exceções: a África do Sul e o
Brasil, economias de bom porte, porém com fortes distorções. Ambos, aliás,
países com raízes históricas ou na escravidão ou na segregação racial, que
manteve os negros apartados dos mecanismos de mobilidade social durante
bastante tempo. Alguns avanços vêm ocorrendo tanto lá como aqui. Tivemos
recentemente uma reforma da Previdência que procurou combater os benefícios nas
aposentadorias dos servidores públicos em detrimento da maioria dos
brasileiros. O mesmo precisa ser feito em relação aos salários e ao tamanho do
Estado. Ainda hoje, o governo consome 80% do seu Orçamento em despesas com o
funcionalismo e a Previdência. O ideal, defende Armínio Fraga, era baixar esse
porcentual para 60%, completando as mudanças na Previdência e enxugando o
Estado. “O que eu acho venenoso para sociedade é o ganho que não vem de
esforço, do mérito. As pessoas aceitam que um grande atleta ganhe muito. O que
envenena é a corrupção, o lobby, a captura do Estado, o monopólio, o lucro
que não vem da concorrência”, acrescenta Fraga.
As soluções tomadas, de todo modo, precisam ser ponderadas, discutidas
amplamente, sem rupturas ou medidas drásticas. Piketty lembra que mesmo a
Revolução Francesa, a mais notória revolta popular contra a nobreza perdulária,
resultou em um novo arranjo concentrador, com a burguesia tomando o lugar da
elite na propriedade de terras e expandindo a patamares inéditos a extensão de
seu patrimônio. Sem falar na confusão e no banho de sangue gerados. Problemas
ancestrais não serão resolvidos num passe de mágica. Mas ignorá-los tampouco
fará com que eles desapareçam. Está na hora de encararmos uma verdade: a
concentração de riquezas nas mãos de poucos não pode continuar. Não da mesma
forma.
Por Ernesto
Neves, Machado da Costa, na Revista Veja
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