Sem recursos em meio à alta global de juros, empresas novatas demitem às centenas. Funcionários se sentem desrespeitados pela forma como muitas dispensas coletivas estão sendo conduzidas.
Sem recursos em meio à alta
global de juros, empresas novatas demitem às centenas. Funcionários se sentem
desrespeitados pela forma como muitas dispensas coletivas estão sendo
conduzidas — Foto: Getty Images via BBC
"Era uma empresa bem
bacana. A cultura deles era o que chamava mais a atenção. O acesso aos líderes
era muito fácil, os benefícios eram bem bons também."
"O único problema era
que as mudanças eram muito rápidas, e não eram comunicadas. Um dos valores da
empresa era a transparência, mas isso era só no papel. Quando aconteciam as
mudanças, a gente era sempre pego de surpresa. Foi exatamente isso que
aconteceu com as demissões", conta uma trabalhadora demitida recentemente
de uma startup de serviços residenciais.
"Marcaram de última
hora uma reunião por vídeo com 36 funcionários. Foi onde eles comunicaram a
demissão em massa de todo mundo", diz a ex-funcionária, que optou pelo
anonimato.
Segundo ela, o dono da
empresa explicou que um grande investimento esperado não aconteceu e, por conta
disso, e das mudanças do mercado, a empresa estava mudando seu modelo de
negócios.
"Para mim, foi uma
forma muito cruel de demissão. Todo funcionário sabe que a qualquer momento
pode ser demitido. Mas a notícia não deveria ser dada na frente de todo mundo,
após dias sem informação", afirma.
"É inevitável que você
se sinta injustiçada, diminuída, por conta da situação. Ninguém pôde falar
nada, porque os microfones foram bloqueados. Então a gente só pôde ouvir e
aceitar tudo que estava acontecendo. Faltou transparência e empatia."
A demissão relatada pela
trabalhadora é uma de centenas que têm sido feitas nos últimos meses pelas
startups brasileiras, em uma onda que afeta também outros países.
Entre as empresas novatas
que demitiram em massa recentemente no país estão Facily, Kavak, Vtex, Favo,
QuintoAndar, Loft, Olist, Mercado Bitcoin, Zak, Bitso, TGroup, Sami e Sanar.
Todas dispensaram dezenas, e em alguns casos até centenas, de funcionários ao
longo do primeiro semestre de 2022.
Startups demitem em meio a
cenário econômico desafiador
Os trabalhadores demitidos
dizem compreender o cenário macroeconômico, as dificuldades enfrentadas pelas
empresas e a natureza volátil de negócios novos e inovadores. Mas criticam a
forma considerada desrespeitosa como muitas dessas demissões coletivas têm sido
conduzidas.
O caso da funcionária
demitida por vídeo e em grupo não é isolado.
A startup Zak, de gestão de
restaurantes, por exemplo, anunciou para seus funcionários em 13 de maio, em
uma reunião por vídeo, que um investidor havia voltado atrás num aporte de
recursos e que, por conta disso, a empresa iria demitir 40% do quadro.
Na sequência, os que seriam
demitidos receberam convites para reuniões de 20 pessoas, onde os gestores
oficializaram as demissões, relatam ex-funcionários.
"Tinha gente que
começou na segunda-feira e foi demitida na sexta. E eles estavam fazendo
recrutamento ativo, trazendo pessoas de outras empresas. Eu mesma estava em uma
empresa há mais de um ano e fui abordada por um recrutador da Zak. Fiquei pouco
mais de 30 dias e aconteceu essa demissão em massa", conta uma funcionária
demitida que também optou pelo anonimato.
Procurada pela BBC News
Brasil, a Zak afirmou em nota que vem sofrendo as consequências de um cenário
macroeconômico adverso. "Estamos comprometidos a apoiar todos os
colaboradores afetados e reiteramos que esta decisão foi tomada com extremo
cuidado e ponderação, e como último recurso", completou a empresa.
Juros em alta e fuga de
investidores
Felipe Matos, presidente da
Abstartups (Associação Brasileira de Startups), destaca que a onda de demissões
coletivas em startups é um fenômeno global, resultado do aumento das taxas de
juros pelos governos para combater a inflação.
"Quando os juros sobem,
os investimentos de risco costumam ser penalizados. Basicamente, do ponto de
vista dos investidores, vale mais a pena deixar o dinheiro em aplicações mais
seguras, como títulos do tesouro e outras aplicações indexadas às taxas de
juros, do que arriscar investir em uma startup ou no sistema produtivo, que são
investimentos de risco muito maior", diz Matos.
Além de impactar o balanço
entre risco e retorno dos investimentos, a alta de juros também afeta o valor
das empresas ("valuation", no jargão de mercado em inglês). Isso
porque esse valor é estimado calculando o fluxo de caixa futuro da empresa,
descontada a taxa de juros. Assim, quanto maiores os juros, menor a avaliação
das companhias.
