Em tempos em que a cultura é deixada à margem das políticas públicas, ganha relevância o papel da jurisprudência na interpretação e aplicação dos instrumentos jurídicos criados para fomentar a produção cultural.
Lamenta-se
a frequência com que são noticiados sucessivos cortes de incentivos financeiros
às instituições culturais, [1] propagadoras de conteúdo e valores tão
relevantes ao desenvolvimento social, às relações humanas, ao pensamento
crítico e à autorrealização individual. Daí se justifica a obrigação estatal de
"proporcionar os meios de acesso à cultura", insculpida no artigo 23,
V, da Constituição da República.
Entre
os instrumentos jurídicos mais efetivos no propósito de incentivar a cultura,
tem-se a Lei Rouanet, de 23/12/1991, que instituiu o Programa Nacional de Apoio
à Cultura ("Pronac"). Sua função, em linhas gerais, é propiciar a
captação de recursos para o setor cultural por meio de doações e patrocínios de
pessoas físicas ou jurídicas.
Nessa
linha, a Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo, aponta a Lei
Rouanet como a "[p]rincipal ferramenta de fomento à Cultura do
Brasil", [2] tendo como fim específico o estímulo da produção, da
distribuição e do acesso aos produtos culturais, além da proteção e da
conservação do patrimônio histórico-cultural brasileiro.
As
doações e patrocínios regulados pela Lei Rouanet são viabilizados mediante
renúncia fiscal da União Federal, ao dispor de valores que seriam recolhidos
pelo contribuinte a título de Imposto de Renda para destiná-los a projetos
culturais ou ao Fundo Nacional de Cultura - FNC.
O
TJ/RJ pronunciou-se sobre o tema neste ano, em acórdão até então não tratado
com destaque pela doutrina e, tampouco, recebeu os merecidos holofotes pelo
segmento cultural. No entanto, como se passa a expor, trata-se de importante
passo no reconhecimento da Lei Rouanet como relevantíssimo veículo de incentivo
à cultura.
Fundamentos do
acórdão da 4ª Câmara Cível do TJ/RJ e a impenhorabilidade de recursos regulados
pela Lei Rouanet
Pelo
voto da desembargadora Maria Helena Pinto Machado, a 4ª Câmara Cível do TJ/RJ
julgou neste ano recurso interposto por instituição cultural prejudicada por
decisão de primeira instância que determinou a penhora de 10% da sua receita
operacional bruta diária, a incluir recursos financeiros provenientes de
renúncia fiscal da União Federal regulada pela Lei Rouanet e depositados em
conta bancária específica para esse fim. [3]
Com
amparo no fundamento de que "todo processo executivo deve observar o
princípio insculpido na norma do artigo 805 do Código de Processo Civil/2015,
segundo o qual a execução deve ser promovida da forma menos onerosa ao
devedor", aquele órgão chegou a uma conclusão da máxima importância na
proteção das verbas destinadas à produção cultural.
Segundo
o acórdão, "[r]ecursos oriundos da Lei Rouanet são impenhoráveis, eis que
possuem natureza de verba pública e não integram o patrimônio particular da
entidade responsável por administrar tais valores, destinados à realização de
projetos culturais", sendo certo que "a penhora de percentual de
[...] renda bruta abrangerá receitas indisponíveis provenientes de renúncia
fiscal regulada pela Lei".
O
reconhecimento da impenhorabilidade dos recursos provenientes de doações e
patrocínios regulados pela Lei Rouanet no âmbito de uma execução entre
particulares, em certa medida, relembra como o direito público pode impactar
relações essencialmente regidas pelo direito privado. Naquele caso concreto
julgado pela 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, a despeito de se estar diante de uma
relação de crédito e débito entre duas partes privadas, o acórdão sopesou os
interesses em disputa e o interesse público na promoção da cultura,
identificando a necessidade de aplicar ao caso princípios e normas de direito
público.
Em
linhas gerais, pode-se dizer que a 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, ao interferir numa
relação obrigacional privada de modo a proteger o erário e o interesse em se
promover a cultura, ambos de caráter público e constitucionalmente defendidos,
sob a ótica da metodologia civil-constitucional, "opõe-se à clássica summa
divisio do ordenamento, cindido em direito público e direito privado". [4]
Parece
correto afirmar que os recursos concedidos sob a sistemática da Lei Rouanet, em
decorrência de sua origem de renúncia fiscal - que, portanto, atrai a natureza
de bem público - são inalienáveis e impenhoráveis, a partir de uma leitura
conjugada dos artigos 100, do CC, [5] e 833, inciso I, do CPC. [6]
O
TCU também já se pronunciou sobre o tema e reconheceu que os patrocínios e
doações concedidos por meio da Lei Rouanet têm natureza de "verba
pública", ressaltando que "[n]ão fosse pública a natureza de tais
verbas, não haveria amparo legal para obrigar os beneficiários a recolher os
saldos dos projetos a um fundo gerido pelo poder público". [7]
O
TCU ainda deixa claro que "[n]o âmbito [daquela] corte, é pacífico o
entendimento quanto à natureza pública dos recursos oriundos da renúncia fiscal
prevista nas leis de incentivo à cultura, em especial a Lei Rouanet".
