Diz a lenda que o Bar Beirute,
inaugurado em Brasília em 1966, se encontrava à beira da falência no ano de
1970. Quando seus proprietários Youssef Sarkis Maaraouri e Youssef Sarkis
Kaawai consideravam fechar as portas do estabelecimento, dois garçons cearenses
que lá trabalhavam, Bartô e Chico, teriam convencido os donos a lhes vender o
negócio, que hoje é considerado um dos restaurantes mais tradicionais da
cidade…
Há alguns anos, ao concluir uma aula
no Departamento de Economia da UnB, uma aluna me abordou com um grupo de
colegas dizendo: “Professor, estamos estudando em grupo para o concurso ANPEC
[para ingresso na pós-graduação em Economia] e queremos sua ajuda!” Pensei,
naturalmente, se tratar de referências bibliográficas. A preocupação, no
entanto, era outra. “Sabemos da importância da regularidade no estudo. Mesmo
assim, tememos que, na ausência de um mecanismo forte, uma doença, ou o cansaço
ou mesmo a preguiça,qualquer um desses fatores nos leve a faltar, comprometendo
o sucesso de nosso projeto…”
A Teoria dos Contratos, que ganhou
destaque esta semana com o anúncio do Prêmio Nobel 2016 para o professor
finlandês Bengt Holmström e o professor inglês Oliver Hart, apresenta uma
possível explicação para a mudança – de fracasso para sucesso – na trajetória
do Beirute, e para a origem dos problemas que afligiam a aluna. Trata-se do
modelo básico de Economia da Informação e Incentivos conhecido com o modelo
“Principal-Agente”1ou “Modelo de Delegação Monitorada”e sua variação
aplicada às organizações do tipo “Parceria”, como será discutido no final desta
nota.
O modelo Principal-Agente ou Modelo
de Delegação Monitorada estabelece que grande parte das relações entre
indivíduos e instituições segue um formato comum em que um ente, chamado de
Principal ou Superior, deseja que outro ente, chamado de Agente, realize
adequadamente uma tarefa. A execução dessa tarefa, tipicamente, envolve custos
para o Agente.Para induzir o Agente a realizar a tarefa, o Superior dispõe de
um mecanismo de compensação. Por exemplo, um diretor de uma escola (o
Superior), deseja que o professor (o Agente) se esforce para proferir boas
aulas, estimular os alunos a estudar, elaborar provas capazes de bem avaliar o
desempenho dos alunos etc. Como mecanismos de compensação, dispõe do salário,
da progressão na carreira, do prestígio na escola etc. O fruto da negociação
entre o Superior e o Agente é chamado de “contrato” que, segundo o Business Dictionary, consiste de “um
acordo voluntário e juridicamente vinculante entre dois ou mais agentes econômicos”2.
É fácil ver que qualquer relação de
trabalho3 pode ser
interpretada sob a ótica do Modelo de Delegação Monitorada, em que o patrão é o
Superior e o empregado é o Agente. Esse modelo, no entanto, é muito mais
abrangente e pode ser usado para se analisar um sem-número de outras situações,
como, por exemplo, a relação entre uma empresa de seguros de carro (Superior) e
o segurado (Agente). Nesse caso, o Superior quer que, em primeiro lugar, o
Agente compre seu seguro e, em segundo lugar, que dirija cuidadosamente, de
forma a minimizar, na medida do possível, as chances de ter que cobrir os
custos de um acidente. O mecanismo de compensação envolve o próprio custo do
seguro, mas também a fixação de uma franquia4, a cargo do segurado,
em caso de acidente. Pode ainda ser usado para se interpretar a relação entre
eleitores (os “Superiores”) e seu presidente eleito (Agente), que desejam
garantir que o presidente seja honesto e se dedique ao melhor interesse da
sociedade. Nesse caso o mecanismo de compensação é a reeleição ou, mais
genericamente, o sucesso na carreira política.
Bengt Holmström e Oliver Hart foram
instrumentais no desenvolvimento da Teoria dos Contratos, que pode ser definida
como a análise sistemática do Modelo de Delegação Monitorada, com vistas a
entender essas relações hierárquicas entre agentes econômicos, bem como a
sugerir quais regras e instituições podem garantir um resultado mais benéfico
para todos os envolvidos. Na linguagem usada pelos economistas, busca-se
aproximar ao máximo a “eficiência de Pareto”.
Em sua tese de doutorado5 submetida à Universidade de Stanford
em 1977 Holmström evidencia o papel fundamental da assimetria de informação. De
fato, caso o Superior pudesse observar todas as ações do Agente, ele poderia
propor um contrato que compensasse o Agente apenas se ele escolhesse as ações
desejadas. Se a compensação fosse adequada, então o Agente aceitaria a proposta
do Superior e executaria exatamente as ações acordadas, de forma a garantir o
recebimento da compensação. Portanto, o problema de delegação seria facilmente
resolvido.