O aumento dos juros também
implica em desaceleração da atividade econômica, já que fica mais caro para
famílias e empresas tomarem empréstimos para consumir e investir. Com isso, a
própria geração de caixa das empresas é prejudicada e muitos planos de
crescimento precisam ser revistos.
"Enquanto antes tinha
um paradigma em que valia mais a pena crescer do que ser lucrativo, porque
existiam investidores dispostos a bancar esse crescimento, mesmo com caixa
negativo, agora isso não é mais verdade. As empresas precisam ter mais atenção
ao caixa, mesmo que isso signifique crescer mais devagar", afirma.
"É basicamente por isso
que temos visto essa onda de demissões", diz o representante.
"Ninguém sabe exatamente quanto tempo esse ciclo vai durar, nem o quão
profundo ele será, se viveremos uma crise maior. É difícil prever, mas as
empresas estão se preparando, congelando investimentos e conservando caixa para
atravessar essa fase em que se espera que haverá menos capital disponível."
Para Matos, o desconforto de
trabalhadores com a forma como algumas demissões em massa têm sido conduzidas
está relacionado à própria natureza da demissão coletiva por questões
econômicas ou de reestruturação das empresas.
"É um problema de
qualquer demissão em volume. Uma coisa é demitir alguém por questão de
performance, em que a pessoa recebe um feedback [retorno], existe uma
avaliação. Essa é uma demissão que está dentro do esperado. Quando vem uma
crise e a empresa precisa cortar, muitas vezes ela corta pessoas que têm um bom
desempenho. Isso sempre vai causar desconforto."
'Me senti descartado, foi
humilhante'
Desconforto é pouco para
descrever o que sentiu o carioca Vinicius Mota ao ser demitido da Kavak,
startup de revenda de carros usados.
"Me senti usado e descartado.
Ser mandado embora é normal, todo contrato uma hora chega ao fim. Mas a forma
como foi conduzido foi humilhante. Não só para mim, mas para 90% dos
colaboradores", diz o técnico em manutenção automotiva de 28 anos.
Mota, que trabalhou por
cinco meses como inspetor de qualidade na Kavak até ser demitido, conta que os
funcionários já vinham percebendo uma queda de movimento nas vendas, mas eram
repetidamente assegurados pela gerência de que estava tudo bem e dentro do
planejado.
Em 6 de maio, a empresa
inclusive realizou um grande evento no Rio de Janeiro, reunindo toda a equipe
com um farto café da manhã e assegurando que ninguém seria demitido, relata.
Um mês depois, em 7 de
junho, a equipe foi chamada para uma reunião, sem informação do que seria discutido.
Na chegada, os funcionários foram recebidos por seguranças, portando listas com
nomes. Os funcionários eram então encaminhados ao 6º andar ou ao interior da
loja — posteriormente, ficaram sabendo que no 6º andar estavam os
"salvos" e na loja, os demitidos.
Os cerca de 50 funcionários
reunidos dentro da loja tiveram que aguardar por quase uma hora, cercados por
seguranças, sendo impedidos de bater o ponto, tomar café ou ir ao banheiro sem
acompanhamento, lembra o técnico em manutenção.
Objetos e carros haviam sido
retirados da loja, o que fez os trabalhadores — a maioria de operação e vindos
de bairros populares do Rio — sentissem que havia um temor de que eles pudessem
roubar ou destruir algo, embora naquele momento ainda fossem funcionários da empresa.
Por fim, os funcionários
foram divididos em grupos de 12 a 15 pessoas e a demissão feita através da
leitura — por gerentes que não eram os gestores diretos dos demitidos — de uma
carta formal, que dizia que a estratégia da empresa havia mudado.
Estima-se que a empresa
tenha demitido 300 pessoas no Rio e em São Paulo nesse último mês, mas a Kavak
não confirma o número oficial. Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de
imprensa da empresa respondeu em nota que "a Kavak prefere não comentar".
Mota conta que alguns
colegas pensam em entrar com processo contra a empresa por assédio moral no
momento da demissão. Ele se concentra na busca por um novo emprego, mas quer
agora ficar longe de startups. "Prefiro passar longe, como profissional eu
não confio mais", afirma.
O que diz a legislação sobre
demissões coletivas
Ricardo Calcini, professor
de direito do trabalho na FMU, observa que, após a reforma trabalhista de 2017,
a demissão individual e a coletiva passaram a ser consideradas equivalentes, sendo
dispensada autorização prévia por parte do sindicato profissional.
Em 8 de junho deste ano, o
STF (Supremo Tribunal Federal) ratificou esse entendimento, mas estabeleceu que
os sindicatos devem ser comunicados sobre dispensas coletivas.
Nas startups, que são
empresas jovens, com alta rotatividade e onde os trabalhadores em geral não
estão ligados a sindicatos, Calcini avalia que acaba prevalecendo o texto da
reforma trabalhista.
"Sem representatividade
[sindical], com número reduzido de funcionários e um giro grande, quando o
Supremo fala que tem que comunicar o sindicato, para as startups ficou algo
vazio", afirma.
