Após meses de uma
moratória informal que visava manter a tensão nuclear baixa, ante diversas
ameaças do Kremlin desde que a Guerra da Ucrânia começou, os Estados Unidos
resolveram mudar de atitude e testaram quatro mísseis de uma só vez.
O lançamento ocorreu na
sexta (17), segundo o Comando Estratégico dos EUA, e envolveu quatro Trident 2
D5LE, a versão modernizada do principal míssil nuclear naval americano. Eles
foram disparados de um submarino de propulsão nuclear da classe Ohio perto da
costa da Califórnia.
"Bom, eu acho que o
período de comedimento nuclear da administração Biden acabou", escreveu no
Twitter Hans Kristensen, chefe do Projeto de Informação Nuclear da Federação
dos Cientistas Americanos, um dos maiores especialistas no tema no mundo.
O mais recente teste do tipo
havia ocorrido em setembro passado. Em 2 de março, a Força Aérea dos EUA adiou
o lançamento de um outro modelo, o ICBM (míssil balístico intercontinental, na
sigla inglesa) Minuteman 3, que é lançado de silos terrestres. A alegação foi a
tensão devido à guerra: ninguém queria enviar o sinal errado a Moscou.
Não que Vladimir Putin tenha
compartilhado tal sensibilidade. Cinco dias antes do ataque ao vizinho,
ocorrido em 24 de fevereiro, ele comandou um teste de mobilização e disparo de
seus principais meios nucleares.
Três dias depois do começo
da guerra, Putin assustou o mundo ao declarar que suas forças nucleares estavam
em alerta máximo. Isso foi instrumento para reafirmar o que havia dito com
poucos eufemismos desde o começo da ação: que a Otan (aliança militar
ocidental) corria risco de sofrer um ataque nuclear se interviesse em favor da
Ucrânia.
Ao longo da guerra, a carta
nuclear foi puxada diversas vezes, ora por Putin, ora por outras autoridades
russas. O fantasma da Terceira Guerra Mundial, invocado para evitar a ajuda
ocidental a Kiev, ainda surte efeito: apesar de enviar armas pesadas, a Otan
ainda é tímida na entrega de sistemas de longo alcance.
O presidente russo inclusive
anunciou, nesta segunda (20), que o novo ICBM RS-28 Sarmat (Satã-2 no Ocidente)
entrará em serviço no fim deste ano. Ele foi testado com sucesso, e devida
propaganda, no fim de abril.
Não que esses testes tenham
pego totalmente de surpresa os rivais: eles têm de ser informados sob o Novo
Start, o último acordo de controle de armas nucleares ainda em vigor. Após o
então presidente Donald Trump deixar dois outros tratados do gênero, ele quase
caducou, mas foi estendido por Joe Biden e Putin.
EUA e Rússia concentram
cerca de 90% das mais de 13 mil ogivas nucleares no mundo. Dessas, cada país
mantém até 1.650 do tipo estratégico, aquelas mais potentes a serem usadas para
mudar o rumo de conflitos, operacionais --ou seja, prontas para uso em silos,
submarinos ou bombardeiros.
O Trident 2 responde por
cerca de 70% dessa força operacional americana. Cada míssil carrega até 8
ogivas independentes de 475 quilotons (31 vezes mais potente que a bomba de
Hiroshima) ou até 14 de menor potência, 90 quilotons. Hoje, cada um dos 14
submarinos da classe Ohio carrega de 20 a 24 mísseis, número que cai a 16 nos
modelos também de propulsão nuclear britânicos da classe Vanguard, que também
operam os Trident.
Eles também podem levar as
novas armas encomendadas por Trump, ogivas táticas de 5 quilotons, teoricamente
limitadas a alvos militares restritos. Nenhum especialista nuclear concorda,
contudo, que o eventual uso de uma arma tática, como se especula que Putin
poderia fazer na Ucrânia, acabaria por aí.
Tudo isso ocorre na semana
em que está sendo discutido em Viena o TPAN (Tratado de Proibição de Armas
Nucleares), um acordo já assinado por 86 países, mas só ratificado por 62 -o
Brasil ainda não o fez. Como seria previsível, as potências nucleares não
aderiram.
Folhapress, Igor Gielow
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