Maior acesso a educação, organização para reagir a ameaças e pragmatismo eleitoral explicam resultado nas urnas, apontam pesquisadores. Parcela de mulheres entre indígenas eleitos mais que dobrou em relação a 2016.
A eleição de 2020 trouxe boas notícias para os povos
indígenas do Brasil, que vinham enfrentando uma série de revezes sob o governo
Jair Bolsonaro. Foram eleitos 237 representantes de povos originários para os
cargos de vereador, vice-prefeito e prefeito, 28% a mais do que na eleição
municipal anterior.
O percentual de indígenas vitoriosos sobre o universo
total de pessoas eleitas também cresceu. Neste ano, os indígenas foram 0,34% de
todos os eleitos, contra os 0,26% de há quatro anos. A cifra é pequena, mas
também é baixo o percentual de pessoas que se declaram indígenas: 0,47% da
população brasileira, segundo o último Censo, de 2010.
E houve alta na representatividade das mulheres
indígenas. Em 2016, foram eleitas 15 mulheres de povos originários no Brasil,
8% de todos os indígenas eleitos naquele ano. Em 2020, foram 41 mulheres
eleitas, que representam 17% de todos os indígenas que terão cargos eletivos
municipais a partir de janeiro.
A expansão também ocorreu no número de candidatos
indígenas de ambos os gêneros: havia o nome de 2.216 deles nas urnas neste ano,
alta de 29% em relação ao último pleito municipal. Os dados, preliminares,
foram compilados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e pelo Instituto
Socioambiental.
Por trás desses números, estão algumas histórias de
impacto, como a de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, cidade com o maior
percentual de indígenas no país. O prefeito e a vice-prefeita eleitos neste ano
são indígenas, assim como dez dos 13 vereadores.
Em Uiramutã, em Roraima, o prefeito, o vice-prefeito e
seis dos nove vereadores eleitos são indígenas. O resultado tem um significado
especial no município, criado em 1995 pelo governo roraimense justamente para
atrapalhar o exercício de direitos dos povos indígenas locais, diz o
antropólogo Stephen Baines, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Ele conta que Uiramutã foi desmembrada naquele ano de
outro município maior, Normandia, com o objetivo de dividir a terra indígena
Raposa Serra do Sol entre vários municípios e dificultar o processo de
homologação, que confirmaria o direito dos povos sobre o seu território.
Mesmo assim, a terra indígena Raposa Serra do Sol foi
homologada em 2005, com decisão mantida em 2009 pelo Supremo Tribunal Federal
após questionamento do governo de Roraima.
"Os indígenas não conseguiram impedir que o
município fosse criado, mas preparam pessoas para se candidatarem e agora
controlam a prefeitura e, pela primeira vez, a Câmara da cidade", diz
Baines.
Organização
e reação
De acordo com os pesquisadores ouvidos pela DW, o
aumento do espaço ocupado por indígenas em cargos municipais é resultado do
maior acesso à educação formal para esses povos, da consciência de que eles
precisam disputar essas posições para reagir a ameaças às suas terras e de um
crescente pragmatismo sobre como fazer política e a quais partidos se filiar.
Baines destaca a presença de indígenas no sistema
educacional, facilitada por projetos que permitiram a eles cursar o ensino
médio em suas próprias comunidades, e seu crescente ingresso no ensino
superior. Em 2010, 2.723 novos alunos indígenas se matricularam em faculdades.
Em 2017, dado mais recente disponível, foram 25.670.
Outro fator, diz, seria uma reação a “ataques"
dirigidos aos povos indígenas pela bancada ruralista, que segundo ele teriam
começado no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, com a diminuição no ritmo
de demarcações, avançado pela gestão de Michel Temer e se agravado
"radicalmente" com a eleição de Bolsonaro.
"Há um crescente interesse dos indígenas em
ocupar cargos políticos, que os veem como uma das maneiras de enfrentar as
violações de seus direitos", afirma o professor da UnB.
A participação deve continuar a se expandir nos
próximos anos, devido ao refinamento das estratégias eleitorais adotadas pelos
indígenas, diz o antropólogo Luís Roberto de Paula, professor da Universidade
Federal do ABC, que pesquisa desde 1995 a atuação de indígenas em eleições
municipais.
"Esse fenômeno caminha junto com a reorganização
do movimento indígena e a fundação de suas associações. Leva-se tempo para
dominar os códigos burocráticos dos 'brancos', que não são fáceis. As
candidaturas no nível local são um fenômeno antigo, vêm desde os anos 1970. Mas
a efetividade das campanhas, que era baixa, vem se intensificando a passos
largos", afirma.
Ele aponta que muitos povos têm melhorado sua
capacidade de analisar o contexto político municipal, como as forças locais se
posicionam, a chance de cada partido superar o coeficiente eleitoral e qual a
melhor estratégia no lançamento de candidaturas.
De Paula cita o exemplo do povo Potiguara, no
município de Marcação, na Paraíba, como um dos que acumularam mais experiência
em participar de eleições municipais. Neste ano, eles lançaram 27 candidatos e
elegeram o prefeito e oito dos noves vereadores da cidade, taxa de sucesso de
33%.
Em contrapartida, alguns povos ainda fragmentam seu
votos em mais candidaturas do que o ideal, reduzindo a votação individual de
todos e a efetividade das campanhas. Como em Japorã, no Mato Grosso, onde o
povo Guarani elegeu apenas um dos seus 41 candidatos.