Suponha agora que o Superior não
consiga observar a ação do Agente. Suponha ainda que a ação que o Superior
deseja ser executada envolva um elevado custo para o Agente. Então está criado
um conflito de interesses que pode fazer com que o Agente opte por uma ação
distinta. No exemplo do diretor de escola e do professor, caso a única
compensação que o professor receba seja seu salário e este independa da
qualidade de suas aulas, é provável que o professor prefira não se esforçar no
preparo didático, se isso lhe for custoso. Em geral, Holmström e demais
pesquisadores da área mostraram que é necessário que a compensação esteja
atrelada a alguma medida de desempenho para que o Agente escolha a ação que o Superior
deseja. Por exemplo, se o salário do professor estiver condicionado a alguma
medida de aprendizado da turma, como o resultado do ENEM ou outro teste
padronizado aplicado por terceiros, então é mais provável que o professor se
dedique para garantir a transmissão de seu conhecimento.
Esse achado explica porque em muitas
profissões em que o sucesso depende muito da dedicação do Agente, como em
vendas, os salários (compensação) tendem a depender do resultado observado
(montante de vendas, a medida de desempenho).
Mais ainda, Holmström mostrou que
simples medidas de desempenho baseadas em resultados são, em geral
imperfeitas.Isso ocorre porque, tipicamente, o resultado é um sinal imperfeito
da escolha do agente. Considere o caso de um vendedor em uma loja, por exemplo.
Ele pode se dedicar para convencer os clientes potenciais, tendo sucesso
moderado, enquanto um colega pouco dedicado pode ter a sorte de, sem esforço
algum, receber um rico cliente procurando por um artigo específico caríssimo.
Um exemplo mais sofisticado pode ser
o desempenho de um político que assume a presidência de um país produtor de commodities que se encontra com uma estrutura
macroeconômica consolidada, política fiscal sob controle, política monetária
atuante, e em um período de grande expansão da economia mundial. Esse
presidente verá as reservas internacionais e o nível de confiança do país
aumentarem ao longo de seu mandato, mesmo que não tome as melhores decisões
para o país, podendo inclusive ser reeleito, uma vez que os eleitores observam
o crescimento econômico (resultado) sem separar o que deve ser atribuído ao
esforço do presidente daquilo que deve ser atribuído a variáveis externas à sua
conduta.
O contrário pode também ocorrer, ou
seja, um empregado dedicado, mas sem sucesso de vendas devido a uma crise
econômica, por exemplo,pode receber uma baixa remuneração.
Aqui um paralelo pode ser feito à
situação de pais que gostariam que seus filhos estudassem. O certo seria
recompensá-los pelo esforço dedicado ao estudo. Como esse esforço não é
claramente observado, terminam recompensando-o pelo resultado nas provas: se
boas forem as notas, são louvados e, se forem baixas, são criticados, ainda que
as críticas possam ser injustas. O mesmo acontece com qualquer sistema de
menções em universidades, que tende a medir o desempenho em provas (observável)
no lugar do esforço do aluno (não-observável).
Ainda assim, a compensação
contingente ao desempenho observado gera um equilíbrio do tipo “segundo-melhor”
(second
best), que é uma aproximação factível do resultado eficiente que
teria sido obtido caso a informação sobre a ação do Agente fosse de
conhecimento público.
Em trabalho derivado de sua tese de
doutorado, Holmström (1979)6 chama
a atenção para o fato de que, apesar de a ação não ser observada, se existirem
outras variáveismelhor correlacionadas com a ação que possam ser medidas, então
o uso dessas variáveis pode ajudar a aperfeiçoar o mecanismo de compensação,
tornando o resultado ainda mais próximo do eficiente. Trata-se do “Princípio do
Conteúdo Informativo” (Informativeness Principle), que
estabelece que a informação relevante disponível, e apenas essa informação,
deva ser utilizada no desenho dos contratos de forma a melhorar os resultados.
Considere os dois exemplos discutidos
acima. Existe, no comércio, uma regularidade conhecida como sazonalidade, que
faz com que as vendas variem naturalmente ao longo do ano. Por exemplo, há
muito mais vendas de brinquedos em dezembro, devido ao Natal, do que em
janeiro. Não se deve, portanto, punir um vendedor por uma redução (dentro de
padrões naturais) nesse mês de início de ano.
