Muito se tem falado sobre
os novos papéis e potencialidades que o seguro garantia pode desempenhar, no
âmbito das contratações públicas,
diante da tramitação e recentíssima aprovação – dia 10/12 - do Projeto de Lei
4.253/20, que cria um novo marco legal para substituir a Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a Lei
do Pregão (Lei
10.520/02) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei 12.426/11), tratando,
ainda, de alguns temas correlatos.
As principais mudanças trazidas pelo Projeto de Lei 4.523/20 em relação ao
seguro garantia consistem (a) no aumento do valor proporcional da obra
(contrato) que poderá ser objeto da garantia (artigos 97 e 98) e (b) na
previsão de que a seguradora poderá assumir a execução da obra e concluir o
objeto do contrato, em caso de inadimplemento por parte do contratado [tomador
do seguro garantia] (artigo 101).
De acordo com dados fornecidos pela Confederação Nacional de Indústria, o
Brasil possuía, em 2018, 2.796 obras atrasadas ou paralisadas[1]. Quando se
toma como base auditoria efetuada pelo Tribunal de Contas da União em 2019, esse número aumenta
ainda mais, alcançando 14 mil obras paradas. A interrupção de obras públicas
impacta diretamente no mercado de construção civil, que chegou a movimentar R$
460 bilhões na economia durante 2016, o correspondente a 7,3% do PIB (FGV,
2017; Abramat, 2017)[2].
Esses números representam quebras contratuais que geram como consequência a
falta de infraestrutura básica para a população (estradas, escolas, saneamento,
etc.), além de impedirem a ocorrência de externalidades positivas naturalmente
geradas pelas obras, sejam de pequeno ou grande porte (renda, desenvolvimento
social e urbano). Obras paralisadas impactam o produto e a renda do país de
forma conjunta, além de produzirem efeitos indiretos sobre todos os demais
setores da economia (CBIC, 2018)[3].
A relevância do tema é, portanto, indiscutível. Por meio deste breve artigo,
busca-se analisar e avaliar se tais modificações têm, de fato, aptidão para
incrementar a situação jurídica da Administração Pública, no tocante ao
cumprimento das obrigações por parte dos licitantes e contratados ou se, a
despeito de se tratarem de avanços legislativos, ainda não se revelam
suficientes à efetiva garantia dos interesses econômicos dos entes públicos que
constituem o objeto das garantias.
Atualmente, a Lei 8.666 prevê que a autoridade competente poderá exigir a prestação
de seguro-garantia nas contratações de obras, serviços e compras em valor não
superior a 5% do valor inicial do contrato, sendo certo que, para obras,
serviços e fornecimentos de grande vulto, o limite da garantia poderá ser
elevado até 10% do valor inicial do contrato (artigo 56, II, parágrafos 2º e
3º).
O Projeto de Lei 4.253/20 estabelece, por sua vez, que nas contratações de
obras, serviços e fornecimentos, a autoridade competente poderá exigir garantia
de até 5% do valor inicial do contrato, autorizada sua majoração para 10% desde
que justificada mediante análise técnica (artigo 97). Nas contrações de obras e
serviços de engenharia de grande vulto, poder-se-á exigir garantia, na
modalidade de seguro-garantia, em percentual equivalente a até 30% do valor
inicial do contrato, com cláusula de retomada da obra pela seguradora (artigo
98).
A referida cláusula de retomada consiste justamente na possibilidade de a
seguradora assumir a execução da obra e concluir o objeto do contrato, em caso
de inadimplemento por parte do contratado (artigo 101), tomador da apólice de
seguro-garantia. Quanto a essa cláusula, o Projeto de Lei 4.523/20 prevê que:
(i) caso a seguradora execute e conclua o objeto do contrato, estará isenta de
pagar a importância segurada (já que, naturalmente, não terá havido lesão ao
interesse segurado), e (ii) caso a seguradora não assuma a execução do
contrato, pagará a integralidade da importância segurada na apólice.
Trata-se, sem sombra de dúvidas, de previsões que se pretendem favoráveis no
âmbito da contratação pública e no atendimento dos interesses socialmente
relevantes. Existem, contudo, diversas possíveis críticas a tais previsões,
especialmente levando-se em consideração a técnica do direito dos seguros.
Pontuando-se apenas as que são mais comumente apresentadas, diga-se que o valor
máximo de 30% do contrato garantido ainda é muito inferior ao desejável, na
medida em que, na maioria das vezes, absolutamente insuficiente para a retomada
das obras por parte do ente público contratante. Mencione-se, ainda, que o
referido projeto de lei sequer impõe à autoridade competente a exigência de
garantias, conferindo-lhe poder discricionário para exigi-las ou não, o que já
demonstra a fragilidade da sistemática do instituto das garantias no âmbito da
contratação pública.
