1. O ajuste fiscal é uma farsa. Não
seria preciso se o governo buscasse recuperar a dívida ativa. O rombo de R$ 180
bi é fichinha perto da dívida trilionária dos grandes devedores. Veja o
sonegômetro. Em vez de fazer o ajuste, o governo deve investir nos procuradores
capazes de recuperar esse dinheiro. Eles devem receber honorários para isso,
como no setor privado (mas mantendo o salário fixo).
É preciso aprovar a PEC que torna o
salário dos advogados públicos igual a 90% do dos ministros do STF. A
Constituição tem que ser alterada para que esses órgãos tenham autonomia
financeira. A carreira deve ser valorizada para que a dívida seja recuperada:
não precisa de ajuste fiscal. O orçamento do órgão com essa missão deve ser o
dobro.
2. Não existe déficit na Previdência:
a reforma é desnecessária. Em parte porque há centenas de bilhões de dívida
ativa decorrente de sonegação. Deve-se em vez de reformar a Previdência
investir no combate à sonegação. Pode-se criar para auditores fiscais bônus por
produtividade. Ou, como os advogados, vincular salários aos do STF.
3. A reforma trabalhista não precisa
ser feita. A legislação trabalhista não é rígida: a culpa de dezenas de milhões
de trabalhadores informais é da falta de fiscalização. Qualquer flexibilização
é prejuízo para o trabalhador. Deve-se dotar a carreira de auditores do
trabalho de condições para combater o problema. Entre outras, além de mais
funcionários, é premente o bônus de produtividade (a fiscalização da
informalidade também traz ganhos de arrecadação) e a vinculação do salário ao
teto.
4. Querem extinguir direitos
trabalhistas da Constituição e também a Justiça do Trabalho. A quem interessa
uma legislação trabalhista mais simples e menos litígios? Ao patronato. É
natural que para proteger o trabalhador a legislação seja complexa e precise de
alta qualificação para ser bem entendida. A Justiça trabalhista deve ser forte
e não sofrer cortes orçamentários. É ela, e não a legislação trabalhista, que é
capaz de regular as relações de trabalho para que o mercado de trabalho
funcione bem.
Argumentos como os desses quatro
exemplos são muito populares em Brasília, pois simultaneamente: a) descartam medidas impopulares para
fazer o país crescer (ajuste fiscal, reformas); b) apresentam alternativas fáceis (ex:
uma reserva de dinheiro prontamente disponível), com uma narrativa de mocinhos
contra vilões indefensáveis (sonegadores, patrões); e c) servem aos
interesses corporativistas de um grupo de servidores públicos.
Esse é o lado pouco discutido do
poder das corporações públicas: o de como podem moldar o pensamento econômico
do país (o lado conhecido foi amplamente discutido nos últimos meses, quando
dezenas emplacaram aumentos salariais em meio à crise fiscal.)
As soluções apresentadas por
corporações são sedutoras: por vezes parecem quase mágicas. Tipicamente não
possuem controvérsias, já que, quando apresentam perdedores, normalmente são
vilões (quem vai defender sonegador?). Têm apelo também pelo ar científico
porque, em tese, são propostas por especialistas da área, embora normalmente
não tenham sido avaliadas em revistas acadêmicas ou congressos especializados:
saem direto dos sindicatos para a Esplanada, o Congresso Nacional e a imprensa.
Certamente têm méritos. Não há
absolutamente nada a se defender em sonegadores ou em patrões que exploram
trabalhadores. A questão é a simplificação do debate. Por exemplo, entre os
grandes devedores da dívida ativa estão empresas falidas, estatais, ou aquelas
que devem porque há alguma relevante controvérsia jurídica não resolvida: não
estão lá simplesmente porque uma carreira não é “valorizada”. Soluções mais
complexas para um problema, nesse caso medidas do ajuste fiscal, podem ficar em
segundo plano ou serem percebidas como mera iniciativa de algum “vilão”
(mercado, neoliberais).
Essas soluções servem para, além de
justificar os legítimos pleitos das corporações, aproxima-las de agentes
políticos. As evidências apresentadas viram insumo para o discurso político,
pelo apelo junto aos eleitores. Há uma simbiose. Nos sites das corporações1,
é fácil encontrar relatos de reuniões com políticos, com a pauta misturando a
defesa de algum direito difuso ou coletivo (contra algum projeto de reforma
estrutural) e a valorização da carreira (a favor de algum projeto concedendo
vantagens remuneratórias).
Como esses argumentos vão contaminar
a opinião pública nos próximos meses? De um lado, as corporações vão surgindo
com força como as primeiras vencedoras do impeachment.
De outro, as medidas do governo que se avizinham serão impopulares. Serão
mais atraentes propostas maniqueístas que tenham culpados para se apontar, como
as da intelligentsia brasiliense. Entre elas, as baseadas em ideias como a de
que não existe déficit na Previdência ou a da lenda urbana de que o governo
gasta 40% dos impostos com juros da dívida pública – duas ideias populares no
debate que são criações principalmente de servidores de carreira de elite.
Porém, as soluções realmente destinadas a recuperar a trajetória do país rumo
ao desenvolvimento são muito mais complexas. Vamos
resistir à tentação do pensamento mágico?
Por Pedro Fernando Nery, doutorando e mestre em
economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do
Trabalho, Renda e Previdência.
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