Desde pelo menos 2015, os
membros do tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)
travam um debate intercorrente sobre a forma mais efetiva, em termos
dissuasórios, de se aplicar sanções pecuniárias a empresas condenadas por
infrações concorrenciais.
O tema andava adormecido
nos últimos meses, mas voltou à tona após a decisão do tribunal em 9 de
dezembro de 2020, por maioria de 4 a 3, de aplicar uma multa a empresas
condenadas por cartel em licitações de
ambulâncias (operação sanguessuga) baseada nos valores dos contratos fraudados
com a Administração Pública. A decisão foi inovadora por ter considerado
contratos ao longo de vários anos, quando, em situações análogas, a praxe do
Cade era de se limitar aos contratos de apenas um dos anos da conduta, ora
escolhendo o ano de maior valor dos contratos, ora calculando médias ao longo
de todo o período [1].
Discutiu-se intensamente se essa nova forma de multar empresas constituiria a
tal "vantagem auferida" referida nos artigos 37 e 45 da Lei 12.529/2011
como base para a sanção pecuniária [2]. A conselheira relatora, Paula Azevedo,
entendeu que sim, e foi acompanhada pelo conselheiro Luís Braido, único
economista na banca, que concordou ser esta uma forma válida de calcular
multas. Em voto divergente, o conselheiro Maurício Maia afirmou não se tratar
de vantagem auferida, que essa metodologia já havia sido utilizada pelo
tribunal anteriormente, e adotou exatamente a mesma regra, discordando da
relatora apenas quanto à alíquota aplicada, baixando-a de 20% para 19,5%. Por
fim, o presidente do Cade, Alexandre Barreto, destacou que essa era a primeira
vez que tal método era utilizado pela maioria. Percebe-se, portanto, que não
ficou claro se a multa foi ou não estimada com base na vantagem auferida.
Afastar essa confusão requer, inicialmente, a compreensão de que há, na
realidade, três métodos sendo discutidos simultaneamente, e não dois.
O primeiro deles seria o método historicamente adotado pelo Cade. A maioria do
tribunal sempre entendeu que o artigo 37 o comandava a multar as empresas
condenadas em algum valor entre 0,1% e 20% do faturamento da empresa no ramo de
atividade no ano anterior à instauração do processo administrativo (PA). No
entanto, como ramo de atividade é um conceito jurídico indeterminado, definido
fracamente em uma resolução do próprio Cade e que, na maioria das vezes,
implica valores superiores ao faturamento no mercado afetado [3], o Cade tem
optado por se limitar a multas de até 20% do faturamento da condenada com os
produtos alvo do cartel, no ano anterior à instauração do PA. Embora
questionável juridicamente, a redução da base de ramo de atividade para
produtos afetados faz sentido econômico. No entanto, como a maioria dos cartéis
e de outras condutas anticoncorrenciais têm duração superior a um ano, a
limitação simultânea ao faturamento com o produto afetado e a apenas um ano da
conduta implica, na maioria das vezes, multas inferiores aos ganhos com a
conduta - o que, por racionalidade econômica, compromete seu poder dissuasório
e, por racionalidade jurídica, contraria as orientações de dosimetria do artigo
45 da mesma lei.
Uma alternativa seria ser fiel ao comando legal e tentar estimar a vantagem
auferida, para, então, aplicar uma multa não inferior a esse valor. O Cade
sempre afastou esse caminho por entender impossível o cálculo da vantagem
auferida. De fato, esse cálculo, na caprichosa precisão que alguns entendem
necessária para afastar riscos jurídicos, é impossível. Mas a Lei 12.529 não
fala em cálculo e, sim, em estimativa. Seria possível estimar tal vantagem e
usá-la como limite mínimo para aplicação da multa. Ainda assim, estimativas
envolvem premissas, parâmetros e probabilidades, conceitos com os quais a
comunidade jurídica no Brasil não está preparada para lidar.