Por sua vez, a cláusula de retomada das obras pode representar vantagens se
imaginar que a seguradora contribuirá com sua expertise para concluir a obra.
Aliás, o Projeto de Lei 4.523/20 contemplou também que, sempre que a apólice de
seguro garantia contar com a referida cláusula, a seguradora deverá firmar o
contrato, inclusive os aditivos, como interveniente anuente, e poderá ter livre
acesso às instalações em que o contrato principal for executado, acompanhar sua
execução, ter acesso à auditoria técnica e contábil, bem como requerer
esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento (artigo
101, I, a, b, c e d). Nesse sentido, o Projeto de Lei 4.523/20 permite que a
seguradora desempenhe um papel fiscalizatório, no tocante ao cumprimento das
obrigações por parte do tomador, o que pode se revelar importante ferramenta de
auxílio ao ente público contratante e aos órgãos de controle (Tribunais de
Contas, Ministério Público etc.) no âmbito da gestão da obra pública.
Deve-se notar, ainda, que o Projeto de Lei 4.523/20, no artigo que dispõe sobre
a cláusula de retomada, não impõe tais condutas à seguradora, na medida em que
prevê que a seguradora 'poderá' desempenhar tais iniciativas fiscalizatórias ao
invés de prever que a seguradora 'deverá' fazê-lo, tal como o fez no tocante ao
dever de firmar o contrato e inclusive os seus aditivos como interveniente
anuente. Tendo em vista que tais condutas fiscalizatórias vão ao encontro do
pleno cumprimento de sua obrigação de garantia e, inclusive, podem auxiliar a
evitar a própria ocorrência do sinistro, pensamos que a melhor leitura da
previsão em comento consiste em interpretá-la como dever e não como
liberalidade.
Contudo, o que se tem visto na prática - e se o diz com todo respeito - é que
as seguradoras se encontram completamente desaparelhadas, sem corpo técnico
devidamente instruído, dependendo cada vez mais de reguladores externos
contratados, de modo que nos parece uma realidade distante a possibilidade de a
seguradora efetivamente fiscalizar e concluir o contrato de uma grande obra,
ainda que mediante a subcontratação, conforme previsto no Projeto de Lei
4.253/20.
As modificações trazidas pelo Projeto de Lei 4.523/20 em relação ao seguro
garantia somente serão eficazes, isto é, somente garantirão de modo efetivo o
interesse do ente público segurado - visto como as vantagens econômicas
advindas do cumprimento do contrato por parte do contratante -, se a regulação
do sinistro for feita de modo sério e célere pela seguradora detentora do
risco.
Infelizmente, o arcabouço de normas administrativas que regulam a prestação de
regulação a cargo da seguradora não garante essa desejada celeridade do
procedimento. Não se desconhece que a maior parte dos sinistros ocorridos no
âmbito das apólices de seguro garantia tem características complexas,
demandando análises técnicas aprofundadas, mas isso não exime o órgão regulador
- nesse caso, a SUSEP - de fornecer um arcabouço de normas administrativas que
garanta a celeridade do procedimento e tampouco as seguradoras de assim
atuarem, de modo a garantirem o integral adimplemento de sua prestação de
garantia.
Em âmbito administrativo, a circular da SUSEP que regula o seguro garantia é a
Circular 477/2013, a qual divide seu tratamento nos ramos público e privado,
fornecendo condições padronizadas específicas para cada um deles.
Recorrendo-se às Condições Padronizadas na modalidade Seguro Garantia para
Construção, Fornecimento ou Prestação de Serviços (setor público), verifica-se
que, nos termos do seu objeto, 'o contrato de seguro garante a indenização, até
o valor da garantia fixado na apólice, pelos prejuízos decorrentes do
inadimplemento das obrigações assumidas pelo tomador no contrato principal,
para construção, fornecimento ou prestação de serviços'.
Como se vê, o risco garantido consiste no 'inadimplemento das obrigações
assumidas pelo tomador no contrato principal'. Tendo em vista que o ordenamento
jurídico brasileiro adota o sistema da responsabilização civil subjetiva, será
necessário se perquirir se o descumprimento contratual incorrido pelo tomador,
seja ele absoluto ou relativo, possui caráter culposo ou não. Justamente por
isso, segurado e tomador ver-se-ão envoltos em uma nova discussão, dessa vez
perante o segurador, a respeito da existência ou não de culpa no descumprimento
contratual causador de danos.