Analogamente, é possível se observar
as vendas de commodities de um país, bem como o crescimento
econômico mundial. Portanto, não se deve considerar mérito pessoal de nosso
presidente fictício um bom resultado nas exportações se todos os demais países
em condições comparáveis também tiverem resultados semelhantes. Um exemplo
extremo dessa situação são os países que dependem quase que exclusivamente da
exportação do petróleo, como a Venezuela, que pode passar de um período de
extrema opulência para um de extrema penúria com as variações do preço
internacional do petróleo, sem qualquer influência das ações do
presidente.Nesse caso, a ação do presidente (Agente) a ser considerada pelos
eleitores (Superiores) não deve ser o montante arrecadado com exportações, mas
sim, por exemplo, a capacidade de criar um fundo de estabilização nos momentos
de alta do preço do petróleo e usar esse fundo nos períodos de baixa desse
preço.
Uma famosa aplicação para o mundo
corporativo do Princípio do Conteúdo Informativo é que não se deve remunerar um
alto executivo de uma empresa por lucros oriundos da sorte, alheios aos seus
esforços, por exemplo.
Além da superioridade do salário
condicional ao desempenho, a Teoria dos Contratos permite entender e desenhar
melhores contratos em várias outras situações. Por exemplo, uma carreira mais
verticalizada, com benefícios mais claros quando se é promovido, estimula o
desempenho (com vistas à promoção) mais do que uma carreira mais
horizontalizada em que há pouco ganho quando se é promovido. Este
pesquisador se encontra atualmente em estágio pós-doutoral no Japão e ouviu de
vários colegas professores de universidades públicas a manifestação de que teriam
pouco interesse na promoção à posição de professor titular pelo simples fato de
que o aumento salarial é muito pequeno, enquanto as responsabilidades, em
termos de participação na administração universitária, crescem muito.
Até agora foi discutida a contribuição
da Teoria dos Contratos no sentido de melhor entender os contratos existentes e
também no sentido de ajudar a desenhar contratos mais eficientes em ambientes
em que há informação assimétrica entre o Superior e o Agente. Há ainda uma
outra importante característica do mundo real que afeta a qualidade dos
contratos, que é o fato de o mundo ser por demais complexo para que todos
possíveis desdobramentos de um contrato possam ser previstos. Isso levou a
academia à modelagem dos “contratos incompletos” (incomplete contracts),
que faz uso de sofisticado instrumental matemático para incorporar o fato de
existirem situações imprevisíveis no momento em que se desenha um contrato.
Oliver Hart é considerado um dos principais motores do desenvolvimento dessa
área de pesquisa. A teoria chama a atenção, por um lado, para a necessidade de
se prever quem terá o poder de decisão em uma disputa oriunda dessas situações
imprevisíveis e, por outro lado, para a grande força que ganha o ente que
resulta deter o poder de decisão nessas situações.
Uma aplicação dessa teoria diz
respeito à estrutura ótima da firma. Uma estrutura verticalizada, em que a
firma adquire firmas menores que eram suas fornecedoras, garante o direito de
decisão para a firma adquirente, afirmando sua preponderância. Por outro lado,
é possível que essa integração traga consigo problemas de incentivos
inexistentes anteriormente, uma vez que antes da aquisição as duas firmas
interagiam por meio do mercado, que criava incentivos para que a fornecedora
buscasse a eficiência por conta própria. Uma vez adquirida pela firma maior, os
proprietários da antiga fornecedora se tornam funcionários e, a menos que sejam
criados novos esquemas de compensação adequados para contrabalançar a perda dos
incentivos à eficiência que eram gerados pelo mercado, poderá haver redução de
dedicação por parte dos novos funcionários.
Esta questão nos leva de volta à
discussão sobre o Bar Beirute. A presente nota não tem a pretensão de dar
uma resposta inquestionável à pergunta inicial. A Teoria dos Contratos
sugeriria, no entanto, que até 1970 Bartô e Chico eram empregados da empresa,
sendo necessário a construção dos incentivos adequados à sua atuação ótima, uma
vez que o principal beneficiário de seu trabalho eram os proprietários. Na
ausência de um bom desenho de incentivos, a empresa caminharia para a
ineficiência, reduzindo seus lucros. Com a aquisição do empreendimento, os
antigos funcionários se tornaram donos do negócio e, portanto, beneficiários
integrais de seus ganhos líquidos. Assim, aumentou sobremaneira o incentivo à
eficiência, com a feliz consequência observada. Trata-se de um resultado
clássico bastante conhecido e ensinado em Teoria dos Contratos: Se você quiser
garantir um nível de esforço ótimo de seu Agente, venda a ele (os direitos
sobre) o negócio por um preço fixo e deixe que ele escolha o nível de esforço.
Como, uma vez feito o pagamento, todo o benefício passa a ser do Agente, este
escolherá, naturalmente, o nível eficiente de esforço!