A
IN 02/2019 do Ministério da Cidadania [8] também dispõe que "[a]s doações
e os patrocínios captados pelos proponentes em razão do mecanismo de incentivo,
decorrentes de renúncia fiscal tornam-se recursos públicos, e os projetos
culturais estão sujeitos ao acompanhamento e à avaliação de resultados".
Além
disso, por lei, a destinação de tais verbas é estritamente vinculada aos planos
de trabalho aprovados pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do
Turismo (função antes atribuída ao Ministério da Cultura), nos termos do artigo
19 da Lei Rouanet. [9] Ou seja, permitir a penhora de verbas oriundas da Lei
Rouanet - dando-lhes fim naturalmente desalinhado com o plano de trabalho e,
portanto, com a lei - significaria, em última análise, permitir que um
indivíduo (o exequente) sobreponha seu interesse não só ao interesse público,
mas também à vontade do legislador.
Observa-se,
ainda, que qualquer desvio na destinação dos recursos em desacordo com os
respectivos planos de trabalho pode ensejar a reprovação das contas dos
projetos, com drásticas consequências às instituições que recebem tais
recursos, como sanções pecuniárias e até mesmo a inabilitação para o
recebimento de novas doações e patrocínios por intermédio da Lei Rouanet, nos
termos do artigo 58 da IN 02/2019 do Ministério da Cidadania [10]. Relembre-se
que parte relevante das instituições culturais no Brasil dependem quase que
exclusivamente de recursos da Lei Rouanet, de modo que sua inabilitação pode
inviabilizar por completo suas atividades.
De
acordo com o artigo 20 da Lei Rouanet, e seus parágrafos primeiro e terceiro,
[11] os projetos aprovados são fiscalizados pelo Secretário da Cultura da
Presidência da República e pelo TCU, tendo os beneficiários dos recursos o
dever de prestar contas de sua aplicação, nos termos do artigo 29 da Lei
Rouanet. [12]
Assim,
a penhora da verba para o pagamento de dívidas estranhas ao projeto aprovado
pelo Poder Público traria ao executado ônus extremamente gravoso, o que parece
incompatível com o supracitado artigo 805 do CPC.
Há,
portanto, inúmeras razões que reforçam o entendimento da 4ª Câmara Cível do
TJ/RJ de que, naquele caso concreto, foi ilegal a penhora que recai sobre
verbas recebidas oriundas de renúncia fiscal sob os ditames da Lei Rouanet.
Conclusão
Como
dito, não há dúvidas de que as instituições culturais promovem valores
essenciais ao desenvolvimento social, às relações humanas, ao pensamento
crítico e à autorrealização do indivíduo. De tão relevante, o pleno acesso à
cultura é defendido na Declaração Universal dos Direitos Humanos [13] e na
Constituição Federal. [14]
Nesse
contexto, o acórdão da 4ª Câmara Cível do TJ/RJ, ao confirmar a
impenhorabilidade dos recursos públicos provenientes da Lei Rouanet,
apresenta-se como importante avanço na efetiva proteção de direitos assegurados
constitucionalmente, que deve nortear a atividade exercida pelo Poder
Judiciário.
Dada
a sua relevância e pertinência temática, o acórdão também inspira otimismo
quanto à sua possível aplicação a recursos destinados ao fomento à cultura
oriundos de renúncia fiscal regulados por leis estaduais e municipais, como é o
caso da Lei nº 7.035/2015, do Estado do Rio de Janeiro, e da Lei nº 5.553/2013,
do Município do Rio de Janeiro.
[1]
Por exemplo: 1) "Em ofensiva contra Ancine, Bolsonaro corta 43% de fundo
do audiovisual". Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/em-ofensiva-contra-ancine-bolsonaro-corta-43-de-fundo-do-audiovisual.shtml.
Acesso em 10.11.2021; 2) 'Corte em verbas estaduais para cultura afeta grupos
artísticos de Campinas e Valinhos' Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/04/05/corte-em-verbas-estaduais-para-cultura-afeta-grupos-artisticos-de-campinas-e-valinhos.ghtml.
Acesso em 10.11.2021; 3) "Com corte na Ancine, audiovisual terá a menor
verba em sete anos" Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/politica/com-corte-na-ancine-audiovisual-tera-a-menor-verba-em-sete-anos/.
Acesso em 10.11.2021; 4) "Para OSs, corte de verbas na cultura põe em
risco principais projetos paulistas" Disponível em:
https://cultura.estadao.com.br/blogs/joao-luiz-sampaio/para-oss-corte-de-verbas-na-cultura-poe-em-risco-principais-projetos-paulistas/.
Acesso em 10.11.2021; e 5) "Artistas se mobilizam contra cortes na
cultura". Disponível em:
https://istoe.com.br/artistas-se-mobilizam-contra-cortes-na-cultura/. Acesso em
10.11.2021.
