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Soldado das forças ucranianas patrulha próximo as áreas controladas por Kiev e separatistas pró-russos, perto de Horlivka, região de Donetsk, 22 de janeiro de 2022. © Anna Kudriavtseva, Reuters |
“Só sei que nada sei”: a frase,
atribuída a Sócrates, cabe como uma luva para o analista que se aproxime do
atual conflito na fronteira com a Ucrânia. Sobretudo em uma de suas
interpretações posteriores: “só tenho certeza de minhas incertezas”.
As incertezas derivam do fato de pouco se saber, no
labirinto de movimentação de tropas e do trânsito de armamentos de um lado e
outro do conflito imediato, o que é militarmente para valer e o que é reforço
da retórica de uma guerra híbrida entre os beligerantes.
Há duas certezas no ar. Primeira: a Rússia deslocou 100
mil homens e armamento pesado para a fronteira com a Ucrânia. Isto não é uma
cortina de fumaça. É uma realidade. Segunda: as Forças Armadas ucranianas vem
recebendo armamentos por parte de países aliados dos Estados Unidos, como o
Reino Unido, e treinamento por parte de outros e da OTAN.
Outra certeza: no momento, a maior fonte de atrito direto
entre os beligerantes está no interior da própria Ucrânia, entre as forças do
governo de Kiev e os separatistas na região de Donbas, na fronteira com a
Rússia, onde há dois centros urbanos de grande importância, Luhansk e Donetzk.
É uma região rica em carvão e siderurgia, estratégica para a economia
ucraniana. Nem o governo da Ucrânia nem os separatistas, que têm apoio russo,
querem abrir mão de suas posições.
As escaramuças entre as tropas ali acantonadas são
frequentes. Desta frente pode, hipoteticamente, partir a centelha que deflagre
um conflito de proporções ainda desconhecidas, mas que já vem sendo descrito
como potencialmente o maior em território europeu desde a Segunda Guerra
Mundial. E envolvendo as duas maiores potências nucleares do planeta.
Há uma outra frente de confronto: aquela entre o governo
de Kiev e a península da Crimeia, re-anexada pela Rússia em 2014. A Rússia
mantém o controle sobre toda a península, com exceção de duas estreitas faixas
litorâneas pantanosas que dão para o mar de Azov. As margens deste mar dão para
a Ucrânia, a noroeste, e para a Rússia, a sudeste. Mas esta frente está mais
calma que aquela na região do Donbas. O mar e suas águas, que as unem, também
as separam.
Por ora, as demais frentes de conflito, envolvendo a
OTAN, os Estados Unidos e seus aliados na Europa, de um lado, e a Rússia, do
outro, ainda estão se atritando sobre mesas de negociação que, se são
precárias, não deixam de acenar com a possibilidade de uma ação diplomática que
neutralize o risco do conflito armado.
Estratégia dos aliados
Ambos os lados parecem apostar no que desponta como
possíveis fragilidades dos contendores. A economia russa está estagnada desde
2014, e o país depende das exportações de gás para países da Europa, inclusive
as vitais para a Alemanha. A OTAN, os Estados Unidos e seus aliados mais
próximos, como o Reino Unido, parecem apostar em que a economia russa não
resistiria a um conflito militar prolongado, nem às sanções econômicas que dele
decorreriam.
Por sua vez a Rússia parece apostar nas divisões dos
oponentes. Países europeus mais próximos dos Estados Unidos, inclusive, de
novo, a potência econômica alemã, dependem das importações do gás russo, por
exemplo. Isto vem provocando divergências sobre como reagir através de sanções
a uma possível invasão da Ucrânia pela Rússia. Se o Reino Unido vem enviando
armas para Kiev, a Alemanha se negou a fazer o mesmo na semana passada. A
Europa se vê fragilizada por uma inflação crescente, em cujo vórtice está o
aumento galopante dos custos de energia.
O próprio presidente Biden admitiu que há dúvidas sobre a
intensidade das reações militares ou econômicas, dependendo do tipo de invasão
que possa ocorrer, se mais ou menos limitada.
O presidente dos Estados Unidos está numa posição
enfraquecida internamente, pressionado pela agressiva disposição de seus
adversários do Partido Republicano para vencer as eleições legislativas de
novembro deste ano. No Reino Unido Boris Johnson não está numa situação melhor,
graças ao “partygate” - as investigações sobre festas na sua residência oficial
durante a pandemia.
E se a OTAN não abre mão do que vê como seu “direito” de
se expandir para os países da antiga órbita da ex-União Soviética, também há dúvidas
dentro dela sobre como reagir no caso de um conflito armado. Nisto há uma
certeza: o Exército ucraniano não é páreo para o russo.
Uma medida das dificuldades internas da OTAN apareceu
durante o fim de semana: o chefe da Marinha alemã, vice-almirante Kay-Achim
Schönbach, teve de renunciar depois de dizer que a ideia de que a Rússia quer
invadir a Ucrânia “é um absurdo”, e que o que Vladimir Putin deseja é
“respeito”. Além disto, cometeu a heresia de dizer que a Crimeia jamais voltará
à Ucrânia.
Em meio a este mar encapelado de incertezas, há uma
certeza: nos tempos recentes a paz nunca esteve tão dependente de apenas um fio
de esperança. E podemos estar à beira de um conflito militar que não interessa
a ninguém, exceto àqueles que nos tempos da Guerra Fria eram chamados de “os
Falcões” - “the Hawks” - de todos os lados, a começar pela indústria bélica e
os militaristas, mas passando hoje também pelos centros de inteligência e
serviços secretos para quem os povos não passam de peões subalternos ou até irrelevantes
no tabuleiro de suas operações.
Flávio Aguiar, RFI
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