Por fim, existe uma terceira via. Essa alternativa é adotada pelas mais
importantes jurisdições antitruste do mundo [4] e foi recomendada ao Cade pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em processo de
peer review concluído em 2019 [5], quando o Brasil foi admitido como membro
permanente ao comitê de concorrência da organização. Ela seria uma
"solução de compromisso" entre aplicar uma multa suficientemente
dissuasória e proporcional, por um lado, e evitar a dificuldade de realizar
cálculos complexos baseados em premissas e probabilidades, por outro. Consiste,
resumidamente, em aplicar a alíquota (de até 20%) sobre o faturamento da
empresa com os produtos afetados pelo cartel durante todo o período de sua
duração. Note-se que a única diferença para a prática atual do Cade é a
consideração de todo o período da conduta, e não de apenas um ano. Foi
justamente isso que fez a maioria do Cade ao acompanhar o voto da conselheira
relatora Paula Azevedo [6].
Alguns alegarão que a lei não autoriza o Cade a aplicar multas usando essa
metodologia, pois o artigo 37 exige que a multa se baseie no faturamento de
apenas um ano, aquele anterior ao início da acusação formal. Esse raciocínio é
equivocado, pois o artigo 37 não determina como a multa deve ser calculada, mas
apenas seus limites superior e inferior. E o limite superior, como discutido,
se baseia no faturamento no ramo de atividade, grandeza superior ao faturamento
com o produto afetado. Assim, para a grande maioria dos casos é possível, respeitando
o comando legal, ampliar a dimensão temporal do cálculo da multa sem atingir o
teto legal. A multa levará em consideração um período superior a um ano, mas um
faturamento inferior ao do ramo de atividade, limites legais da sanção
pecuniária. Uma alteração legislativa para deixar isso mais claro seria
bem-vinda, mas não é necessária.
Curiosamente, no referido julgado o Cade entendeu que tal metodologia poderia
ser aplicada nos casos em que não seja possível usar o tal método tradicional,
por ausência de informação nos autos sobre o faturamento no ramo de atividade
no ano anterior à instauração do processo. Ou seja, o Cade afirma (por ora) que
a metodologia compatível com a teoria econômica e com os julgados antitruste ao
redor do mundo são, no Brasil, uma incomum exceção.
Mas a iniciativa não deve ser menosprezada. É um passo importante na direção de
conferir maior racionalidade às sanções pecuniárias, atingir de forma eficiente
os objetivos da defesa da concorrência e convergir com as melhores práticas
internacionais. Por tudo isso, a decisão deve ser louvada.
Por fim, ainda que particular ao Cade no presente contexto, a dosimetria em
julgados de infrações à ordem econômica é uma questão geralmente mal resolvida
nos meios judiciais e regulatórios brasileiros. Essas condutas envolvem,
sempre, a busca e a potencial obtenção de alguma vantagem econômica pelo
infrator. Ter alguma noção desse ganho, ainda que imprecisa, é fundamental para
a aplicação de sanções ao mesmo tempo dissuasórias e proporcionais. Assim vem
entendendo o Tribunal de Contas da
União para casos de lesão à Administração Pública, e assim é a
praxe no direito consumerista, que define a indenização a partir do dano
sofrido pelo consumidor. As agências reguladoras (o Cade inclusive) e as
instâncias judiciais que revisam suas decisões precisam acompanhar tais avanços
institucionais. Com sua decisão no cartel das ambulâncias, o Cade mostrou que
isso é possível.
[1] Vide voto público do C. João Paulo de Resende
no Requerimento nº 08700.003679/2016-89, em
https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yPcyKjWeeokgEXyoil3sce73YA-p2zvA1WcadoUp7amHc2Aaw5eMrhsX52Z7cdssjzbwJXkLxmZ6lXonmlDH0u6#_Toc530994905
[2] No artigo 37 como limite mínimo para a multa, e no artigo 45 como base para
o cálculo da multa.
[3] Por exemplo, o cartel pode ocorrer no mercado de sistemas de injeção
eletrônica, enquanto o ramo de atividade aplicável seria peças
automobilísticas. Uma empresa que fabrica mais de um tipo de peça teria uma
base de multa muito superior a uma empresa que fabrica apenas a injeção
eletrônica.
[4] Alguns exemplos: Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia, Alemanha,
França, Japão, Coréia do Sul, Austrália.
[5] OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil 2019:
https://www.oecd.org/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-and-policy-brazil-2019.htm
[6] E, conforme supracitado, também pelo voto dissidente, divergindo apenas
marginalmente na alíquota.
Por João Paulo de Resende,
no Consultor Jurídico (com adaptações)
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