Eu cobri o mercado de auditoria independente no Brasil durante muitos anos e uma das preocupações que mais ouvia, ao longo desse período, era sobre a responsabilidade ilimitada a que estão sujeitos os sócios dessas empresas.
Para ficar claro, significa dizer que, em caso de
processo com responsabilização da firma por um erro ou coisa do tipo, as
penalidades poderiam avançar sobre o patrimônio pessoal dos sócios, no caso de
os recursos em nome da empresa serem insuficientes para pagar a multa ou
reparar o dano. Isso é diferente do que ocorre na maior parte das empresas do
país e do mundo, em que a responsabilidade é “limitada”. O sócio perde, no
máximo, o dinheiro que aportou para entrar na sociedade.
Na semana que passou, porém, os auditores
brasileiros tiveram uma boa notícia a esse respeito. Calma, a instrução CVM
308, que trata disso, não foi alterada sem que ninguém tivesse notado. Ela
segue com o texto rigorosamente igual. A boa nova veio do julgamento realizado
pela diretoria da CVM sobre o trabalho dos
auditores que atestaram a aderência dos balanços da Petrobras às normas contábeis
entre 2009 e 2014.
A KPMG e o sócio responsável na época exerceram a
tarefa referente aos exercícios de 2009 a 2011. E a PwC cumpriu o trabalho depois.
No julgamento da KPMG, a auditoria foi multada em
R$ 300 mil e o sócio em R$ 150 mil, por apenas uma das diversas acusações
apresentadas. No caso da PwC, tanto a empresa como seu sócio foram inocentados
de todas as condutas questionadas, em votação por maioria.
Nos dois casos, o relator foi o diretor Henrique
Machado. Ele votou pela condenação das duas empresas e dos dois respectivos
sócios que atuaram com maior responsabilidade no serviço. A penalização à KPMG
acabou sendo R$ 50 mil abaixo do proposto por ele. No caso da PwC, a pena
sugerida foi de R$ 800 mil para a empresa e de R$ 200 mil para o sócio. Mas a
maioria, a partir do voto da diretoria Flavia Perlingeiro, decidiu pela
absolvição.
E porque trata-se de uma boa notícia para os
auditores no Brasil? Ora, se num caso conhecido e de relevância como esse, em
que foram encontradas discrepâncias de tamanho vulto na empresa, os processos
resultaram em penas leves ou até mesmo absolvição total, o risco que os membros
da classe correm de perder seu patrimônio pessoal parece bastante
reduzido.
Isso não significa salvo-conduto para qualquer tipo
de atuação. O recado que fica é a necessidade de documentar detalhadamente o
processo de auditoria. Para que todo o aspecto formal esteja devidamente
atendido. Mas se digo que o julgamento foi bom para o sossego dos auditores, o
mesmo não se pode dizer do que ele representa para o mercado de capitais
brasileiro.
Como encontrar 3% de propina no orçamento
bilionário de investimentos da Petrobras talvez
fosse realmente difícil para o trabalho de
auditoria, a área técnica da CVM trouxe para o processo sancionador a demora
para a realização da baixa no valor dos investimentos na Rnest e no Comperj. Só
para dar a dimensão, quando a Petrobras finalmente
publicou seu balanço do 4o trimestre de 2014 realizou uma baixa de R$ 9,1
bilhões referente ao segundo trem da Rnest e de mais R$ 21,8 bilhões do
dinheiro que enterrou no Comperj.
Como nem todos sabem, os auditores não são
responsáveis por fazer os balanços das empresas. Os auditores tampouco são
responsáveis por assegurar a inexistência de fraudes contábeis. Como dizem em
seus relatórios, os auditores procuram “obter segurança razoável ” de que os
balanços “estão livres de distorção relevante, independentemente se causada
por fraude ou erro”. E
continuam: “segurança razoável é um alto nível de segurança, mas não uma
garantia de que a auditoria (...) sempre detecta as eventuais distorções
relevantes”. E concluem dizendo que uma “distorção relevante” é aquela capaz de
influenciar as decisões econômicas dos usuários (leitores) dos balanços.
Não sou dono da verdade, claro. Porém, me parece
difícil imaginar que, após todos os ajustes que a Petrobras teve que fazer na contabilidade não tenha havido
sequer uma falha no processo de auditoria contábil que fosse digna de
punição.
Lendo o relatório sobre os processos e os votos
proferidos, foi possível ver que o trabalho da
acusação e do diretor relator foram rigorosos, bem como o da diretora que
trouxe voto dissidente. Todos entraram no detalhe de cada decisão tomada na
época, analisando linha a linha das regras contábeis que deveriam ser seguidas
pela empresa, e ponto a ponto do regulamento que deve ser obedecido pelos
auditores.
E é aí que está a minha crítica. Ao olhar tanto
para o detalhe se perdeu de vista o todo e propósito das coisas. A
contabilidade não é um fim em si mesmo, e sim uma ferramenta de comunicação.
Seu propósito é apresentar informações financeiras fidedignas e úteis para
investidores tomarem decisões.
Já ao auditor cabe, como descrito acima, procurar
assegurar que as informações produzidas estejam livres de distorção
relevante.
O que o processo mostrou é que, bem antes da
Lava-Jato vir à tona, tanto os executivos da Petrobras quanto os auditores já tinham diversos sinais de
alerta sobre estouros de orçamento das duas refinarias, investigações do TCU e CGU e relatórios internos
indicando que o retorno econômico de tais investimentos só saía do vermelho com
base em marretadas nas premissas.
Que tipo de informação seria útil para o investidor
da Petrobras ao longo
dos diversos anos em que o cenário se repetiu e se agravou? Saber, por meio de
uma baixa contábil tempestiva, que os aportes que estavam sendo feitos naqueles
projetos superavam o retorno esperado. E em muitos bilhões.
E o que se esperava dos auditores? Que tivessem
postura questionadora, que desafiassem as premissas apresentadas e que
questionassem as escolhas feitas, e não apenas verificassem se existiam
explicações no papel. Principalmente quando elas parecessem ter sido norteadas
pelo “princípio da conveniência”.
Os itens de normas específicas, seja as de
contabilidade ou de auditoria, deveriam ser um guia para o atingimento final da
prestação de uma boa informação financeira. Mas quando sua aplicação leva a um
retrato distorcido da realidade, aquilo perde totalmente a razão de ser.
Permitir a inclusão de ativos pré-operacionais
claramente sobrevalorizados dentro uma única e gigante unidade geradora de
caixa de abastecimento, junto com refinarias antigas que não passaram pelo
necessário (?) processo de atribuição de novo custo (“deemed cost”), não
melhorava a informação que seria divulgada. Pelo contrário. Mas assim foi
feito, e as formalidades foram cumpridas por preparadores e auditores.
Uma coisa boa que Lava-Jato
trouxe para essa área foi o empoderamento do auditor para ele se sentir seguro
em não se contentar, por exemplo, com afirmações dos executivos das empresas
negando irregularidades, em
caso de denúncia. Foi um impulso positivo para aumentar a segurança no processo
de elaboração e checagem das informações financeiras. O julgamento da semana
passada, porém, tem poder para reduzir o exercício do ceticismo desse
profissional.
Por Fernando Torres, no Valor
Econômico
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