Para especialistas, pandemia e governo Bolsonaro somente acentuaram histórica desigualdade brasileira, com aumento exponencial da fome. Melhorar distribuição de renda é tarefa urgente para próximo governo, afirmam.
Com um ano eleitoral pela
frente, os mais graves problemas brasileiros precisam ser colocados em debate.
Especialistas ouvidos pela DW Brasil apontaram a histórica desigualdade social,
a volta ao mapa da fome e a educação precária como pilares fundamentais que
precisam ser atacados com políticas públicas e propostas sérias.
"O maior problema do
Brasil hoje é o aumento exponencial de pessoas passando fome e de pessoas em
situação de insegurança alimentar", afirma a cientista política Camila
Rocha, autora do livro Menos Marx, Mais Mises: O Liberalismo e a Nova Direita
no Brasil. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional, 55% da população brasileira vive em situação de
insegurança alimentar.
"Isso ocorreu por uma
combinação da retração econômica, permeada pelo aumento dos preços de alimentos
básicos e gás de cozinha, com a inabilidade de combater a pandemia entre
pessoas em situação de vulnerabilidade social", diz Rocha.
Ela defende que as soluções
possíveis são a ampliação de programas de transferência de renda e aumento de
benefícios. "Porém, isso necessariamente precisa ser acompanhado de uma
retomada do crescimento econômico", enfatiza. "Do contrário, tais
medidas podem ficar comprometidas a médio prazo.”
O historiador Marco Antonio
Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos e autor de Um País
Chamado Brasil, concorda com o ponto de que a fome "voltou a ser um
gravíssimo problema nacional". "Milhões estão literalmente passando fome",
diz.
"Sucintamente, é a
péssima distribuição de renda que aprofunda a desigualdade social",
contextualiza ele, que entende como "tarefa primeira, para ontem" a
necessidade de que o próximo governante eleito "coloque o dedo na péssima
distribuição de renda que gera essa terrível desigualdade social e, por
consequência, a fome".
"Este foi o Natal da
fome, tristemente. Parece a comemoração, entre aspas, dos três anos do governo
[do presidente Jair] Bolsonaro", comenta Villa.
"Desigualdade
imoral"
Para o historiador Marcelo
Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão, a desigualdade
social brasileira sempre foi imoral "e se tornou mais imoral ainda em um
ambiente de pandemia sob um governo de extrema direita". "[O
problema] é a base de outras questões", explica.
"A pobreza é um
componente de qualquer país capitalista. A questão são os níveis de pobreza
minimamente aceitáveis", argumenta. "De que maneira governos que se
sucedem assumem ou não compromissos mínimos no combate a essa desigualdade?"
Galves afirma que tal
esforço depende de "políticas públicas permanentes" e estas foram
"brutalmente interrompidas" pela atual gestão. Como a fome não
espera, ele cobra uma "retomada imediata e a ampliação dessas políticas
públicas de redistribuição de renda". "Sem malabarismos financeiros
para turbinar orçamento em ano eleitoral. Precisamos de política social séria e
permanente", enfatiza.
O jornalista, economista e
cientista político Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo (USP), vê a "questão social de
pobreza e crescimento da fome" dentro de um contexto de de "crise
política e descrença nas instituições".
"Isso dá margem a uma
série de violências e também a discursos populistas", comenta. "E
2022 vai ser decisivo porque veremos como vamos lidar com isso. A população vai
votar com todos esses riscos institucionais que Bolsonaro representa. Vamos ver
se a escolha será pela civilidade ou pela barbárie."
O sociólogo e cientista
político Rodrigo Prando, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie
contextualiza as mazelas brasileiras a partir da própria formação histórica do
país. "Economicamente, [o país foi construído por] essa estrutura social
de grandes propriedades de terra, escravidão e monocultura voltada para a
exportação", enumera. "Em termos econômicos, isso fez com que o
Brasil se tornasse um país pobre, extremamente desigual."
Além disso, por conta do
passado colonial e pré-republicano, o país teve um capitalismo tardio,
industrializando-se no século 20. "Assim, a sociedade brasileira se
desenvolveu ao longo do século 20. E não houve distribuição de renda: a
concentração continuou nas mão de uma elite", pontua.
"Resultado: o Brasil
ainda apresenta extrema pobreza em algumas regiões e uma desigualdade enorme.
Em uma pista de corrida, a esfera econômica avançou, mas a cultura e a educação
não se desenvolveram na mesma velocidade", diz ele.
"Educação precária
sustenta círculo vicioso"
Nesse sentido, a educação
precária perpetua um sistema deficitário. "A pandemia não mostrou nada de
novo, apenas agudizou a situação, os problemas que temos ao longo do
tempo", comenta Prando. "As crianças pobres das escolas públicas
foram mais prejudicadas do que as crianças ricas das particulares, as regiões
Norte e Nordeste tiveram crescimento menor do que o Sudeste, os negros foram
mais atingidos pela covid e morreram mais. Isso explicitou uma estrutura social
bastante desigual."
Para o pesquisador David
Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, e autor do
livro Tecnologia do Oprimido: Desigualdade e o Mundano Digital nas Favelas do
Brasil, os problemas do Brasil atual têm como base o acesso à educação.
"Infelizmente, temos
uma educação, a pública e até mesmo a particular, muito precarizada", diz
ele. "E hoje as soluções apresentadas pelo governo para resolver esse
problema são péssimas. O governo [federal] pensa em militarizar a educação, o
que é inconcebível. Outra agenda que os bolsonaristas e parte do Congresso
tentam o tempo todo passar é a do homeschooling [ensino domiciliar]."
Nemer avalia que isso é uma
maneira "de o governo retirar verba das escolas públicas", delegando
às famílias a responsabilidade financeira do ensino. "E isso é obrigação
do Estado, não adianta", acrescenta.
Um terceiro movimento que
ele vê é o da "evangelização da educação" — nesse sentido, vale
ressaltar que o atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, é pastor da Igreja
Presbiteriana do Brasil. "A educação tem de ser para pensamento livre,
crítico o tempo todo, não imposto", defende Nemer. "Mas são essas as
soluções que este governo pensa", diz o pesquisador.
E ao trazer a educação para
o centro do debate, ele frisa que o acesso ao ensino é a ponta de um iceberg.
"A maioria que estuda em escola pública não tem segurança alimentar, não
tem segurança física, vive em área de risco e o Estado o tempo todo negligencia
essas pessoas", afirma. "A educação precária sustenta o círculo
vicioso da desigualdade social."
Corrupção sistêmica
O filósofo Luiz Felipe
Pondé, diretor do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e professor da Fundação Armando Álvares
Penteado, prefere escolher a própria "política brasileira" como o
maior problema do país — citando "as duas mais prováveis opções que
teremos para 2022".
"Uma é Bolsonaro, que
se revelou uma catástrofe. Outra é o retorno do PT [Partido dos Trabalhadores,
do ex-presidente Lula da Silva], que é muito responsável pelo buraco em que a
gente está, uma verdadeira gangue que provavelmente vai voltar ao poder porque
a outra opção se revelou pior do que ela."
Pondé classifica essa
situação como "um problema agudo” e diz que a corrupção "é sistêmica
e envolve todos os Poderes". "Solução para isso? Talvez daqui a mil
anos", afirma.
Edison Veiga, DW
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