sexta-feira, 10 de julho de 2020

Burocracia ‘à brasileira’




Em 14 de junho foram celebrados os cem anos do falecimento de Max Weber, um dos mais importantes pensadores do século XX e autor de influentes obras sobre burocracia, religião, ética, carisma e vocação para o interesse público. Vítima da segunda onda da gripe espanhola, Weber faleceu pouco depois do fim da Primeira Guerra Mundial, com 56 anos, no auge de sua produção intelectual. Seus escritos pautaram — e, em boa medida, pautam até hoje — alguns dos principais debates acerca da burocracia e sua sustentação racional-legal.

No Brasil, ironicamente, burocracia tornou-se sinônimo de irracionalidade administrativa, não de profissionalização do serviço público e de promoção da meritocracia. Recentemente, o termo passou a encobrir práticas corporativistas pouco republicanas, em especial no âmbito das carreiras jurídicas de todos os Poderes. Os princípios básicos do modelo ideal weberiano são quase desconhecidos no país, praticados em pouquíssimas organizações públicas.

Com poucas exceções — Forças Armadas, Itamaraty, Banco do Brasil, dentre outras — o serviço público no Brasil só começou a se estruturar como Estado Nacional quase 60 anos após o Estado Novo. A redemocratização aproximou a reforma do Estado com a construção do Estado de Direito, algo contra-intuitivo na cultura política brasileira que associava a modernização racionalizadora a projetos autoritários. Mas a partir da redemocratização as coisas mudaram. Vários governos como Sarney, Cardoso e Lula se empenharam em reformas da gestão pública com ênfases variadas. Os maiores destaques nestes 30 anos foram as inacabadas reformas gerenciais de Bresser Pereira e o povoamento da esplanada por meio de concursos públicos nos governos petistas.

Neste contexto, o Brasil vê-se obrigado a lidar com problemas estruturados em vários momentos históricos. O clientelismo e o patrimonialismo continuam fortes, em especial nos Estados e municípios. O combate à corrupção praticamente sequestrou a agenda pública nos últimos cinco anos a despeito das importantes legislações que foram propostas e aprovadas nessas duas primeiras décadas. A busca da eficiência e da qualidade do gasto público sequer são propostas nas agendas de governos. Weber ficaria surpreso com carreiras que possuem o monopólio dos cargos de direção de seus órgãos, que se autorregulam e que se auto concedem benefícios. Nas visões pró-gasto público predomina a premissa de que um dispêndio se justifica pela nobreza de seus propósitos ou dos méritos da agenda. Nas visões pró-ajustes fiscais não se costuma entrar no mérito sobre qual gasto é mantido e qual é cortado. Faltam análises baseadas em evidências para embasar escolhas políticas e ideológicas.

A esses problemas, soma-se a recente militarização da burocracia no governo Bolsonaro. O aumento significativo de militares (da reserva e da ativa) em vários ministérios, a começar pela Presidência, que hoje emula uma espécie de quartel general, foi possível em parte pela fragilidade do processo inacabado de profissionalização da administração pública federal.

Existe também uma distorção do papel dos militares, confundidos com o antigo “Bombril”, como se tivessem “mil e uma utilidades”, um desrespeito à expertise própria das Forças Armadas, e uma exposição desnecessária de seus quadros a vexames simplesmente dispensáveis como se observa hoje no Ministério da Saúde. Embora não haja nada de ilegal nessa preferência, isso contribui para a confusão de papéis das Forças Armadas, e o sequestro simbólico do seu poder por algumas forças e movimentos políticos, que se torna mais grave num momento de inesgotável polarização política.

O presidente assumiu um compromisso com a destruição de “práticas antigas” que prevaleceram ao longo dos últimos 30 anos, sem propor novas. Este projeto encontra-se em marcha numa série de áreas: educação, saúde, meio ambiente, cultura e relações exteriores, esta última, até então, tida como exemplo de burocracia profissional de Estado. Na área econômica, joga-se o destino da preservação e ampliação de uma rede de proteção social de emergência, a retomada do crescimento e a modernização competitiva da economia — objetivos que pedem um Estado forte, nem mínimo, nem grande — uma tese ainda sob exame pela equipe atual.

Existia uma expectativa de que uma reforma administrativa seria mandada em breve ao Congresso Nacional desde outubro do ano passado. O presidente declarou que ano que vem será mais oportuno. O teor é desconhecido porque não foi apresentado um texto para discussão pública, mas aparentemente juntaram-se, no mesmo pacote, ideias velhas com algumas novas associadas à possibilidade de cortes dos servidores públicos, o que agrada à área mais liberal do governo.

Neste meio tempo, a Medida Provisória 922 cria uma série de novas modalidades de contratação de quadros temporários, porque em tese a legislação atual não é suficientemente flexível para fazer frente às necessidades do governo. Manietado por decisões judiciais que praticamente equipararam o regime celetista ao estatutário, o governo se vê diante de duas alternativas: enfrentar os fios desencapados históricos, como a regulamentação da demissão por insuficiência de desempenho, ou buscar mecanismos de excepcionalização para solucionar problemas imediatos.

Aqui e ali órgãos de controle como o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União dão sinais de que talvez devam repensar seu modus operandi. Às velhas expressões como presunção de inocência, ônus da prova ser do acusador, transitado em julgado e segredo de justiça somaram-se outras novas como “apagão das canetas”, “direi - to administrativo do medo” e “código do fracasso”. Serão necessários anos para a construção de uma nova normalidade em que nem existam comportamentos lenientes com práticas de corrupção, nem funcionários declinem de atuar em função do pavor de serem acusados de forma discricionária e indevida.

Weber provavelmente sorriria discretamente. Nas crises a burocracia profissional é chamada a se apresentar para proteger a última linha de defesa do Estado contra a barbárie, de repente perigosamente próxima. A diferença é que no Brasil de hoje ela contará com o apoio da sociedade civil organizada, do empresariado com visão de país e quiçá da classe política, cujo protagonismo e liderança foram poucas vezes tão importantes e tão demandados como hoje.

Por Por Francisco Gaetani e Alketa Peci, no Valor Econômico  

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