Se nos anos 50 as informações eram valiosas para
que países como os Estados Unidos investigassem livremente aqueles por eles
eleitos como 'antifascistas prematuros', a exemplo de Charles Chaplin, os anos
2000 estabelecem um paradigma que realça a preciosidade dos dados a partir de uma
releitura de direitos, como o sigilo, e de novas nuances dadas às garantias,
como a intimidade e a privacidade.
Na virada do século, o mundo começou uma nova etapa, dessa vez baseada na
revolução digital. Com a chegada da 'Quarta Revolução Industrial', relembrada
por Klaus Schwab, líder do Fórum Econômico Mundial, os dados são elevados ao
status de matéria-prima, tal como foi o ferro na era industrial. Vivemos na era
da informação, do uso intensificado de big data por agentes privados e gestores
públicos como uma ferramenta que oferece auxílio na tomada de decisões.
Nessa equação, nem o Brasil, tampouco os contribuintes, ficaram de fora. Vieram
a Lei do Sigilo Bancário (LC 105/2001), com a previsão de compartilhamento de
dados entre instituições financeiras e a Receita Federal sem a necessidade de
uma decisão judicial prévia; e a introdução do inciso XXII ao art. 37 da
Constituição Federal, que prevê a atuação integrada da Administração
Tributária.
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do envio
de informações pelas instituições financeiras à Receita Federal com base nos
arts. 5º e 6º da LC 105/2001 e seus decretos regulamentadores. Em 2019, a Corte
chancelou o compartilhamento amplo e irrestrito de dados entre a Receita e o
Ministério Público Federal, para fins penais, e com o Coaf. Preponderou o
interesse público - proteção da arrecadação tributária e o combate ao crime
organizado - sobre o sigilo, a privacidade e a intimidade, tendo como premissa
que a troca e o compartilhamento dentro da estrutura pública seria uma
transferência de sigilo, não a sua quebra.
A proteção dos dados no Brasil já não é mais uma novidade, embora as
controvérsias ainda pairem sobre ela. Temos a Lei Geral de Proteção de Dados
(Lei 13.709/2018) e até uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 17/2019)
para alçar essa proteção, de forma expressa, ao patamar de garantia
constitucional. Precisamos, agora, inserir os dados fiscais dos contribuintes
nesse esforço protetivo, sobretudo os dados das empresas. Vale lembrar que a
nossa LGPD não abarca pessoas jurídicas.
O esforço é necessário, porque vai além da massificação de dados. Após a
sinalização favorável do STF, a cadeia do fluxo de troca e compartilhamento de
dados e informações tem sido cada vez mais ampla. Exemplo disso é o envio para
a CGU e ao TCU, para efeitos de controle externo,
regulamentado pelo Decreto nº 10.209/2020. Mais recente é o convênio firmado em
20.07.2020, entre a CVM e a Receita Federal.
Sob a guarda do Fisco, a plataforma 'Receita Data' reúne dados tributários e
aduaneiros, uma estratégia de big data governamental que viabiliza o cruzamento
de informações.
No caso do Ministério da Economia, o compartilhamento desses dados se dá por
meio do uso do 'lago de dados' - um repositório de armazenamento que exige um
plano rígido de segurança cibernética. Nessa relação tecnológica, o SERPRO é
uma espécie de intermediário na relação de repasse de informações
entre a Receita e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Não nos esqueçamos
que o nosso sistema eletrônico de escrituração é moderno e unificado em boa
parte por meio do SPED.
Nada obstante possamos encontrar balizas básicas na LC 105/2001 e nos Decretos
3.724/2001 e 4.489/2002, tais como punição ao servidor que vazar informações
protegidas pelo sigilo, a existência de procedimento administrativo fiscal
prévio, verdade é que o manejo de dados já não é mais como aquele previsto no
início dos anos 2000.
Não se trata de impossibilitar o trânsito dos dados fiscais, mas de reconhecer
que nem todos os contribuintes vivem de cometimento de ilícitos. Também, que
vazamentos e o mau uso podem ocorrer, representando o fim de uma estrutura
econômica ou até mesmo uma perseguição seletiva.
Qual a finalidade específica do uso dos dados fiscais requeridos pelo Estado?
Por quanto tempo esses dados ficarão disponibilizados? Que tipo de governança será
conferida a eles? Terceiros de alguma forma relacionadas podem ter seus dados
acessados livremente? É possível despojar o particular de qualquer tipo de
controle ou quanto ao uso, pelo Estado, de algo tão intrinsecamente ligado à
sua própria identidade?
Esses questionamentos demonstram que a massificação dos dados há de acompanhar
balizas protetivas modernas e transparentes. Se, por um lado, mitigamos o
sigilo, é imprescindível que reflitamos sobre a necessidade de edição de uma
lei federal que não apenas trate da proteção dos dados fiscais, mas que
unifique os procedimentos e nos traga o equivalente funcional do sigilo, isto
é, a autodeterminação informativa, a reger essa relação cada vez mais intensa
entre o particular e a Administração Pública.
Por Rebeca Drummond de Andrade Müller, em O Estado
de S. Paulo
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