[2]
Disponível em: http://leideincentivoacultura.cultura.gov.br/. Acesso em
9.11.2021.
[3]
Agravo de instrumento nº 0087282-76.2020.8.19.0000.
[4]
SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson Konder. Uma agenda para o direito
civil-constitucional. Editorial à Revista Brasileira de Direito Civil -
RBDCivil. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/42.
Acesso em 10.11.2021.
[5]
"Artigo 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial
são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei
determinar".
[6]
"Artigo 833. São impenhoráveis: I - os bens inalienáveis e os declarados,
por ato voluntário, não sujeitos à execução".
[7]
TC-003.894/2006-3, acórdão nº 1285, TCU Plenário, disponível em
https://portal.tcu.gov.br/lumis/portal/file/fileDownload.jsp?fileId=8A8182A14D7BBDF2014D8B6A13F2592F,
p. 309-312. Acesso em 23.11.2021.
[8]
Cujo objetivo é estabelecer "procedimentos para apresentação, recebimento,
análise, homologação, execução, acompanhamento, prestação de contas e avaliação
de resultados de projetos culturais financiados por meio do mecanismo de
Incentivo Fiscal do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)".
[9]
"Artigo 19. Os projetos culturais previstos nesta Lei serão apresentados
ao Ministério da Cultura, ou a quem este delegar atribuição, acompanhados do
orçamento analítico, para aprovação de seu enquadramento nos objetivos do
PRONAC".
[10]
"Artigo 58. Durante qualquer fase do projeto, o Ministério da Cidadania
poderá:
I
- declarar a inadimplência do proponente, caracterizada pela sua omissão no
atendimento às diligências, o que ensejará:
a)
o bloqueio da conta do projeto;
b)
a impossibilidade de prorrogação dos prazos de captação e execução do projeto;
e
c)
a impossibilidade de apresentação de novas propostas e suspensão de publicação
da Portaria de Homologação para Captação de Recursos para novos projetos.
II
- declarar a inabilitação cautelar do proponente, por meio de decisão da
autoridade máxima da Secretaria competente, caso sejam detectados indícios de
irregularidades no projeto, com as seguintes consequências:
a)
suspensão dos projetos ativos do proponente com o bloqueio de suas contas,
impedindo a captação de novos patrocínios ou doações, bem como movimentação de
recursos;
b)
impossibilidade de prorrogação dos prazos de captação e execução dos projetos;
c)
impossibilidade de apresentação de novas propostas;
d)
cancelamento de propostas e arquivamento de projetos sem captação; e
e)
impossibilidade de recebimento de recursos decorrentes de outros mecanismos do
Pronac previstos no artigo 2º da Lei nº 8.313, de 1991.
III
- aplicar a multa de que trata o artigo 38 da Lei nº 8.313, de 1991, sempre que
identificada conduta dolosa do incentivador ou do proponente.
§1º
Aplicada a inabilitação cautelar, o proponente será imediatamente notificado a
apresentar esclarecimentos ou sanar a irregularidade no prazo de 20 dias.
§2º
Decorrido o prazo do §1º sem o devido atendimento da notificação, o Ministério
da Cidadania adotará as demais providências necessárias para a apuração de
responsabilidades e o ressarcimento dos recursos ao erário.
§3º
As sanções deste artigo perdurarão enquanto não for regularizada a situação que
lhes deram origem, e o projeto que permanecer suspenso por inadimplência ou
inabilitação cautelar do proponente até o final do prazo de execução será
encaminhado para a avaliação de resultados e Laudo Final de Avaliação, estando
sujeito a arquivamento, aprovação com ressalvas ou reprovação, conforme a
situação."
[11]
"Artigo 20. Os projetos aprovados na forma do artigo anterior serão,
durante sua execução, acompanhados e avaliados pela SEC/PR ou por quem receber
a delegação destas atribuições.
§1°
A SEC/PR, após o término da execução dos projetos previstos neste artigo,
deverá, no prazo de seis meses, fazer uma avaliação final da aplicação correta
dos recursos recebidos, podendo inabilitar seus responsáveis pelo prazo de até
três anos
[...]
§3° O Tribunal de Contas da União incluirá em seu parecer prévio sobre as
contas do Presidente da República análise relativa a avaliação de que trata
este artigo".
[12]
"Artigo 29. Os recursos provenientes de doações ou patrocínios deverão ser
depositados e movimentados, em conta bancária específica, em nome do
beneficiário, e a respectiva prestação de contas deverá ser feita nos termos do
regulamento da presente Lei".
[13]
Nesse sentido, o artigo 27 da Declaração: "[t]oda a pessoa tem o direito
de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e
de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a
qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria".
[14]
Veja-se o artigo 215 da CRFB: "[o] Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais".
João Rafael Castro de
Oliveira, Camilla Marano, Luis Marcelo Abdalla Jaued, Revista Consultor
Jurídico
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