Governos e empresas que trabalham com combustíveis fósseis têm insistido na ideia de que o gás natural é a ponte para um futuro calcado na energia limpa. Mas será que ele pode ser realmente "verde”?
Há muito tempo o gás natural não serve apenas para
cozinhar, mas também para aquecer casas e empresas durante o inverno, além de
ser cada vez mais utilizado para produzir eletricidade. Somente nos Estados
Unidos, em 2020 esse combustível fóssil respondeu por 34% do consumo de energia
e foi a principal fonte de geração de eletricidade.
Agora, à medida que o mundo caminha para a eliminação
gradual da energia provinda do carvão, essas três letras são saudadas como um
herói climático em plena expansão. Mas a afirmativa procede?
A lenda do gás limpo
Na verdade, não. Ele não é uma energia limpa, como a
Comissão Europeia deu a entender no início de janeiro, ao propor classificar o
gás e a energia nuclear como bons para o meio ambiente.
É verdade que o gás gera cerca de 50% menos emissões
de CO2 do que o carvão mineral quando produz eletricidade, mas ele também
provou ser a fonte de gases do efeito estufa que mais cresceu no planeta na
última década – uma trajetória que deve continuar.
Na União Europeia, o gás é a segunda maior fonte de
emissões carbônicas depois do carvão, e representa cerca de 22% da produção
global de CO2.
E isso não é tudo: o público ouve com insistência cada
vez maior que o gás é necessário à transição para um futuro de energia limpa. A
teoria é que, sendo mais limpo do que outros combustíveis fósseis, ele ajudaria
a suprir o déficit de energia causado pela iminente e eliminação progressiva do
carvão.
A realidade, contudo, é que, enquanto combustível fóssil,
o gás natural também causa mudanças climáticas. Por isso, o Partido Verde
Europeu ameaça processar a Comissão Europeia por sua pressão para classificar
como sustentáveis alguns investimentos em gás. Enfim: o gás natural já está
sendo descrito como o "novo carvão”.
Metano e insegurança energética
O gás natural é um hidrocarboneto combustível composto
principalmente de metano, que é cerca de 28 vezes mais poluente do que o
dióxido de carbono e propenso a vazar de gasodutos e tubulações.
É um combustível fóssil não renovável encontrado nas
profundezas do solo, em meio ao xisto e outras rochas, e muitas vezes na
proximidade do petróleo. É usado para gerar energia, mas também como
matéria-prima química para plásticos e fertilizantes, e a atual corrida
ilimitada por esse material pode resultar no esgotamento das reservas de gás
natural dentro de cerca de 50 anos.
Portanto o conceito de usar o gás como
"combustível-ponte" para um futuro de energia limpa não é um
raciocínio de longo prazo: um dia, não muito longínquo, ele se esgotará. Nesse
meio tempo, alega-se, ele traria segurança energética à humanidade.
A dificuldade de obter gás explica a forte dependência
da Europa em relação à Rússia por esse combustível fóssil. Como ele é bombeado
e enviado para longas distâncias, a imensa infraestrutura exigida aumenta seu
custo, e também a quantidade de CO2 emitido.
A geopolítica é outro problema: o atraso para
finalizar a obra e conectar o gasoduto Nord Stream 2 da Rússia à Alemanha, em
meio a crescentes ameaças de guerra na Ucrânia, é um exemplo. Está tudo pronto,
mas o gás não é enviado. Os preços do combustível disparam à medida que o
fornecimento diminui.
A própria Alemanha é tão dependente do gás para
combustível e aquecimento que está aberta a fornecimentos dos Estados Unidos, e
tem planejado construir novos terminais, extensos e custosos, para receber
remessas de gás natural liquefeito (GNL).
O problema é que as importações incluiriam gás obtido
por fraturamento, ou fracking. Consistindo na extração de gás ou petróleo de de
rochas e xistos em reservas subterrâneas, esse processo é nocivo ao meio
ambiente, por envolver produtos químicos tóxico.Além disso, libera grande
quantidade de metano e é potencialmente um inimigo do clima ainda maior do que
o carvão.
Muitos países europeus, como a Alemanha, proibiram a
prática, mas um dia o GNL americano extraído por fracking pode vir a substituir
o gás russo.
Por que não abandonar simplesmente o
gás?
A União Européia acredita que, com o tempo, seja
possível remanejar a infraestrutura do gás natural, nova e já existente, para
combustíveis "de baixo carbono", como hidrogênio e biogás. Pelo menos
esse era o tom de uma recente proposta da Comissão Europeia para descarbonizar
os mercados de gás.
Em teoria, tudo parece em ordem. No entanto: a) isso
significaria queimar muito hidrocarboneto no curto prazo; e b) gases limpos
como o hidrogênio "verde" continuam sendo um sonho, em parte porque
só podem ser produzidos com as fontes renováveis necessárias para alimentar o
processo de transição energética.
Assim, críticos apontam que os debates sobre a
"transição verde do gás" têm
sido um passe para empresas de combustíveis fósseis fazerem uma "lavagem
verde" (greenwash) de seus negócios danosos ao clima.
"O gás natural não é um combustível de transição.
É um combustível fóssil", pontificou Bill Hare, diretor executivo da ONG
Climate Analytics, durante a COP26, em novembro, na Escócia. Para ele, o gás
deve ser tratado como carvão e abandonado gradativamente, o mais rápido
possível.
Qual é a alternativa à "ponte de
gás"?
Em 2021, especialistas afirmaram que a energia solar
era atualmente a "eletricidade mais barata da história", e que até
2050 ela e a eólica seriam capazes de cobrir 100 vezes a demanda mundial de
energia.
Portanto há alternativas. Ainda assim, a Austrália
está anunciando uma "recuperação da pandemia movida a gás", e a
Europa faz campanha veemente por sua "ponte de gás" para um futuro
energético limpo e radiante.
Há quem diga que essa promoção exagerada do gás
natural é uma receita para um "impasse do carbono", que apenas
atrasará a transição energética. Pois todo o capital e a infraestrutura
investidos nessa transição à base de gás implicam o combustível fóssil
continuar sendo extraído, a fim de compensar o investimento.
Por outro lado, esse mesmo dinheiro poderia ter sido
alocado em energias renováveis que descarbonizariam diretamente o fornecimento
de energia. E seria energia com que, ainda por cima, se pode cozinhar.
Vinícius De Andrade, DW
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