Importante fazer referência, novamente, às Condições Padronizadas na modalidade
Seguro Garantia para Construção, Fornecimento ou Prestação de Serviços (setor
público), na parte em que trata da expectativa, reclamação e caracterização do
sinistro. De acordo com seus termos, a expectativa de sinistro deve ser
registrada assim que houver a abertura do processo administrativo por parte do
segurado, quando ele deve notificar o tomador, concedendo-lhe prazo para
regularização da inadimplência. A expectativa será convertida em reclamação
quando o segurado comunicar à seguradora o término dos procedimentos
administrativos que comprovem o inadimplemento do tomador. Tal comunicação deve
ser acompanhada dos documentos especificados nas condições da apólice, entre
eles os que demonstrem e comprovem os prejuízos sofridos. Quanto à
caracterização do sinistro, prevê-se que essa ocorre quando 'a seguradora tiver
recebido todos os documentos listados no item 4.2.1. e, após análise, ficar
comprovada a inadimplência do tomador em relação às obrigações cobertas pela
apólice (?)'.
Explicite-se, mais uma vez: a despeito da conclusão do processo administrativo
- cuja presunção é de validade -, a seguradora, a partir do recebimento dos
documentos indicados na apólice, fará nova 'análise' e o sinistro ficará
caracterizado, para fins de pagamento da indenização, se 'após análise, ficar
comprovada a inadimplência do tomador em relação às obrigações cobertas pela
apólice'.
Ademais, tendo em vista que a Circular Susep 477/2013 e as Condições
Padronizadas não estabelecem regras específicas para o procedimento de
regulação de sinistro - mas tão somente a respeito da formalização da
expectativa, reclamação e caracterização do sinistro -, aplicam-se as previsões
da Circular Susep 256/2004 quanto ao referido procedimento.
Lembre-se que a referida Circular, tal como redigida, permite que a seguradora
solicite, um sem número de vezes, documentos adicionais, e sempre que o faça, o
prazo de conclusão da regulação é suspenso, reiniciando sua contagem a partir
do dia útil subsequente àquele em que forem completamente atendidas as
exigências (artigo 33, caput, e parágrafo 2º). Caso a seguradora, mesmo após as
suspensões de prazo que vierem a ocorrer em virtude da solicitação de
documentos, descumpra o prazo de 30 dias fixado pela SUSEP, ficará ela sujeita,
de acordo com o ato administrativo, tão somente aos juros de mora incidentes
sobre o valor da indenização a ser paga ou não. Veja-se bem: caso a seguradora
conclua que não há cobertura para o evento apontado pelo segurado como sinistro
e o faça muito depois de esgotado o prazo de 30 dias previsto no ato
administrativo, o órgão regulador não lhe impõe qualquer sanção (artigo 33,
parágrafo 3º)[4].
Concluindo: pensamos que, caso a regulação do sinistro no âmbito do seguro
garantia não se torne mais célere, seja por meio da inclusão de atos
administrativos ou previsões legais nesse sentido em nosso ordenamento, as modificações
contidas no Projeto de Lei 4.253/20 que fixam (a) o incremento do valor
garantido e (b) a fiscalização e
assunção da obra pelo segurador, infelizmente, terão pouca efetividade no
tocante à proteção dos interesses econômicos dos entes públicos que constituem
o objeto das garantias, perdendo o legislador mais uma oportunidade de dar ao
Poder Público uma segurança jurídica maior, em benefício de todos, como é
usual, por exemplo, em vários países do mundo[5].
[1] CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA (CNI).
Grandes obras paradas: Como enfrentar o problema? Confederação Nacional da
Industria (CNI), Propostas da indústria eleições 2018, v. 25, Brasília, 2018.
Disponível em:
https://www.conjur.com.br/dl/estudo-cni-grandes-obras-paradas.pdf> .
[2] FGV ABRAMAT. Perfil da Indústria de Materiais de Construção 2017.
Disponível em:
http://www.abramat.org.br/datafiles/perfil-da-cadeia-2017-versao-site.pdf>
[3] CBIC. Impacto econômico e social da paralisação das obras públicas. Agência
CBIC, Brasília, 2018. https://cbic.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Impacto_Economico_das_Obras_Paralisadas.pdf>
.
[4] Há entendimento (com o qual se concorda) no sentido que o segurado pode
buscar a reparação para os danos que a mora da seguradora no procedimento de
liquidação de sinistros comprovadamente der causa com fundamento nos arts. 927
e 187 do Código Civil, os quais preveem, respectivamente, que 'aquele que, por
ato ilícito ( arts. 186 e 187 ), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo' e 'aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito'. No entanto, o foco desta análise diz respeito à
regulação administrativa e sua eficácia na proteção dos interesses socialmente
relevantes.
[5] A título exemplificativo, mencione-se que, nos Estados Unidos, a legislação
quanto ao seguro garantia para contratação de obras públicas fica a cargo de
cada um dos Estados, mas a maioria exige que pelo menos 50% do valor da obra seja
objeto de garantia (videGaliza, Francisco. Uma análise comparativa do seguro
garantia de obras públicas in Estudos sobre Seguros, nº 29. Rio de Janeiro:
ENS-CPES, 2015)
Por Luiza Perrelli Bartolo, na Revista
Consultor Jurídico
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