E quanto ao estudo para o exame ANPEC
de minha aluna e seu grupo? Trata-se também de uma estrutura amplamente
estudada por Bengt Holmström que se chama “parceria” (partnership)
em que não existe um Superior e sim vários Agentes que geram um resultado
conjunto por meio de seus esforços individuais. No caso dos estudantes, o
esforço era participar religiosamente das reuniões de estudo e o resultado
conjunto era o melhor preparo de todos os membros do grupo para o exame.
Observa-se a mesma estrutura quando um grupo de alunos deve elaborar em
conjunto um trabalho final de uma disciplina. Firmas com vários sócios, como é
comum em pequenas empresas, especialmente no ramo de serviços, também
apresentam estrutura semelhante. Holmström (1982)7 mostra claramente a impossibilidade de
se chegar até mesmo ao “second-best” nessa estrutura, devido à
ausência de um Superior. A explicação é simples, e está associada à dificuldade
de se impor uma penalização quando a ação ótima (não observada) não for tomada
por algum dos membros.
Bugarin (2015)8 mostra que, quando a parceria
necessita de um investimento, então o provedor do recurso pode assinar um contrato
que lhe dá o direito de propriedade sobre a produção da parceria, sendo que ele
deverá redistribuir essa produção à parceria se esta gerar o resultado
eficiente e, caso contrário, ficará com esse retorno para si. Dessa forma, o
investidor se tornará um Superior para a parceria e se retornará à solução
conhecida. No entanto, caso não exista necessidade de aporte de capital, essa
solução não pode ser aplicada. No caso do grupo de estudo, claramente não havia
um Superior. O grupo de alunos chegou a pensar em implementar o seguinte
mecanismo: Toda semana cada membro do grupo depositaria um montante na conta
deste professor, montante esse que seria devolvido caso todos estivessem
presentes a todas as reuniões de estudo. Caso qualquer um dos membros faltasse,
o professor doaria o recurso a terceiros. Dessa forma, este professor
desempenharia o papel do Superior ou, na linguagem de Holmström (1982), o papel
de um “budget-breaking Principal”. Esse mecanismo, no
entanto, se mostrou de difícil implantação e nem chegou a ser usado, conforme
previa a teoria, pois não havia um Superior “natural”, como no caso do
investidor9.
Felizmente, a aluna não dependia da
eficiência dessa parceria: Seu brilhantismo a colocou entre as melhores
classificadas no concurso ANPEC. A aluna fez mestrado em um dos melhores
programas do Brasil, doutorado nos Estados Unidos e hoje segue firme carreira
acadêmica em universidade americana de primeira linha!
_______________
1A tradução literal do inglês “Principal-Agent” é aqui mantida
por ter se tornado amplamente aceita e ser usada universalmente. No entanto,
proponho alternativamente o uso do termo “Delegação Monitorada” por razões que
ficarão claras ao longo do texto.
3Até mesmo o
trabalho escravo, como pode ser visto em De Castro, Steve, “Wrong incentives
for growth in the transition from modern slavery to firms and labor markets:
Babylon before, Babylon after”, Social & Economic Studies 53(2):75-116,
2004. Versão disponível online: http://epge.fgv.br/files/1049.pdf
4 A existência da franquia cria, naturalmente, um incentivo
adicional para que o segurado se esforce em evitar acidentes.
5 “On Incentives and Control in
Organizations”, Stanford University, 1977.
6“Moral Hazard
and Observability”, The Bell Journal of Economics, 10(1): 74-91, 1979.
7 “Moral hazard in teams”. The Bell
Journal of Economics, 13(2): 324–340, 1982.
8 “Efficiency in a Monotonic Partnership
with Investment: An Endogenous Implementation of Holmström’s Principal”. Bulletin of Business and Economics, 4(3): 127-135, 2015.
9 Poder-se-ia, naturalmente, pensar no grupo punindo
diretamente o faltante. Nesse caso, o mecanismo funcionaria assim: cada membro
depositaria uma quantia em conta do grupo, quantia essa que somente lhe seria
devolvida se ele não faltasse. Existem dois problemas com esse mecanismo. Em
primeiro lugar, se o valor for muito baixo, o membro não se preocupará em
perdê-lo e o incentivo desaparecerá. Por outro lado, se for suficientemente
elevado, há incentivo para que os próprios membros renegociem (ex-post)
a punição, cada um deles prevendo a possibilidade de ser punido no futuro.
Nesse sentido, diz-se na teoria dos contratos que a regra não é “durável”.
Vide, a esse respeito, o artigo de Holmström e Myerson “Efficient and Durable
Decision Rules with Incomplete Information”, Econometrica 51(6):1799-1819,
1983.
Por Maurício S. Bugarin - PhD em Economia pela
Universidade de Illinois. Professor Titular do Departamento de Economia da
Universidade de Brasília e Diretor do Centro de Investigação em Economia e
Finanças, CIEF/UnB.
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