O especialista lembra que os
dispensados em demissões coletivas têm todos os direitos normais de uma
demissão: aviso prévio de 30 dias indenizado, 13º salário proporcional, férias
proporcionais acrescidas do terço constitucional, multa de 40% do FGTS (Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço), liberação das guias para saque do FGTS e
saldo de salário.
Quanto à possibilidade de ir
à Justiça por situações abusivas no momento da demissão, Calcini afirma que é
preciso avaliar caso a caso.
"A Justiça do Trabalho
entende uma conduta como assediante quando ela passa do razoável. Toda vez que
houver excesso ou abuso do exercício do poder de dispensa, isso pode configurar
dano moral e ser passível de indenização correspondente. Mas isso tem que ser
avaliado caso a caso."
'Responsabilidade emocional'
Marina Proença, cofundadora
da Favo, startup de venda direta de produtos de supermercado para a classe C,
passou pela experiência da demissão coletiva neste início de junho, mas na
outra ponta.
Com a decisão da empresa de
encerrar atividades no Brasil e focar no negócio peruano, a empreendedora
demitiu em um dia 171 funcionários diretos e comunicou a suspensão da operação
brasileira aos mais de 7 mil representantes comerciais e 40 motoristas
parceiros.
"Fizemos um plano muito
detalhado, para cuidar que nada fosse feito de maneira grosseira. Fizemos todas
as conversas com os funcionários um a um, com a comunicação majoritariamente
feita em dupla — o gestor direto e mais uma pessoa para ajudar a tirar dúvidas.
Tudo foi feito em um dia, para evitar que as pessoas ficassem ansiosas",
conta Marina.
As conversas foram feitas
por vídeo, pois a empresa não tem escritório, e tiveram duração de 5 a 10
minutos cada, com espaço para os demitidos falaram o que quisessem. Alguns
grupos pediram para ter conversas mais longas posteriormente.
Aos funcionários diretos, o
plano de saúde e o vale alimentação foram estendidos por alguns meses e os
computadores e celulares, oferecidos para compra por valores reduzidos.
Para os representantes
comerciais com situação de renda mais crítica, foi criado um plano de "desmame"
com a manutenção da operação reduzida por mais 30 dias. A empresa também tenta
ajudar na recolocação de funcionários, representantes comerciais e motoristas,
inclusive através de parcerias com empresas concorrentes.
A empresa criou ainda uma
lista oficial de talentos para apresentar seus funcionários a possíveis novos
contratantes. A lista foi publicada no site Layoffs Brasil, criado pelo carioca
João Gabriel Santos, de 21 anos, para ajudar na recolocação dos demitidos em
massa por startups.
"Eu fiquei com muito
medo, tanto de fazer as demissões, como de avisar os vendedores. Porque é muito
triste, as pessoas doam muito do seu afeto. Mas combinamos de ser extremamente
transparentes, apesar da dor", diz a fundadora.
"Não consigo nem
imaginar fazer de outro jeito, apesar de já ter passado por isso em outros
lugares quando não era minha empresa. Infelizmente, acho que a menor parte dos
líderes e dos empreendedores têm uma responsabilidade emocional com a empresa.
Quando a gente fala em segurança psicológica, a maioria não sabe nem o que é
isso", afirma.
É possível demitir em massa
de maneira humanizada?
Para Rafael Souto,
especialista em recursos humanos e presidente da Produtive, consultoria
especializada em recolocação no mercado de trabalho, a demissão não deve ser
encarada pelas empresas como um evento isolado, mas como um processo, que
requer preparo dos gestores.
"A demissão pode ser
feita por vídeo, mas não pode de forma alguma ser feita de forma
coletiva", diz o consultor.
"Os gestores de cada
área devem fazer a comunicação individualmente, porque uma das premissas para
uma demissão responsável é você comunicar a decisão sem enrolação, explicar os
motivos de forma clara e escutar a pessoa. Faz parte da demissão humanizada dar
espaço para a pessoa falar e é importante ouvir", acrescenta.
Segundo Solto, a comunicação
individualizada é importante também para que a pessoa seja orientada
adequadamente sobre os próximos passos — como a entrega de documentos
necessários ao processo de demissão —, que devem ser apresentados em uma sequência
organizada.
Quanto a benefícios
adicionais ao mínimo legal estabelecido pela CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho), o consultor explica que eles podem ser de três tipos: bônus em
dinheiro; extensão de benefícios como plano de saúde, vale alimentação e
auxílio educação; e apoio à recolocação.
"A demissão tem vários
envolvidos: o desligado, os familiares, a sociedade e os empregados que
ficam", diz Souto.
"Então cuidar da saída
de uma forma profissional, humanizada e com responsabilidade também impulsiona
a marca empregadora, para quem está saindo e leva a imagem da empresa ao
mercado; para quem fica e sabe que o colega que saiu foi tratado de maneira
respeitosa e com apoio; e para a marca perante a sociedade como um todo."
BBC
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