Preferência
partidária
A escolha da legenda pelos indígenas envolve não
somente a preferência partidária e identidade com o programa, mas o cálculo de
qual partido oferece a melhor estrutura local e chances de vitória.
Tradicionalmente, o PT é o partido preferido dos
candidatos indígenas. Da década de 1970 até as eleições de 2016, o PT somou 104
mandatos eletivos desses povos, seguido pelo PMDB, com 75, segundo levantamento
feito por De Paula.
Neste ano, pela primeira vez, o PMDB superou o PT em
mandatos municipais conquistados por indígenas, com 27 vitórias, duas a mais
que o PT. Em seguida, estão PSD, com 21, PP, com 20, e DEM e Republicanos,
empatados com 16 cada um.
"O PT tem tradição de apoio a esses movimentos,
capilaridade, estrutura partidária e simpatia ideológica de muitos indígenas.
Mas as candidaturas dos indígenas acompanham o movimento geral da política
partidária no país, e neste ano houve uma inflexão para a direita. O DEM, que
em 2016 teve cinco eleitos, neste ano teve 16", diz.
O pragmatismo eleitoral tem mais peso nas disputas
locais, onde o que importa é o voto da própria comunidade e o atendimento a
demandas práticas, como consertar uma ponte quebrada dentro da terra indígena
ou melhorar o atendimento de saúde.
"O indígena pode até ter simpatia pela Rede, que
tem um interesse evidente na causa, mas aí o partido não tem nem um diretório
municipal na cidade. Ele faz uma análise estratégica local", diz.
Nas candidaturas a deputado estadual ou federal, o
cenário é diferente. Para se eleger, o indígena precisa ampliar sua votação e
atrair também o apoio dos não indígenas. Nesse caso, a estratégia é deslocar a
pauta para questões nacionais e globais, como demarcações, preservação do meio
ambiente e mudanças climáticas.
Foi o caso da campanha vitoriosa de Joenia Wapichana ,
eleita em 2018 a primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, pela
Rede de Roraima. Ou da escolha de Sonia Guajajara , no mesmo ano, para ser vice
da chapa à Presidência da República liderada por Guilherme Boulos, do Psol.
Avanço
feminino
Dentro da expansão da representação indígena, ocorre
também um processo de conquista de poder pelas mulheres, resultado da maior
escolaridade e de um processo de transformações nas comunidades locais.
"As mulheres têm ocupado cada vez mais um espaço
que tradicionalmente era dos homens indígenas. Isso aparece nas aldeias, nas
associações, no aumento do número de cacicas", diz De Paula.
Uma delas é Marlene Kaxinawá, 50 anos, eleita pelo DEM
a primeira mulher indígena vereadora de Santa Rosa do Purus, no Acre. Ela diz
que sua candidatura foi resultado de um longo processo de conversa e
articulação com o seu povo, os Hunikuin, até que eles decidissem lançar uma
mulher à Câmara Municipal da cidade.
"Era muito difícil para uma mulher indígena ser
eleita. Tivemos que estudar e fazer vários encontros para ocupar esse
espaço", diz. Kaxinawá afirma que era comum ouvir dos homens que as
mulheres indígenas eram tímidas demais para um cargo eletivo.
"Muitas não tinham coragem, não tinham o
empoderamento, o conhecimento. Mas fomos entendendo que as mulheres tinham que
ocupar essa cadeira sim", diz.
Em uma reunião com membros de seu povo, em fevereiro
deste ano, os próprios homens chegaram à conclusão que era hora de fazer uma
mulher vereadora, uma "mulher guerreira".
"Aí eu mostrei a minha força, e consegui. E aqui
estou", diz Kaxinawá. Sua prioridade será atuar na saúde e na educação dos
Hunikuin, e trabalhar para conscientizar novas mulheres indígenas a se
candidatarem no futuro.
A Câmara Municipal de Santa Rosa do Purus tem nove
cadeiras, das quais cinco serão ocupadas por indígenas a partir de 2021.
Evolução
histórica
Conforme o mapeamento dos pesquisadores, a
participação dos indígenas nos processos eleitorais começa em 1976, quando sete
candidatos a vereador se lançaram no país e um foi eleito para a Câmara de
Mangueirinha, no Paraná, o cacique Ângelo Kretã.
Em 1982, Mario Jurua foi eleito o primeiro indígena
deputado federal, pelo PDT, em uma articulação liderada pelo antropólogo Darcy
Ribeiro e apoiada por Leonel Brizola. Apesar de ter nascido em um município de
Mato Grosso, Jurua foi lançado pelo estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de
ampliar a votação e obter o apoio de não-indígenas que apoiavam a causa.
Um dos primeiros prefeitos indígenas foi João Neves,
do povo Galibi-Marworno, eleito em 1996 em Oiapoque, no Amapá. Em 2014, o
Tribunal Superior Eleitoral começou a incluir o registro de cor e raça nas
candidaturas, o que facilitou a análise da participação dos povos indígenas nas
eleições.
Em 2018, Wapichana foi eleita a primeira mulher
indígena deputada federal, e Guajajara foi a primeira mulher indígena candidata
a vice-presidente.
Por
Bruno Lupion, na Deutsche Welle
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